Direito integral e universal à saúde dos trabalhadores: avanços e desafios, por Claudia Chiavegatto

Por Claudia Vasques Chiavegatto*

Foto: Ricardo Alves

 

No Brasil, desde 1990, com a promulgação da Lei Orgânica de Saúde, estão previstas ações de saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde (SUS). Este importante marco rompeu com a lógica então vigente, na qual apenas trabalhadores com contratos formais de trabalho tinham acesso aos serviços de saúde. Apesar da prescrição formal do direito à atenção integral e universal à saúde dos trabalhadores, os mais de vinte anos do SUS ainda encerram um desafio: a inserção efetiva de ações do campo saúde-trabalho-ambiente na rotina dos serviços da rede, especialmente na prática da Atenção Primária à Saúde (APS). A descentralização do modelo organizado em Programas e Centros de Referência em Saúde do Trabalhador vem ocorrendo desde a criação do SUS. Em 2002 foi organizada uma Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), composta por cerca de 200 centros de referência em todo o país. Importantes por seu papel na ampliação da visibilidade da área saúde e trabalho e pelo incremento na interlocução com os gestores nos três níveis de governo, permitiu também o acúmulo de experiências e saberes e a ampliação da capacidade técnica, crescentemente configurando-se como polos de suporte técnico para a Rede de Atenção Primária, entendida como eixo coordenador do cuidado integral e ordenador das redes de atenção à saúde no Brasil (DIAS, 2011).

A inserção de ações de saúde do trabalhador na Atenção Primária à Saúde é preconizada pelas Organizações Panamericana e Mundial de Saúde e representa estratégia adotada pelo Ministério da Saúde. Justifica-se plenamente não apenas pelas definições legais – constituição brasileira de 1988, a lei 8080 e a norma operacional em saúde do trabalhador, NOST-SUS 1998 – mas principalmente por questões técnico-operacionais que considerem epidemiologia e territorialidade. As equipes de saúde da família lidam no cotidiano com diversas enfermidades relacionadas ao trabalho e estão inseridas nas comunidades onde vivem, trabalham e adoecem os trabalhadores. O cuidado ofertado pela Atenção Primária, por sua capilaridade, permite cobertura universal da população trabalhadora. Especialmente no Brasil, em que a precarização e desregulamentação do trabalho são processos crescentes e onde é grande o nível de trabalho informal e domiciliado, a APS ocupa naturalmente posição de destaque para o desenvolvimento dessas ações.

Apesar de promissor, este cenário não está isento de desafios, dentre os quais infraestrutura deficiente das redes de saúde, condições de trabalho inadequadas e alta rotatividade de profissionais na APS (especialmente médicos), ausência de fluxos bem definidos e eficientes de regulação na estrutura do SUS; preponderância histórica de ações assistenciais sobre ações de vigilância, deficiência de formação em Saúde do Trabalhador, deficiência de suporte técnico especialmente em situações complexas, sobrecarga de trabalho das equipes da atenção primária, financiamento atrelado a resultados de programas pré-estabelecidos pelo Ministério da Saúde, dentre outros (CHIAVEGATTO, 2010). Os inúmeros entraves a este desafiador caminho devem ser enfrentados e alguns obstáculos começam a ser superados. Se a princípio argumentava-se sobre a resistência dos profissionais da atenção primária, sobrecarregados de atividades e programas pelo governo federal, hoje caminhamos para a ampliação do olhar da atenção primária sobre o trabalho e para o reconhecimento dos seus reflexos sobre o viver e adoecer dos trabalhadores, de sua família e da comunidade, demonstrado por estudos que apontam o reconhecimento destes profissionais quanto ao seu papel no desenvolvimento das ações de saúde do trabalhador (CHIAVEGATTO,2010; LACERDA E SILVA, 2009).

Neste novo contexto e em sintonia com a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, publicada em 2012, a CGSAT (Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde) tem adotado como estratégias a integração da vigilância em Saúde do Trabalhador junto aos demais componentes da vigilância em saúde; a análise do perfil produtivo e da situação de Saúde dos Trabalhadores; a efetiva estruturação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador – RENAST, no contexto da Rede de Atenção à Saúde – RAS; o fortalecimento e ampliação da articulação intersetorial; o estímulo à participação da comunidade, dos trabalhadores e do Controle Social; o desenvolvimento e capacitação de recursos humanos e o apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas (VILAS BOAS, 2011). Dentre tais iniciativas estratégicas, podemos citar projetos de apoio matricial em saúde do trabalhador, nos quais tanto Centros de Referência em Saúde do Trabalhador, quanto instâncias de gestão e referências técnicas em saúde do trabalhador e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) asseguram suporte assistencial e técnico-pedagógico à atenção básica, assim como à atenção especializada e hospitalar; o compartilhamento de experiências exitosas através de mostras e oficinas; o estabelecimento de cooperação técnica com a Universidade Federal de Minas Gerais para a produção de conhecimento na área (DIAS, 2012); a revisão do Caderno de Atenção Básica número 5 (BRASIL, 2002) e a elaboração do Caderno de Atenção Básica – Núcleo de Apoio à Saúde da Família (BRASIL, 2010), dentre outras. Para a superação dos desafios e efetivação da inserção das ações de saúde do trabalhador no SUS cabe ao governo federal garantir políticas públicas capazes de sustentar as mudanças.

 

claudia_chiavegatto* Claudia Vasques Chiavegatto é médica do Trabalho. Mestre em Saúde Pública. Pesquisadora voluntária junto ao Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências

BRASIL. Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 ago. 2012. Seção I, p. 46-51. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html>.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes do NASF: Núcleo de apoio a Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. (Série A. Normas e Manuais Técnicos – Cadernos de Atenção Básica, n. 27). Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd03_12.pdf>.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Cadernos de atenção básica. Caderno nº 5. Saúde do Trabalhador. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad27.pdf>.

BRASIL. Presidência da República Decreto 7.602, de 07 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 8 nov. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7602.htm>.

DIAS, E. C. (Coord.). Desenvolvimento de conceitos e instrumentos facilitadores da inserção de ações de saúde do trabalhador na atenção primária de saúde, no SUS. Belo Horizonte: UFMG, 2012. (Relatório técnico final)

DIAS, E. C. et al. Desenvolvimento de ações de saúde do trabalhador no SUS: a estratégia da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador. In: MINAYO-GOMEZ, C.; MACHADO, J. M. H.; PENA, P. G. L. (Org.). Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. 1. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011, v. 1, p. 107-121.

CHIAVEGATTO, C. V. A Atenção Primária e sua percepção quanto ao desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador no SUS em Minas Gerais. 2010. 128 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)-Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2010.

LACERDA E SILVA, T. Contribuição ao processo de capacitação dos ACS para o desenvolvimento de ações de saúde do Trabalhador. 2009. 146 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)-Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2009.

VILAS BOAS, S. W. Apresentação do Manual da Gestão da Renast. In: ENCONTRO NACIONAL DA RENAST, 5., 2011. Relatório final… Brasília: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: <http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-do-trabalhador/v-encontro-nacional-renast>.