“Grávida, pobre e negra” – quando a violência e omissão obstétrica matam e parir vira uma questão de coragem

Por Juliana Gonçalves*/ Do Blogueiras Negras

“Reparação simbólica e reconhecimento da sua morte evitável. Pela melhoria da qualidade do atendimento à saúde das mulheres”. Esses são os dizeres da
placa que nomeia o espaço de convivência do Hospital Estadual da Mãe, no município de Mesquita, no Rio de Janeiro. Acima, se lê “Alyne da Silva Pimentel”.

Alyne já devia se sentir mãe de seu bebê de seis meses, quando foi apenas medicada e encaminhada para casa apesar das fortes dores abdominais, náusea e vômito. Imagino a preocupação e medo que sentiu. Dois dias depois, voltou à Casa de Saúde Nossa Senhora da Glória de Belford Roxo (RJ) onde foi constatado que ela carregava um bebê morto. Não operaram Alyne. Induziram seu parto e só 14 horas depois de dar à luz a uma criança morta, Alyne foi operada para retirada da placenta. Já era tarde, a jovem já tinha hemorragia e vomitava sangue. Tentaram transferi-la para outra unidade médica. Mas Alyne teve que esperar oito horas pela ambulância e chegou ao Hospital Geral de Nova Iguaçu já em coma. A moça morreu cinco dias depois de buscar ajuda hospitalar pela primeira vez. O laudo médico assinala a morte por hemorragia interna. Lendo isso parece que a morte da moça foi quase natural. Mas Alyne não morreu, ela foi morta em 2002, graças a uma sucessão de erros e descaso no atendimento obstétrico.

Os requintes de crueldade do caso Alyne chocaram a população e, em 2011, o estado brasileiro foi condenado pelo Comitê para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) das Nações Unidas a cumprir uma série de recomendações em relação ao caso, como indenizar a família da paciente e garantir o direito das mulheres à maternidade segura e ao acesso adequado a procedimentos obstétricos.

Em março deste ano, a família de Alyne recebeu a reparação financeira (R$ 131 mil reais). “Não quero que aconteça com ninguém o que aconteceu com a minha filha”, afirmou a mãe Maria de Lurdes Pimentel.

A moça negra, pobre e moradora da Baixada Fluminense tornou-se símbolo da luta contra a violência obstétrica. Violência marcada não pela falta de acesso, mas sim, pela falta de qualidade e humanização do atendimento.

Negra, pobre e moradora de área periférica, a descrição de Alyne se encaixa perfeitamente com a minha. Sua imagem em preto em branco surgiu na minha mente dias depois de descobrir que estava grávida. O medo de um pré-natal no SUS, de não ter um atendimento respeitoso, de ter a minha saúde e a do meu bebê negligenciada fixou na minha mente o rosto daquela jovem de 28 anos como eu, grávida de seis meses como eu, negra, como eu.

Infelizmente, esse medo também está embasado em números desumanos. Dados da pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo (2010), revelou que 25% das mulheres relataram algum tipo de violência durante o atendimento ao parto. Aqui estão incluídos xingamentos, realização de procedimentos dolorosos sem aviso e/ou consentimento, gritos, impedimento da presença do companheiro/a, entre outros. Ao falarmos apenas da rede pública, a violência obstétrica é citada por 74% das mulheres.

O Ministério da Saúde afirma que hoje a mortalidade materna fica na razão de 78 a cada 100 mil partos. Diferente do que pode parecer, esse número não é baixo. Prova disso foi a afirmação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que o Brasil ainda é responsável por cerca de 20% das mortes de grávidas que ocorrem todos os anos na América Latina e no Caribe.

Até mesmo o Ministério da Saúde já assumiu que essas mortes de mulheres são evitáveis em 92% dos casos, e que mulheres negras possuem mais chances de morrer por causas relacionadas à gravidez, parto ou pós-parto. A mortalidade materna de mulheres negras está 65% acima da de mulheres brancas[1]. Ou seja, o racismo institucional hierarquiza a vida dessas mulheres e reproduz na área da saúde as desigualdades tão profundamente enraizadas que atingem diretamente a qualidade do atendimento recebido. Além das negras, esse cenário fica cada vez mais hostil para mulheres solteiras, indígenas e que vivem em regiões pobres.

SUS, parto normal e violência

A extrema dimensão da violência levou a vida da Alyne e do seu bebê. Não raro ouvimos histórias de mulheres que sobreviveram, mas nem por isso deixam de trazer em seus corpos marcas de um parto violento. O temor justificado de sofrer nesse momento que deveria ser sublime ou da criança correr algum risco induz cada vez mais mulheres a procurarem um convênio médico ou clínica particular para dar à luz.

