Sonia Fleury fala de suas percepções sobre o Sistema Único de Saúde

Autora de mais de dez livros sobre Previdência Social, políticas públicas e saúde, a ex-presidente do Cebes, Sonia Fleury, fala ao Movimento Participação Médica sobre suas percepções a respeito do SUS. “Está se criando uma mentalidade deturpada, como se o setor público fosse incapaz, e que tudo deva ser resolvido através de contratação do privado, que é bom por excelência. Isso não é verdade”, adverte.

1) A relação público-privada dos serviços de saúde gerada através do financiamento por parte do setor público na expansão da rede privada faz com que o SUS se torne um prisioneiro desse sistema? De que forma se dá isso?

Eu acho que há várias questões no financiamento que contraem o SUS, que o deixam com menos recurso do que deveria. Uma delas é a renúncia fiscal, o fato de que o governo incentiva de alguma maneira as pessoas da classe média e as empresas a terem um plano de saúde, à medida que podem deduzir esse gasto do seu o imposto de renda, em vez de ter recolher essa contribuição com destinação específica para ser colocado na área de saúde.

Hoje em dia estão ocorrendo também várias isenções, desonerações de setores da economia, como parte da política econômica. Eles deixam de pagar contribuições, por exemplo, que iriam para o Fundo de Participação dos Municípios, e são os municípios aqueles que têm mais ampliado sua participação no financiamento da área de saúde. Outra forma de redução dos recursos das políticas sociais é a própria Desvinculação de Receita da União -DRU, que embora seja uma medida provisória, tem sido renovada desde 1994 até hoje, e tira 20% dos recursos que foram constitucionalmente destinados para políticas públicas na seguridade social.

São algumas das questões gerais que afetam o financiamento do SUS. Com relação especificamente ao setor privado, há também uma política de contratação de Organizações Sociais de Saúde (OSS) cada vez maior, e com isso você passa a ter uma forma dos estados e municípios burlarem a Lei de Responsabilidade Fiscal, porque usando uma mão de obra de pessoas não são funcionários públicos os governos podem assim ultrapassar o teto máximo estabelecido para gasto com os salários. Mas, ao fazer isso, na verdade, há recursos indo para uma gestão privada, não para melhoria da gestão pública e nem aprimorar o funcionário público e assim aumentar a capacidade de estado. Então ocorre uma drenagem de recursos públicos para o setor privado, a título de maior eficiência, mas muito pragmaticamente visando se manter dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal. Recentemente o STJ decretou que os governos poderiam contratar o setor privado para gestão de unidades públicas, mas que os funcionários da área de saúde deveriam ser funcionários públicos. Essa é a judicialização positiva, pois defende o interesse público.

Essa é uma questão que está em discussão, pois os governos recorreram dessa decisão, enquanto esse modelo está se ampliando fortemente, levando os recursos para uma gestão privada em vez de levar para o setor público e melhorar a carreira e o pagamento dos servidores. Então isso vai virando uma roda, não aumenta os recursos do no setor público, canaliza para o setor privado e aí a diferença vai se ampliando entre os dois.

2) No seu artigo “Um remédio para matar ou salvar o SUS?”, a doutora menciona que quando não há distinção entre a rede pública e a privada, todos os instrumentos considerados imprescindíveis para a primazia do interesse público sobre o privado deixam de importar. O que isso acarreta na saúde? Acontece um rebaixamento da qualidade da saúde pública no país?

Eu acho que acontece um rebaixamento na qualidade da democracia, porque na saúde e em outras questões sociais criou-se um modelo de governo mais democrático, de participação, em que os conselhos e as conferências permitem que a sociedade participe na gestão pública e exerça o controle social. Esses contratos com o setor privado nem sempre têm passado pelos conselhos, e muitas vezes os conselhos se opõem a isso, e mesmo assim os Executivos fazem esses contratos.

Então, de alguma forma eles estão mudando o tipo de democracia que foi criada na Constituição de 88. Isso é um problema muito sério para a sociedade brasileira que criou um modelo mais participativo de controle social e que, de certa forma, está sendo deixado de lado por essa primazia da relação do Executivo com o setor privado sem passar pelos instrumentos públicos de controle.

