Saúde, cidadania e desenvolvimento

De Amélia Cohn*

Há duas semanas um articulista de um grande jornal, desses articulistas que tudo sabem e falam sobre qualquer coisa como se fosse a consciência da humanidade, refere-se ao SUS como “a porta do inferno”. Claro que seu perfil encaixa-se dentre aqueles que mais contestam a qualidade do SUS nas pesquisas de opinião: os que não o utilizam. Por outro lado, há pouco tempo o movimento em defesa do SUS, o movimento sanitário, lançou o lema “saúde é desenvolvimento”.

O livro publicado pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento – Saúde, cidadania e desenvolvimento (2013)  traz  novas contribuições para a discussão da relação entre desenvolvimento e saúde, da perspectiva da cidadania. Isto porque congrega especialistas de formação e atuação diversificadas na produção do conhecimento, que no conjunto dos textos apontam para novas dimensões da relação entre saúde e desenvolvimento.

Fruto de seminário organizado pelo CCF em 2012, os capítulos obedecem a organização das mesas. Assim, numa primeira sessão são tratadas as doenças negligenciadas. Aí são apontadas como e de que forma as doenças negligenciadas promovem e reproduzem a pobreza e as iniquidades em saúde, consistindo num grande desafio para os sistemas de saúde. Por outro lado, seu enfrentamento exige que doenças diferentes sejam objeto de medidas diferentes, e ao mesmo tempo fomento à pesquisa voltada para essas doenças, e também, de máxima importância, incorporação dessa temática na formação de recursos humanos.

A segunda sessão, destinada ao mercado da saúde e o desenvolvimento no Brasil, trata de duas questões cruciais para a relação saúde, cidadania e desenvolvimento: a indústria farmacêutica e a financeirização da saúde a partir dos planos e seguros privados de cobertura médica. Neles são tratadas questões de fundo para o ímpeto expansionista do setor privado na saúde, que não se explica pelo crescimento da demanda interna (este é apenas um aspecto), mas sim, fundamentalmente, no movimento de capitalização, fusões e aquisições que ocorre no interior do próprio segmento. Aí sim temos implicações sobre o modelo de desenvolvimento que vimos implementando no país nesse período recente no que diz respeito à saúde e cidadania. Verifica-se não só a expansão do segmento privado da saúde como a opção que faz, sem capacidade regulatória do Estado, por resultados de curto prazo. Ora, cidadania e desenvolvimento (e saúde) exigem planejamento e diretrizes de médio e longo prazos.

A terceira sessão trata dos investimentos públicos na saúde e desenvolvimento no Brasil. Está voltada para a questão da incorporação tecnológica na saúde (lembre-se que investimentos em tecnologia do setor promovem inputs e outputs no setor produtivo) e a remuneração desigual a favor dos grandes núcleos econômicos do setor da saúde. Para não mencionar o diferencial de remuneração entre SUS e setor privado da saúde, seja ele produtor de serviços assistenciais, seja ele operador de planos e seguros de saúde. Por outro lado, desmistifica-se que saúde seja “gasto”, demonstrando-se como é investimento para a economia e a sociedade, num duplo sentido: de um lado, porque a cada R$ 1,00 investido na saúde, podem ser gerados R$ 1,70 de produto, quando se completa o ciclo; de outro porque investimentos no SUS promovem a equidade, a justiça social, e portanto a cidadania.

Não ficou de fora da discussão a questão ainda relativamente pouco abordada entre nós do direito sanitário, da perspectiva da necessidade de se incorporar profissionais da área do direito nessa discussão, mas sobretudo, de se incorporar a dimensão da articulação entre saúde e desenvolvimento da perspectiva do direito ao desenvolvimento enquanto um direito universal e inalienável, e que exige políticas de desenvolvimento que respeite as regras de relações econômicas minimamente equitativas, árdua tarefa em sociedades capitalistas semiperiféricas, para utilizar uma expressão de Boaventura de Souza Santos.

Encerram o volume três textos sobre as experiências de reforma da saúde: os casos do México, do Chile e do Brasil. Neles são apontadas, além das especificidades de cada uma dessas experiências, a dimensão da forma perversa de articulação entre  economia e saúde no processo de reformulação das políticas e dos sistemas de saúde desses países; o predomínio crescente de concepções neoliberais que norteiam a sua forma de implementação; e a desmistificação do caso brasileiro, já que aí são tratadas as ambivalências dos rumos atuais na implementação do SUS.

Conclui-se disso tudo que o sabor final depois de percorrido o livro seria de pessimismo? Não! Mas sim de que se fazem necessárias novas reflexões e tematizações sobre a questão dessa tríade – saúde, cidadania e desenvolvimento e que se retomem as propostas do que Arouca denominava de “projeto civilizatório” que representavam as propostas para a saúde dos anos 70 e 80, décadas efervescentes no pensamento latino americano e brasileiro da Saúde Coletiva.

O SUS não é a porta do inferno, nem tampouco saúde é desenvolvimento tout court. A relação entre ambos, da ótica da cidadania, exige muito mais. Nesse sentido, talvez a questão dos determinantes da saúde represente um avanço, mas a se constatar a partir da maneira como serão entendidos e operacionalizados seus componentes. Que, cá entre nós, só serão eficazes para a construção de novos parâmetros de pensamento e ação no setor se vinculados a um projeto nacional para a sociedade brasileira.

É com essa preocupação que o seminário foi organizado, e o livro publicado. Nada mais coerente com o pensamento de Celso Furtado, que sempre concebeu o desenvolvimento como um processo global, da sociedade como um todo, e mais que isso, que não se resumia à capacidade técnica de planejamento, mas implicava a imbricação das várias dimensões da sociedade, e a capacidade de se articular aquela capacidade a ações políticas e propositivas que lhe dessem sustentação social e política.

*Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisantos, professora aposentada da USP e pesquisadora sênior do CNPq