O modelo americano não serve aqui

lynnA secretária de Saúde do município de Sonoma, na Califórnia, e ex-subsecretaria na cidade de New York, Lynn Dee Silver, esteve em Brasília durante a 13ª Expoepi, onde falou com a comunicação do Cebes sobre o sistema de saúde norte americano e seus maiores desafios. Pediatra, Lynn Silver é uma das maiores ativistas e profissionais norte americanas envolvidas com a promoção da saúde e o enfrentamento de doenças crônicas, em especial em NY – enfrentamento este que lida com o forte lobby das indústrias do tabaco e dos alimentos.

Cebes: De que forma os EUA poderão superar essa constante em que as tentativas de se criar um sistema de saúde equitativo são sempre frustradas pela oposição de grandes seguradoras e empresas farmacêuticas, entre outros atores com claros interesses de mercado? Quais são os maiores desafios americanos nesse sentido?

Lynn: Os EUA, como você sabe, tem o sistema de saúde mais caro do mundo, chegando a 17% do nosso PIB. É um sistema complicado, que não cobre a população total, além de ser extremamente caro para o país, embora seja um sistema que, às vezes, também pode entregar atenção de excelente qualidade em algumas instituições. Mas há muitos anos estamos tentando fazer a reforma desse sistema. O mais importante foi a criação do Medicare. Porém, até hoje não conseguimos uma cobertura universal, principalmente por conta dos diversos interesses financeiros envolvidos na questão. A reforma de saúde do Obama, o Obamacare, que foi aprovado recentemente, foi, na verdade, o “possível políticamente” nos EUA. Um dos componentes dessa reforma foi, em grande parte, a proposta republicana dos anos anteriores, implementado em Massachusetts. Ou seja, em vez de expandir um seguro público e universal, abriu-se para a competição de diversas seguradoras privadas, com subsidio público. A maior parte das pessoas será direcionada a seguradoras privadas. A garantia de um plano público que pudesse competir no mercado foi derrubado no processo de negociação da lei.

De toda forma, a reforma ainda assim é positiva, porque vai oferecer cobertura para a maior parte das pessoas que hoje não tem. A melhor parte da reforma é o aumento do seguro público (Medicaid), mas essa parte foi mudada pela corte suprema e os estados tem que optar se querem incorporar a expansão do seguro público para os mais pobres. A Califórnia optou por isso, por exemplo. Também é muito positivo na lei a garantia das medidas preventivas sem nenhum co-pagamento e a proibição dos chamados “doenças pré-existentes”, termo que seguradoras usavam pra não assegurar uma pessoa que estivesse com câncer ou mesmo uma mulher que corresse o risco de engravidar. Ou seja, ou cobrava extra ou não assegurariam uma mulher, porque a mulher poderia cometer o “pecado” de ganhar filho. Foi muito interessante essa proibição, e acredito também que isso ainda é um problema no Brasil. Eu trabalhei na reforma da lei dos seguros por muitos anos aqui no Brasil, tentamos retirar a questão dos “pré-existentes”, mas não conseguimos tirar completamente, mesmo sendo essa uma das manobras mais feias da indústria de seguros.

A reforma do sistema dos EUA é uma reforma mista, que, apesar de tudo, é positiva. Estamos tentando implementá-la, fazer da reforma um sucesso, porque o acesso de muita gente depende disso, porém não é a reforma que eu sonharia para o país. A reforma que eu sonharia é uma cobertura universal, com preço razoável, com equidade de acesso para todos e um forte componente de prevenção. Mas anda estamos longe disso. Acredito que só quando o sistema ficar tão caro, tão caro que a sociedade não aguente mais, é que vai mudar.

Cebes: Desde a sua criação, pela constituinte de 1988, o SUS brasileiro sempre foi subfinanciado e criticado pela qualidade dos serviços oferecidos à população. Em sua opinião, o que será preciso para que haja convergência da saúde pública oferecida aos cidadãos e aquela assegurada pela Constituição Federal?

Lynn: O Sistema de saúde tem que ser financiado de alguma forma, alguém tem que sustentar o sistema pra entregar uma atenção de boa qualidade pras pessoas. O custo disso varia enormemente entre os países. Depende das regras sobre os equipamentos, medicamentos, etc. Não há um número certo. Mas tem que ser adequada à realidade do país. O errado é dizer: “nós não podemos financiar o sistema público e vamos deixar para o sistema privado fazer”. Porque, mesmo com o sistema privado, as pessoas acabam pagando. Há de ter um sistema justo e equitativo da arrecadação necessária para financiar o sistema e distribuir isso de forma equitativa. Acredito que tem que ser o suficiente para atingir às necessidades do sistema, seja ele 8%, 10% ou 12% das receitas do país, o que não se pode é ir brincando com o orçamento de ano a ano.

Educação e saúde são as grandes metas sociais de um país. EUA, Brasil, não importa qual. Eu diria que antes de escolher entre educação e saúde, a gente deve escolher entre desperdício e aquilo que presta. Focar nossos recursos nos serviços importantes, eficazes, que fazem a diferença. Parar de pagar demais para medicamentos, ou pagar taxas de 90% de cesarianas, e usar esse dinheiro para cobrir as pessoas com as coisas que são realmente importantes.

