Entre tubarões e chupins

Ligia Bahia

Quanto se paga pelo atendimento à saúde é assunto delicado. A solenidade investida nas ações e cuidados assistenciais desautoriza a busca de melhor qualidade por menor preço. As bases de confiança mútua, a confidencialidade das relações entre profissionais de saúde e pacientes e a complexidade e prolongamento dos cuidados tornam as contas difíceis de entender. Mesmo no sistema público, vigem regras de etiqueta específicas, mas não radicalmente opostas. Falar à vontade sobre os baixos salários dos contratados pelas secretarias de Saúde e dos irrisórios valores de determinados procedimentos não é sinal de deselegância. Mas, a exposição de cifras para por aí. Não fica bem juntar na mesma fatura o que se paga com o que se faz. Tantas mesuras contrastam com a publicidade das contas da saúde nos sistemas de saúde de outros países, nos quais custos e preços deixaram de ser misteriosos.

Sabemos que há planos e planos de saúde e o SUS. Mas preferimos nos ater a controvérsias sobre quem paga a revelar que os cartões de planos autorizam o pagamento de valores de remuneração muitos diferenciados para quem nos atende. No SUS, o preço do tratamento depende do problema e do procedimento recomendado. Nos serviços privados o tipo de plano, ao qual se acopla a remuneração de valores múltiplos para exames, consultas médicas, internações e tratamentos, modula o acesso. Esses rótulos invisíveis, mas potentes, introduzem critérios de precificação exteriores ao trabalho despendido e uso de recursos diagnósticos ou terapêuticos. Dois pacientes com o mesmo problema e igual tratamento valem meia, uma, duas, oito vezes mais.

Essa estratificação pré-paga (parênteses para esclarecer que não se trata de valores livremente negociados entre particulares e sim contratados institucionalmente) é uma das marcas do nosso sistema de saúde Não estamos divididos apenas entre quem está vinculado ou não a planos privados e os valores maiores ou menores embutidos nas coberturas, na maioria dos casos, somam o que sai do bolso dos indivíduos com outras formas de financiamento. Parte dos gastos com planos é proveniente do aporte de empresas empregadoras. Outra parcela é bancada pelos orçamentos familiares. Como os gastos das firmas com saúde são repassados aos produtos e as pessoas jurídicas e físicas os deduzem dos impostos devidos sem limite de abatimento, todos pagam tudo, embora diferenciadamente. Quem tem plano não o custeia integralmente e paga impostos que financiam o SUS, e quem não tem auxilia o pagamento de planos melhores e piores que jamais utilizará. Deve-se consignar ainda que o não ressarcimento ao SUS converteu-se em uma insidiosa fonte de subsídios públicos aos planos privados.

Recentemente, um dos grandes empresários do setor, ao buscar explicar seu sucesso no mundo dos negócios, declarou preferir acompanhar tubarões a cardumes de sardinhas. A imagem de um animal ágil e perigoso adequa-se bem ao conjuntural processo de fusões e aquisições e capitalização de hospitais, laboratórios e empresas de planos de saúde. Mas quem melhor representa as transações rotineiras de amealho de recursos para os planos de saúde é o chupim, conhecido pelo hábito de colocar seus ovos no ninho de outras aves, para que as mesmas os alimentem como filhotes. Pseudoesmolas doadas pelo privado ao público — tais como as cotas de procedimentos e a abertura de 25% vagas nos hospitais universitários e agora na rede pública de São Paulo —, em vez do ressarcimento, inspirar-se-iam nas práticas do chupim.

Enquanto que novas alianças políticas, que escoram a concessão de planos privados de saúde para funcionários públicos nas três esferas de governo, e aquelas pretéritas — baseadas na concessão de atendimento à saúde em troca de rebaixamento dos reajustes de salário para trabalhadores do setor privado e das estatais—, seriam obtidas a dentadas de tubarões.

Absorvemos melhor e há mais tempo os preceitos relativos ao direito universal à educação, embora falte muito que fazer. Há limites no imposto de renda para deduções com escolas privadas e não é admissível deixar estudantes de estabelecimentos particulares nas portas de estabelecimentos governamentais no meio do semestre, nem repassar o ensino de uma disciplina custosa ou reservar 25% das vagas das universidades públicas para quem pode pagar.

Em relação à saúde, a confusão induzida soterra nossos compromissos de solidariedade constitucional. Esse fenômeno artificial, mas nem por isso indene, impõe uma dupla tarefa: remover o entulho retórico e incluir na agenda de debates sobre a reforma tributária a correção de iniquidades fiscais. Temos exemplos de sobra. No ano passado, em meio a muita polêmica, os EUA aprovaram a revisão da destinação dos subsídios públicos para a saúde.

O Globo (6/02/2011)

Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.