Cesarianas no Brasil: uma preferência das gestantes ou dos médicos?

Créditos: Fiotec Fiocruz

Por Gabriela Lamarca e Mario Vettore

Em geral, o parto deveria ser um evento essencialmente fisiológico, e segundo a Organização Mundial de Saúde não existem motivos que justifiquem uma taxa de cesariana superior a 15,0% em nenhum lugar do mundo. No entanto, essa taxa tem crescido em muitos países nos últimos 30 anos e o Brasil já foi conhecido por ter a maior taxa de cesáreas do mundo. Dados do Ministério da Saúde indicam que, em 2010, 52% dos partos no país foram cirúrgicos.

Na rede privada o índice nacional chega a 82%, e na rede pública, onde ocorre ¾ de todos os partos, a 37%. O Ministério da Saúde do Brasil considera que as elevadas taxas de cesarianas são fatores determinantes da morbimortalidade materna e perinatal (Brasil, 2001). Além disso, a cesariana tem se associado a condições indesejáveis como o retardo na recuperação puerperal, tempo aumentado de internação, início tardio da amamentação e elevação de gastos para o sistema de saúde.

Existem fatores demográficos, socioeconômicos e relacionados ao risco gestacional, além do acesso e uso do pré-natal, que podem estar associados ao tipo de parto das mulheres brasileiras. Dentre eles se destacam a idade, a cor da pele, o estado nutricional, a diabetes, a hipertensão, a escolaridade, a situação de domicílio, o local do pré-natal e do parto. Esses fatores se dispõem em diferentes níveis de influência e apresentam, possivelmente, algum grau de interação capaz de determinar a via de nascimento do bebê.

No caso do parto cesáreo, a decisão é definida por um conjunto de ‘causas’ e está relacionada a uma cadeia de assistência ao parto que envolve vários atores que influenciam todo o processo. São os médicos, seguradoras, hospitais, governo, por meio de políticas de saúde, e a própria gestante, quando omite sua opinião ou quando interfere na decisão. Isso dificulta a identificação da motivação de cada ator e seu efeito no desfecho (Patah & Malik, 2011).

A escolha do tipo de parto é motivo de grande discussão. A maioria das mulheres mostra uma preferência por partos vaginais, mas existe uma crença generalizada de que as cesarianas são preferíveis por serem menos dolorosas (Victora et al. 2011). No entanto, a maioria das gestantes, não participa dessa discussão, sendo simplesmente informada sobre a decisão médica final. A sua aceitação ou não em relação à conduta médica, e a associação entre a sua aceitação e os possíveis resultados perinatais, não são levados em consideração na grande maioria das vezes (Meller & Schäfer, 2011).

Além disso, há uma desvinculação entre médico e paciente, que ocorre porque no serviço público não é o mesmo profissional que faz o pré-natal e o parto. Essa desconexão resulta em falta de informações sobre a gestação atual e as anteriores no momento do parto, e o parto cesáreo acaba sendo uma opção onde o obstetra ‘tem maior controle’ sob a situação (Patah & Malik, 2011), até porque em alguns casos nem pode deixar que a gestante que entrou em trabalho de parto em seu plantão termine no plantão seguinte.

Especialistas defendem que a cesariana tem indicações clínicas precisas como eclampsia ou nos casos da mãe sensibilizada pelo tipo sanguíneo (fator RH) do bebê. Entretanto, além da falta de consideração em relação à opinião da gestante, é possível encontrar o oposto a essa situação, onde mulheres que nem sequer entraram em trabalho de parto e já negociam a data do parto com o obstetra, marcando a cesárea previamente.

Essa situação é comum e ocorre possivelmente devido a uma predisposição intervencionista dos médicos, que não seguem as recomendações para o parto cesáreo. Além disso, alguns agem de acordo com a sua própria conveniência, já que é possível constatar que cesarianas são realizadas com mais frequência em horários diurnos e em dias úteis (Nagahama & Santiago, 2011).

Segundo Fernanda Meller e Antônio Schäfer, da Universidade Federal de Pelotas, das mulheres brasileiras com idade entre 15 e 49 anos avaliadas pela Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (2006), a maioria (57,1%) teve parto normal. Entre as que fizeram o parto cesáreo, prevaleceram as mulheres mais velhas (acima de 30 anos), as obesas, e as de cor da pele branca.

Apesar de ser forte a associação entre as características biológicas e o parto cesáreo, alguns determinantes sociais se revelam como uma influência importante sobre nesse desfecho. No que diz respeito à escolaridade, por exemplo, enquanto algumas pesquisas não encontraram associação entre o nível educacional e o tipo de parto (D’orsi et al., 2006; Silveira et al., 2004), outras têm relatado maior ocorrência de partos por cesariana entre mulheres com melhor nível educacional e entre aquelas de grupos socioeconômicos mais privilegiados (Freitas et al., 2005; Althabe & Belizan, 2006). Nas mulheres estudadas pelos pesquisadores da Universidade de Pelotas não foi evidenciada diferença significativa entre tipo de parto e escolaridade.

