Pesquisas com seres humanos no Brasil: a nova 196 e expectativas ancestrais

Por Carlo Henrique Goretti Zanetti

No imediatismo da vida profissional, os desafios da sobrevivência somados à legítima motivação pela realização das ambições individuais e aos inúmeros outros ímpetos que se espraiam na normalidade dos comportamentos diários; tudo isso, às vezes, acaba comprometendo nossos esforços interpretativos e nos fazem deixar de lado justamente os aspectos mais fundamentais de algumas questões sobre as quais nos debruçamos e emitimos algum julgamento.

Esse talvez seja o caso das apreciações correntes da Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre pesquisas com seres humanos no Brasil. Nem sempre nos apercebemos em qual “ventre” a 196 foi gestada e se fez rebento. Quis o legislador da constituição de 1988 que o Sistema Único de Saúde brasileiro fosse mais que um aparelho de Estado, operado estrita e burocraticamente pelo poder executivo. Ele quis que a sociedade civil se fizesse representada sob a forma regular dos Conselhos de Saúde e episódicas das Conferências de Saúde. Para muito além de Montesquieu, esse avanço do estatuto constitucional do Estado brasileiro foi batizado pela área da saúde de “controle social” (da sociedade sobre o Estado, obviamente!).

Não é de todo surpreendente que uma vez constituído o Conselho Nacional de Saúde, sua primeiríssima resolução tratasse do assunto da pesquisa científica com seres humanos no Brasil. As revisões e atualizações sucessivas dessa resolução fundadora produziram a 196, tanto quanto produziram a “nova 196”.

Importa destacar que o projeto da democracia brasileira consagrado na Nova República possibilitou colocar o delicadíssimo tema (tão debatido ao longo de todo o século XX e que ainda continua urgente e em pauta) da relação “ciência x cultura” sob normas que entendem a pesquisa com algo que vai muito além de um “mero” empreendimento isolado, pelo menos no particular da ciência que sujeita seres humanos à pesquisa. Através do SUS, do Conselho Nacional de Saúde e seu sistema CEP/CONEP, no Brasil todas essas pesquisas ganharam compulsoriamente um sócio: a sociedade brasileira, mediante essa estrutura de controle social.

Um sócio porque, coletivamente representado nos colegiados do sistema, a sociedade tem poder de veto e tem a responsabilidade de entender e julgar tudo aquilo que se tem a ganhar ou a perder com cada empreendimento que conta com sua aquiescência.

Um sócio “coletivo” que entra no “negócio” da pesquisa com capitais valiosos: a morbimegadiversidade brasileira, a megadiversidade cultural e étnica brasileira, o gigantesco mercado de consumo de produtos e serviços de saúde, o maior sistema nacional de saúde público universal do planeta em termos populacionais, um país de 3º mundo com uma constituição cidadã e o forte desejo de se consolidar justo e democrático, um país de dimensões continentais que apresentou a maior taxa de crescimento econômico médio no século XX, que se consolidou como polo regional, maior parceiro nos esforços de integração da região e que não externaliza qualquer pretensão militar própria ou simpatia por resolução bélica de conflitos ao redor do mundo.

Um sócio ainda porque, quando individualmente se sujeita a essas atividades, entra no “negócio” da pesquisa com
um capital especialíssimo: seu ser, em corpo e alma. Nessa dimensão, lamentavelmente, é um sócio com um capital individual vulnerável porque está sujeito a relações assimétricas com os demais sócios da pesquisa que aportam seus outros capitais: intelectuais (pesquisadores –  individuais ou coletivos); financeiros (patrocinadores –  públicos os privados, oficiais ou não); organizacionais (instituição proponentes ou corresponsáveis); etc. Em outros termos, um sócio que representa a parte frágil do negócio, francamente passível de predação; ao mesmo tempo que detém um dos capitais fundamentais do negócio: suas próprias existências oferecidas à pesquisa, matéria prima sem a qual qualquer investigação dessa natureza é possível.

No “modelo de negócio” das pesquisas com seres humanos no Brasil, há as exigências tanto do consentimento livre
e esclarecido feito por cada um daqueles que, enquanto parte da sociedade brasileira, isolados em suas individualidades e vulnerabilidades, sujeitam-se às pesquisas; quando do consentimento coletivo, igualmente livre e
esclarecido, feito por aqueles que, também enquanto parte da sociedade brasileira, voluntariamente estão representando-a nos colegiados do sistema CEP/CONEP.

O aumento da robustez e o desenvolvimento do Sistema CEP/CONEP é antes de tudo o incremento das salvaguardas a toda sociedade brasileira e aos brasileiros participantes identificados em suas vulnerabilidades. É o incremento de um bem público precioso, produzido de forma colaborativa. Na sua ausência, estão dadas as condições para a malaise, para a produção dos males públicos decorrentes de predações perpetradas por profissionais, patrocinadores e/ou instituições às pessoas sujeitas à pesquisa, quando os primeiros passam a buscar a maximização de poder, prestígio, privilégio e/ou riqueza.

