Para universalizar saúde, país precisa enfrentar tabus, diz professor da UFMG

Ligia Guimarães | Valor Econômico

Francisco Campos, da Faculdade de Medicina da UFMG: Existe deficiência de médicos não só no Brasil, mas no mundo.

Médicos podem fazer a diferença no atendimento à saúde básica da população, mesmo em localidades onde não há hospitais ou postos de saúde equipados, na avaliação de Francisco Campos, diretor do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG-Nescon).

“Essa tese de que primeiro tem que colocar a unidade, o estetoscópio, e só depois colocar o médico é uma tese niilista de quem não quer resolver o problema”, afirma, a respeito das críticas que apontam que o governo federal precisaria garantir infraestrutura para o atendimento médico antes de contratar mais profissionais.

Tal conclusão, defende Campos, é fruto da experiência pessoal. O especialista dedicou a carreira a pesquisar caminhos para aprimorar e garantir o atendimento na saúde pública, inclusive em lugares remotos, pobres e de difícil acesso. Em 1978, implementou um internato rural obrigatório a todos os alunos da residência médica da faculdade mineira. Atuou no Ministério da Saúde como secretário de Recursos Humanos, de 1985 a 1986, e de 2005 a 2010.

Integrou a equipe da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a América Latina – a mesma que firmou acordo com o ministério para viabilizar a vinda de 4 mil médicos de Cuba na primeira etapa do programa Mais Médicos. Hoje, é o único representante da América Latina no conselho da Aliança Global da Força de Trabalho em Saúde, iniciativa liderada pela OMS para levar profissionais a áreas carentes de médicos em todo o mundo.

Em entrevista ao Valor, Campos defende a contratação de médicos estrangeiros para lugares onde não há médicos brasileiros dispostos a trabalhar. Sobre a carreira médica, diz que o país, se quiser cumprir o preceito constitucional de garantir saúde para toda a população, vai precisar enfrentar tabus, como recrutar estudantes do interior para cursos de medicina e discutir a atuação de outros profissionais da saúde em áreas hoje exclusivas de médicos. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual a sua opinião sobre o desenvolvimento, até aqui, do programa Mais Médicos?

Francisco Campos: Acho que, se fizemos uma opção por ter um Sistema Único de Saúde (SUS) para todo mundo em condições de equidade, o governo tem que colocar profissionais nos locais, mesmo os mais remotos. Se ele não encontra profissionais no Brasil, tem que mobilizar gente de outros locais. O governo está cumprindo a obrigação constitucional de dar saúde a todo mundo. Tem que ter prestação de saúde nesses locais remotos, mas nem sempre precisa ser por um médico. Pelo ordenamento legal que temos no momento, como a Lei do Ato Médico, fazendo com que muitas ações sejam privativas de médicos, vamos ter que ter médicos nesses locais. Se houvesse outro ordenamento, poderia se resolver de outra forma.

Valor: Como o sr. vê as críticas, segundo as quais não adianta levar médicos a lugares em que não há infraestrutura para o atendimento?

Campos: Isso é uma das maiores bobagens que já ouvi. Compara o valor do trabalho médico com o valor do estetoscópio que as pessoas dizem que falta: com o que você contrata um médico, deve comprar, talvez, dezenas de estetoscópios. E vou te dizer de maneira jocosa: se você colocar estetoscópio lá e fizer uma unidade boa, o estetoscópio não pede médicos. Se você colocar um médico, o médico pede estetoscópio. Em uma unidade de saúde, muito mais importante que pedra, tijolo, estetoscópio, é o trabalho médico. Tem unidade mal equipada sim, mas esse é um processo que é fácil de ser resolvido. Essa tese de que primeiro tem que colocar a unidade, o estetoscópio, e só depois colocar o médico. é uma tese niilista de quem não quer resolver o problema.

Valor: O médico passa a atuar como um planejador, um estrategista da saúde no local?

Campos: Se o médico estivesse em uma unidade médica sem estetoscópio, não ia poder trabalhar. Ele tem que pedir ao prefeito, ao gestor municipal, que compre estetoscópio, que tenha ambulância para levar as pessoas, mas ele vai organizar esse processo. O contrário não acontece. Não adianta estetoscópio sem médico. Se eu tiver que fazer um “ovo ou galinha”, o que vem primeiro, infraestrutura ou médico? Acho que o médico puxa a infraestrutura.

Valor: Acompanhando as discussões sobre o Mais Médicos, o que se vê é que o debate está ficando cada vez mais polarizado, radicalmente a favor ou contra.

Campos: É uma discussão muito ideológica. Existe uma deficiência de médicos, não é no Brasil, é no mundo. A população envelheceu, os cuidados se tornaram mais complexos, existe uma carência. Ninguém consegue recrutar número superior a 10 mil médicos, mesmo pagando bem. Você acha que 10 mil profissionais para áreas remotas, para áreas que os outros não querem ir, fazem cócegas em uma categoria que tem mais de 400 mil profissionais? Não faz. Eu não vou, e não quero que o outro vá, é mais ou menos isso.