Segundo o pesquisador Paulo Freitas, da Universidade Federal de Santa Catarina, uma estratégia frequentemente utilizada pelas mulheres com melhores condições socioeconômicas para conseguir cesariana no setor público é negociá-la durante o pré-natal conveniado ou privado. Nesse sentido, a escolaridade parece aumentar a chance de cesariana, não apenas pela diferenciação econômica, mas também pela maior capacidade de negociação com o obstetra (Freitas & Behague, 1995).

Ao contrário das gestantes com acesso a convênios médicos ou serviços particulares, aquelas que realizam o pré-natal pelo SUS frequentemente não têm a chance de escolher o médico que irá assisti-las e, provavelmente, não terão poder de negociação sobre o tipo de parto de sua preferência ou a forma de atendimento que desejam (Patah & Malik, 2011). Sendo assim, de maneira geral, as mulheres que não interferem na decisão sobre o tipo de parto, ou simplesmente não são consultadas sobre sua opinião, são oriundas de classe social baixa e possuem menor nível de escolaridade.

Por outro lado, os pesquisadores de Pelotas (Meller e Schäfer) apontam que o tipo e qualidade de informação e sugestões transmitidas pelos serviços de saúde durante o pré-natal podem influenciar na via de nascimento do bebê. Nesse caso, a realização de consultas pré-natais aumentaria a probabilidade para a opção pela cesariana. Os autores revelaram que houve uma maior prevalência de parto cesariano entre as mulheres que utilizaram o serviço particular para a realização da consulta pré-natal, indicando uma possível influência dos profissionais de saúde dos serviços privados para a realização desse tipo de parto.

Além disso, entre as mulheres que realizaram o parto em hospital particular foi observado maior prevalência de parto cesáreo. Nesse caso, é interessante notar que, possivelmente, essas mulheres que utilizaram o serviço particular para o pré-natal e realizaram o parto em hospital particular foram as mais escolarizadas e de maior renda, o que reduziria a potencial influência do serviço e dos profissionais de saúde do setor privado na decisão do parto cesáreo.

Em relação às macrorregiões, a região Sudeste foi a que apresentou maior prevalência de parto cesariano (51,7%), em contrapartida, as menores taxas foram encontradas nas regiões Norte (30,8%) e Nordeste (30,9%), onde uma grande proporção dos partos são feitos por enfermeiras obstétricas. Segundo Victora e colaboradores, em apenas oito anos (2001–08), as cesarianas aumentaram de 38,0% para 48,8%, e em várias Unidades da Federação (UF) os partos cesáreos passaram a ser mais numerosos que os vaginais (Victora et al. 2011).

Para Luciano Patah e Ana Malik, da Fundação Getúlio Vargas, a cobertura de planos de saúde também é um fator relevante, pois nas regiões em que a cobertura de planos de saúde é maior, as taxas de cesárea também o são. Em relação às macrorregiões e à situação de domicílio, o estudo de Meller e Schäfer observou uma maior prevalência desse tipo de parto entre as mulheres que residiam na região Sudeste e na zona urbana do país.

Podemos considerar uma iniquidade social no cuidado em saúde o fato de que mulheres com piores condições socioeconômicas e, consequentemente, maior risco de complicações no parto tenham menor probabilidade de cesariana do que aquelas com baixo risco obstétrico, alto poder aquisitivo e maior acesso à tecnologia médica (Freitas & Behague, 1995), o que nos remete mais uma vez a lei do cuidado inverso. A cesariana é indicada com a intenção de preservar a vida da mãe e do filho em situação de risco, e não deve ser decidida em função do desejo da grávida nem de acordo com a conveniência do médico. Além disso, é preciso reduzir ainda mais as disparidades regionais, socioeconômicas e étnicas que persistem apesar do progresso alcançado, de maneira que interfiram cada vez menos na decisão sobre o tipo de parto.

 

Gabriela de A. Lamarca é Odontóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutoranda em Epidemiologia em Saúde Pública.

Mario Vianna Vettore é Odontólogo, Mestre em Odontologia, Doutor em Saúde Pública.

Fonte: Portal Determinantes Sociais da Saúde – 13/12/12

 

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Citação Bibliográfica

Lamarca G, Vettore M. Cesarianas no Brasil: uma preferência das gestantes ou dos médicos? [Internet]. Rio de Janeiro: Portal DSS Brasil; 2012 Dez 13 [acesso em]. Disponível em: http://dssbr.org/site/?p=11526&preview=true
Gabriela Lamarca e Mario Vettore

Gabriela de A. Lamarca. Odontóloga, Mestre em Psicologia Social, Doutoranda em Epidemiologia em Saúde Pública.
Mario Vianna Vettore. Odontólogo, Mestre em Odontologia, Doutor em Saúde Pública.