É claro que nesses termos, dada a aposta brasileira, não dá para comparar a submissão de projetos de pesquisas
com seres humanos no Brasil com aquela que ocorre em outros países. Aqui, tal como a jabuticaba, o controle social
das pesquisas é fruto autóctone de premissas constitucionais e democráticas únicas. Aqui, transcende-se em muito o caráter meramente cartorial e registral, tão comum mundo afora e que tanto atomiza e gera anomia, quanto reduzem o exercício de julgamento e responsabilização ética. Nesse aspecto, a festejada celeridade lá de fora é alcançada a um custo individual-sócio-cultural altíssimo.

É certo que desejamos o incremento dos negócios das pesquisas com seres humanos no Brasil. Pesquisas que sirvam aos brasileiros. Portanto, vale perguntar: “num país com tamanhas vantagens comparativas para pesquisas com seres humanos, o que será mesmo que estamos perdendo a curto, médio e longo prazo quando pesquisas dessa natureza não conseguem esperar o tempo necessário para serem submetidas à devida e valiosa apreciação ética?”. “Vale mesmo querer mantê-las a todo e a qualquer custo?”

Numa economia de escolhas, também podemos prosseguir nos questionamentos – onde recaem as maiores perdas: nas pesquisas transnacionais que afirmam perder muito porque não dá para bancar mais esse “custo Brasil” (o custo da cuidadosa apreciação ética em duas instâncias: local e nacional); ou, nos brasileiros e em toda sociedade brasileira caso tal apreciação seja “flexibilizada” e a ciência que se faz aqui com seres humanos passe a ser menos julgada pela cultura?

Isso tudo não quer dizer que, do ponto de vista estritamente processual, os ritos de submissão, apreciação, acompanhamento e fiscalização ética com vistas à proteção dos indivíduos e de toda sociedade brasileira não possam ser aperfeiçoados, reduzindo os tempos e custos de transação desses negócios. Como exemplo está a novidade na nova 196 da progressiva autonomização de um Comitê de Ética (local) mediante sua acreditação pela CONEP (nacional). Há sim muito por ser feito, em que pese o muitíssimo já feito; e, diga-se de passagem, com pouquíssimo investimento e recurso. É máxima pragmática que tudo pode, deve e precisa melhorar, se possível for. E, no caso em questão, é claro que é.

Acontece que toda essa discussão não deve ser tratada exclusivamente como mero tema de análise de utilidade (e suas categorias de eficácia, eficiência e efetividade) e instrumentalidade. A totalidade dessas transações não é tema capturável por alguma métrica qualquer orientada à afluência econômica. São também temas de justiça.

Justiça quanto ao indivíduo sujeito à pesquisa considerado como investidor em sua liberdade, vulnerabilidade, direito e expectativa; justiça quanto a qualquer indivíduo reconhecido na universalidade dos direitos da pessoa humana em sua dignidade e autonomia; justiça como equidade e favorecimento aos mais desfavorecidos nas relações de pesquisa correntes; justiça como comunitarismo, isto é, como produto de sentido interpretativo socialmente construído de pertencimento e solidariedade aos valores de contexto histórico único e próprio, nesse caso, aos valores aqui afirmados como país, povo e nação.

De forma singela, basta apenas que nos coloquemos (ou que coloquemos um ente muito querido nosso) no lugar de qualquer indivíduo sujeito à pesquisa para que todas essas questões extraeconômicas de justiça façam o mais pleno sentido e nos inspire a seguir na direção institucionalmente correta.

Se para nossa felicidade as ambições nacionais nesses assuntos não são modestas, muito menos desprezíveis, o tratamento dessas questões terá sempre uma particularidade intrínseca e distintiva, por mais que a tecnicidade e a instrumentalidade do sistema avancem (tanto quanto muito ainda precisam avançar). Mas, é exatamente essa distinção fundamental e fundadora que nos orgulha. Essa é uma daquelas muitas coisas que dá satisfação em ser brasileiro, quando falamos delas em audiências estrangeiras.

Mesmo num futuro, depois de resolvidos todos os nossos problemas instrumentais-processuais-burocráticos de submissão, apreciação, acompanhamento e fiscalização; ainda lá, definitivamente, não seremos e não devemos nos tornar um “paraíso ético” de licenças e facilidades para grandes operadores globais e transnacionais de pesquisas com seres humanos.

Para cumprir tal papel de avanço selvagem, predador e desembestado da ciência, geralmente protagonizado pela grande indústria farmacêutica internacional, o mundo não precisa da contribuição brasileira. Aqui, nossa matéria prima não é desumanizada e tratada como commodity! A promessa embutida na aposta brasileira de uma ciência prudente, esclarecedora, pertinente e reconciliada nos parece muitíssimo mais urgente, necessária e defensável, nacional e mundialmente. Para uma ciência cada vez mais comprometida, respeitada e engajada serve a 196, o Conselho Nacional de Saúde e todo o Sistema CEP/CONEP.

Brasília, 13 de dezembro de 2012

Carlo Henrique Goretti Zanetti é professor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília – UnB e ex-assessor da CONEP/CNS/MS.