Valor: Qual o papel da saúde básica, que também tem carência de profissionais, na solução dos problemas da saúde brasileira?

Campos: A reunião de Alma-Ata [Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde], em 1978, trouxe o conceito da atenção primária e fez-se o compromisso de garantir saúde para o mundo inteiro até o ano 2000, mas evidentemente não chegamos lá. Desde então, todo o conceito de peritos mundiais é de que uma boa atenção básica para saúde (no Brasil usamos básica, porque primária poderia ser entendido como de baixa qualidade), em geral, resolve 80% a 85% das demandas espontâneas que chegam ao consultório.

Valor: Que tipo de atendimento abrange a saúde básica, além de prevenção?

Campos: Promoção da saúde, acompanhar nascimento e desenvolvimento, consultas básicas, pequenas cirurgias, como o indivíduo que fez um corte e precisa dar ponto, drenar um abcesso. O fato de no Brasil existirem leis de exercício profissional que são como loteamentos, com atos exclusivos para cada profissão, faz com que essa coisa seja mais rígida do que em outros países. Existe uma tendência muito grande no mundo, menos nos EUA, de ter profissionais que podem resolver parte dos problemas. Falar isso no Brasil é pecado, mas é a história do “physician assistant”, o paramédico, ou o que na China se chama “village doctors”. É um profissional que não seria um médico. No conselho de enfermagem tem técnico em enfermagem. Na medicina não há profissionais subalternos, que podem ter formação diferente, mas dão conta de parte – não de todos – dos cuidados da atenção básica, que podem ser resolvidos com nível menos complexo de formação.

Valor: Realizar parto faz parte do atendimento em saúde básica?

Campos: Defendemos que os partos sejam institucionalizados e feitos em hospital. Entretanto, há localidades em que o parto normal pode ser parte da atenção básica, em lugar onde não há hospital.

Valor: Olhando o programa como um todo, o sr. vê pontos que poderiam ser aprimorados?

Campos: Temos de deixar de transformar algumas discussões em tabu. Provavelmente, depois do resultado do Mais Médicos – programa que por sinal eu apoio, caso não tenha ficado claro -, esses tabus serão discutidos. Alguns países recrutam profissionais em áreas rurais, porque há a tese de que essas pessoas não teriam tanto problema em retornar a esses lugares [quando forem médicos]. Essa discussão é um tabu e deveríamos enfrentar. Outra discussão que deveríamos enfrentar é ter ou não uma outra categoria, que não seja um médico pleno. Acho que o governo está fazendo a melhor tentativa que pode para, dentro do marco legal e dentro da Constituição, que diz que a saúde é para todos, enfrentar o problema com o que está disponível, que é ter médico da forma que os médicos brasileiros são. Se não resolver o problema, vai ter que começar a se pensar em coisas mais fortes. Se você pensar bem, a política de cotas é isso. Você poderia ter, eventualmente, recrutamento de estudantes de medicina de regiões rurais, remotas, e essas pessoas retornariam a essas localidades de origem, por exemplo. Isso é repensar o marco legal da profissão. Tem uma medida do Mais Médicos que é importante, que é colocar faculdades de medicina em regiões mais remotas. Por que não recrutar pessoas dali? Já tivemos coragem de fazer cotas. Ou então, desiste-se de a saúde ser universal.

Valor: Na sua opinião, os médicos estrangeiros do Mais Médicos deveriam ser obrigados a fazer o Revalida?

Campos: Se os médicos fizerem o Revalida, entram na disputa dos 400 mil [médicos que trabalham no Brasil], não sendo possível alocá-los em áreas remotas. É desejavel que façam o Revalida? Sim, dado que há carência de médicos. Por essa via, entretanto, não seriam distribuídos para as localidades que mais precisam. E não é verdade que os médicos não foram avaliados. Eles passaram por sistemas universitários complexos, que avaliam, sim, a qualidade.

Valor: Têm chamado atenção os episódios de vaias e críticas dos médicos brasileiros aos estrangeiros. A presidente Dilma disse que vê imenso preconceito contra médicos cubanos. Como o sr. vê essa situação?

Campos: Xenofobia pura e da pior qualidade. Esse tipo de preconceito não é aceitável. Não é a categoria médica, são setores radicalizados que estão fazendo isso. Acho que a classe médica brasileira é composta de pessoas que são elite, mas que querem salvar vidas. Convivo com estudantes de medicina há 36 anos, nunca vi ninguém aqui na faculdade que viesse aqui só para ganhar dinheiro. Duas mil pessoas se inscreveram no programa. De 400 mil, menos de 0,5% do conjunto da população médica quis ir. Para os lugares que não quiseram ir, se chamaram os estrangeiros. Para os lugares que nem os primeiros, nem os segundos quiseram ir, se chamaram os cubanos. Eu não quero o brinquedo, mas não quero que o meu irmão fique com ele? Isso é coisa da pior índole possível, que acho que vem de uma minoria, mas é lastimável.