3) As parcerias público-privadas (PPPs) em saúde seriam mais um passo nessa trajetória rumo à consolidação das relações do setor privado no SUS? Como ocorre isso?

Eu acho que o setor privado mudou de estratégia. Ele que se opôs a criação do SUS na Constituição de 88, percebeu que depois que o SUS foi criado, seria uma alternativa para financiá-los. Porque eles bateram no teto do que podem conseguir no mercado. Na América Latina não tem qualquer país no qual o setor privado conseguiu uma cobertura que vá além de 25% da população. Agora a alternativa deles é criar um Sistema Nacional de Saúde, um plano público privado, ou seja, tem como objetivo canalizar recursos do SUS para o privado.

Acho que há uma tentativa de crescimento de várias formas de captação de recursos do SUS. Por exemplo, os grandes hospitais já conseguiram isenções, a título de fazer atendimentoe formação do setor público, ao mesmo tempo criaram OSS para fazer contratos com o setor público.

Então, são grandes instituições que já chegaram ao seu topo e estão buscando recursos públicos, mas não necessariamente dando o mesmo tipo de atenção prestada naquele hospital privado que terminou virando uma marca de qualidade. Isso prejudica o modelo inteiro, porque o setor privado, ao não ser que seja uma instituição de caridade, tem como objetivo obter lucro.

4) Quais são os principais problemas gerados quando as instituições que deveriam defender o interesse público passam a ser gestoras privadas de serviços públicos terceirizados na saúde?

Eu acho que está se criando uma mentalidade deturpada, como se o setor público fosse incapaz, e que tudo deva ser resolvido através de contratação do privado, que é bom por excelência. Isso não é verdade. O Brasil vem mostrando, por exemplo, com a Petrobrás, que o setor público pode ser um setor de ponta. No desenvolvimento, na pesquisa, em tudo mais, desde que tenha recursos e capacidades humanas para gerenciar.

Essa mentalidade que está se formando, de que não tem jeito, está deserdando o setor público. Isso é a coisa mais séria que está acontecendo. Em vez de se melhorar as carreiras e fazer uma reforma no que tem que ser reformado, há certa aceitação desta falsa proposição de que o setor público não tem mais jeito. Essa é uma grande derrota ideológica, mesmo no momento em que o mercado sem regulação levou o mundo inteiro a uma crise que ainda vivemos, e que teve que ser bancada com dinheiro público.Quem deve cuidar do setor público é o setor público, e não o privado. O setor privado deve ser regulado estritamente e subordinado à relevância pública, no caso da saúde.

5) No seu artigo, a doutora diz que o processo de redução progressiva do papel do Estado a financiador e comprador pode significar o decreto da morte progressiva do SUS. Como isso ocorrerá? Se isso acontecer, quais serão as consequências para saúde pública no país?

Isso porque o SUS não foi criado com a ideia de financiar a prevenção privada. Ele foi criado como um sistema de prestação dos serviços e de gestão dos sistemas locais de saúde, o que é um modelo muito inovador no mundo. Tanto que a revista The Lancet, que é a maior revista de saúde do mundo, fez um número especial sobre o SUS. Há todo um reconhecimento internacional sobre a originalidade desse sistema, mesmo num país que tinha recursos, mas que ousou ser democrático.

À época, as agências internacionais propunham o modelo colombiano, que reduz o papel do Estado basicamente a regulação da competição entre os entes privados e ao financiamento de um seguro para os pobres. Essa era a ideia. Agora, o que vemos é uma crise enorme na Colômbia, por causa desse sistema de mera especulação financeira em relação ao setor da saúde, enfraquecendo a autoridade sanitária que não pensa como um mero financista, mas que deve ter um projeto sanitário para o país. Agora os sanitarista de lá estão tentando voltar à ideia de reconstruir a autoridade sanitária com todos os danos que houve no país e para a saúde da população. È isso que nós temos que impedir que ocorra com o SUS aqui.

6) Em sua opinião o que ainda falta no SUS e quais seriam as melhores medidas para esse quadro?

Eu acho que falta muito. Acho que a população sofre muito. Fizemos um estudo nos hospitais públicos. Encontramos desigualdades que existem num setor precarizado, sem capacidade de atender, em que há a banalização da precariedade.