Cebes: A senhora acha que há no sistema americano algo no qual o Brasil deveria se espelhar e vice-versa?

Lynn: Se há algo que o Brasil deve aprender com a gente é o de não imitar a gente e ir fundo no financiamento, no apoio e na realização do sistema público de saúde. Porque o Brasil vem tratando de imitar a gente na proliferação dos planos de saúde. Isso é imitar o pior que tem nos EUA.

Cebes: A senhora foi responsável pela implementação de um programa de controle de doenças crônicas em Nova York, e também tem atuação ativa dentro do setor aqui no Brasil. No seu ponto de vista, quais são os maiores desafios dos EUA e do Brasil para o enfrentamento das condições crônicas? Existem avanços, em ambos os países, na implantação do modelo de atenção?

Lynn: A doença crônica é um problema complexo. Por exemplo: o aumento da atividade física para seu controle é uma coisa que todo mundo apoia, ninguém é contra. Ali é uma área onde se constrói bastante consenso, uma vez que as pessoas estão sendo conscientizadas. Essas mudanças que estamos fazendo no ambiente urbano também, de permitir que as pessoas caminhem com segurança, usem bicicleta, usem transporte público. Isso geralmente tem amplo apoio da população. Agora, outra parte dos problemas que trazem as doenças crônicas tem que ser tratadas pela organização dos sistemas de saúde, pela organização do mercado alimentar, pela questão do tabaco e, por último, pela questão da justiça social. O mercado alimentar está ficando cada vez pior. Alimentos de baixa qualidade, processados, com alta taxa de sal, açúcar e densas em calorias, enquanto, de outro lado, as pessoas não estão comendo suficientes frutas e verduras, que é o que precisamos comer mais. Pra mudar esse quadro, precisaremos enfrentar os interesses do mercado alimentar, se expressar como sociedade, e isso vai requerer vontade política. A mesma coisa com o tabaco, onde o Brasil está mostrando bastante… “testosterona”, para não ser machista. O Brasil está tomando muitas ações importantes pra mudar a situação: a mudança nos pacotes de cigarro, a punição dos aditivos, medidas importantes e corajosas que tem que ser apoiadas e disseminadas. Cada estado e município deve pensar: “o que posso fazer aqui? O que posso mudar aqui?”. O sistema de saúde também não foi desenhado para cuidar de doenças crônicas. O contato do médico-paciente geralmente não resolve, é necessário o apoio de uma equipe, um nutricionista, etc. Estamos realmente enfrentando o desafio de repensar nosso sistema de saúde e o atendimento à doença crônica para que seja mais apropriado aos desafios de atendimento a longo prazo. Esses são alguns dos desafios. Por último, é necessário saber que as doenças crônicas são associadas à pobreza e aos baixos níveis de educação. A diabetes é mais comum entre os pobres. Em nova York, os pobres morriam quatro vezes mais de diabetes. A correção das desigualdades sociais subjacentes que determinam a prevalência das doenças crônicas também é um dos desafios principais.

Cebes: Quanto à questão do Tabaco, um dos maiores desafios no contexto do controle das doenças crônicas, de que forma o Brasil e os EUA têm avançado com suas políticas ou onde encontramos suas maiores dificuldades? Resistir ao forte lobby da indústria do cigarro seria a mais grave delas?

Lynn: A indústria do tabaco é um mercado da morte. Não existe a venda de tabaco positivo. São nossos inimigos. Esse compromisso político ainda é frágil, provavelmente mais forte no Brasil do que nos EUA. Nos EUA, temos municípios e estados agindo de forma firme, mas eu diria que o Brasil está a frente. Questões jurídicas nos EUA tem nos impedindo de acabar com a propaganda do tabaco. Eu diria que isso continua sendo uma luta nos dois países e é uma coisa com a qual temos que ser constantemente vigilantes e ativos. Afortunadamente, temos militantes antitabagistas fantásticos e incansáveis que merecem todo o apoio e que tem que ir em frente. A indústria alimentar é que é diferente, pois precisamos comer. Não tem pecado original. Essa é a diferença com a indústria do tabaco. Precisamos ir fundo nas estratégias existentes sobre o tabaco como os impostos, e a tornar os produtos de tabaco cada vez menos gostosos, mais feios e menos interessantes. A política de redução geral da nicotina em todo produto de tabaco, a substância principal, que gera a dependência, também é uma política potencial muito promissora ainda não implementada. Há enorme espaço para inovação e ação a todos os níveis de governo – local, estadual e federal.

Eu diria que isso continua sendo uma luta nos dois países e é uma coisa com a qual temos que ser constantemente vigilantes e ativos. Afortunadamente, temos militantes antitabagistas fantásticos e incansáveis que merecem todo o apoio e que tem que ir em frente. A indústria alimentar é que é diferente, pois precisamos comer. Não tem pecado original. Essa é a diferença com a indústria do tabaco. Temos visto experiências positivas na indústria, que em alguns casos está mudando seus produtos, porém vemos muitas outras experiências onde ela piora. Estão trabalhando com a obrigação de vender mais e gerar lucros, satisfazendo seus investidores. O lobby do tabaco é muito resistente, mas o lobby da indústria alimentar é muito forte, e não há uma percepção negativa por parte da população sobre o impacto que esse lobby tem sobre a saúde, então precisamos criar consciência da população de que isso é um problema.