Caso Torres e a judicialização do parto

Por Cleusa Pavan * e Fábio Alves**/ publicado no Correio Braziliense

O cotidiano da vida tem apresentado questões que mobilizam afetos e expõem valores de cada pessoa ou de determinado conjunto delas. A todo o tempo, somos motivados por interesses, que podem entrar em conflito, ultrapassando a capacidade de diálogo e gerando imposição de valores de determinados grupos sobre outros. E espera-se que as instituições possam mediar essas relações, equilibrando as forças e o poder na sociedade. Entretanto, as próprias instituições, muitas vezes, são impedidas de cumprir suas funções essenciais, pois são compostas e operadas por pessoas — igualmente atravessadas por forças em conflito.

A instituição saúde não escapa de tal conformação. Disputas de interesses, diversidade de valores ético-políticos, poder acentuadamente localizado em alguns grupos mais do que em outros, formas de organizar o trabalho e maneiras de atuar do trabalhador da saúde em contraposição às necessidades e expectativas dos usuários ou pacientes, tudo isso desloca a saúde do cumprimento de seu papel social, ou pode produzir equívocos comprometedores da saúde física ou psíquica das pessoas.

Este é um tema por excelência da Política Nacional de Humanização (PNH): os modos de se organizar processos de trabalho para produzir saúde num registro em que interesses e necessidades sejam discutidos, levados em consideração, pactuados e co-responsabilizados. Temos no Caso Torres boa oportunidade para considerar o quanto a PNH pode contribuir para que o cuidado em saúde se faça respeitando não apenas os critérios técnicos responsáveis pela defesa e preservação da vida dos usuários, mas também respeitando os jeitos dos usuários quererem estar no processo de atenção, na condução de seu tratamento, nos partos e no nascimento dos filhos etc.

Não podemos aceitar que forças corporativas das profissões em saúde sejam as únicas a determinar o processo de trabalho envolvido na atenção em saúde. Entendemos que as pessoas têm buscado diversas alternativas nas ciências e nos diferentes saberes para produzir novas relações corpo, mente, sociedade, vinculação.

A PNH investe nas ações em saúde que legitimam espaços de escuta qualificada e compreensão das pessoas em suas formas de viver e desejar o que consideram bom para a própria vida. Investe, enfim, em relações que possam fundar modos de comunicação baseados no compartilhamento de interesses, necessidades e desejos e na inclusão e processamento dos conflitos que advêm dessa ação de criar um comum entre os sujeitos de maneira democrática.

A humanização do SUS reafirma, articula e propõe ferramentas para incentivar ou produzir melhorias na clínica dos Trabalhadores da saúde, ferramentas para o desenvolvimento de uma clínica ampliada e compartilhada com discussão em equipes multidisciplinares e construção de projetos terapêuticos singulares, numa relação respeitosa e honesta.

Por seu lado, estamos também na defesa dos direitos dos usuários, potencializando mecanismos éticos-políticos que os assegurem e os protejam de determinações que influenciam uma assistência em saúde de qualidade ruim ou equivocada.

A PNH propõe relações que ampliem os graus de sociabilidade e contribuam com a produção de subjetividade com respeito à diferença, elaboração de conflitos e, fundamentalmente, intercessões em favor da produção da justiça social no setor saúde.

O caso do hospital do município de Torres (RS) abre precedentes para continuarmos a pensar a atenção ao parto. Realizaremos a Semana Nacional de Humanização, entre 7 e 11 de maio, mobilizando cerca de 50 mil pessoas em todo o país, com mais de 725 atividades cadastradas na programação, em mais de 185 cidades de todos os estados brasileiros.

Vamos garantir intensa mobilização, colocando em análise o tema, resguardando a integridade e os direitos das usuários, trabalhadores e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), propondo lógicas institucionais democráticas e participativas, incluindo e dialogando na direção da produção de um bem comum. Façamos desse momento o nosso ato político.

 

*Cleusa Pavan é apoioadora do Humaniza SUS

** Fábio Alves é coordeandor da política nacional de Humanização do SUS