Quando parentes e amigos ouviam que eu estava grávida e não tinha convênio médico, as sobrancelhas de espanto e preocupação já se levantavam. Logo percebi que há uma associação direta na cabeça das pessoas entre realizar o parto no SUS e sofrer algum tipo de violência obstétrica.

Mais tarde percebi o quanto o parto normal realizado pelo setor público se transformou em sinônimo de violência. E, por fim, parto normal ou natural virou um ato de agressão. Quando digo para algumas pessoas que quero parto natural, escuto com frequência: “Nossa, quer sofrer?” ou ainda “Que coragem!”.

Ouvir isso de outras mulheres só mostra que a cultura do medo (a serviço de questões mercadológicas) está nos fazendo crer que somos incapazes de parir sem grandes aparatos médicos e intervenções. Minha avó teve nove gestações, o que ela diria ao ouvir que o ato parir virou hoje um ato de coragem?

Bom, parir no SUS pode ser considerado violento pelo uso de técnicas obsoletas, pela falta de respeito à vontade da mulher, pela não humanização do tratamento, pelo excesso de demanda, entre outras razões. E não por ainda realizar mais partos normais do que cesárias. Hoje 62% dos partos no setor públicos são normais e, no privado, apenas 20%.

O caso Adelir demonstrou que a autonomia e poder de decisão da mulher no momento de ter seu bebê estão sendo cerceados. Vale lembrar que a decisão da gestante sobre a forma de nascimento é um direito assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.

Dados recentes divulgados pela Revista Póli [2], mostram que entre 70% e 80% das mulheres brasileiras tiveram seus filhos/as por meio de cesárias, mas desejavam ter partos normais. Segundo eles, apenas 48% das brasileiras conseguem parir seus rebentos.

Chega de parto violento para vender cesárea!

O terrorismo imposto sob o parto normal é alimentado de maneira distinta no setor público e privado. Nos corredores do SUS dizem que a mulher “vai ficar lá sofrendo horas a fio, até ter o parto via vaginal”. Nos hospitais particulares vão tentar convencer a gestante que a cesariana é menos perigosa e menos traumática para o bebê.

Evidente que há mulheres com histórias de partos tranquilos no SUS, mas, entre o sim ou não, as que podem, correm atrás de uma cesariana. É esse o cenário que temos hoje no Brasil: uma máquina de saúde que precariza ao máximo o serviço público – e com ele a chances de um parto normal de qualidade e sem violência – para valorizar os serviços prestados pela saúde privada onde vendem-se cesáreas aos montes. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil tem o maior índice de cesarianas do mundo: 52,3% dos partos. Uma taxa aceitável seria de 15%.

Na contramão desse processo, muitas mulheres buscam alternativas onde podem exercer seu protagonismo no nascimento do seu bebê e ter um atendimento mais humano. Em São Paulo as duas únicas casas de parto existentes na cidade têm esse papel.

A Casa de Sapopemba existe há 15 anos. É a única ligada à rede municipal de saúde. Sob o critério de atender gestantes de baixo risco que queiram ter partos naturais, a casa atende em média 20 partos/mês, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. A ideia é criar mais oito unidades como essa na cidade.

A outra opção de parto humanizado e natural é a Casa Ângela mantida pela Associação Comunitária Monte Azul que fica na zona Sul da cidade. O acompanhamento pré-natal e parto são realizados sem custos para as gestantes que moram na região.

Foi lá que nasceu Iara Badu, de 1 ano de idade, filha da designer Nina Vieira. Como eu, quando se descobriu grávida, Nina entrou de cabeça nesse universo de partos normais, naturais, humanizado, dôulas, etc. “Decidi que um parto humanizado e natural seria o melhor para mim e para minha filha e logo vi que a própria estrutura de um hospital impossibilita essa humanização”, conta Nina que já na primeira consulta na Casa Ângela percebeu a diferença no tratamento. “A enfermeira perguntou o nome da criança, porque queria chamá-la pelo nome; ela pediu licença para tocar a minha barriga”. A mãe e o companheiro de Nina assistiram ao parto realizado por uma parteira e uma enfermeira. “Me senti completamente respeitada. Ninguém pediu para eu fazer força ou gritou comigo. Fui eu mesma conduzindo o ritmo do meu parto”.

No mês passado, quando perguntei para o meu médico o que ele achava sobre fazer meu parto numa casa de parto, ele me olhou com estranhamento, como se eu tivesse tido que gostaria de ter o meu filho num açougue na esquina de casa. Ele disse: “Olha, sou um médico ‘antigas’ não tenho experiências com partos humanizados ou em casa”. Fiquei calada pensando o quão contraditório era aquilo que ele estava dizendo. Ele continuou “Partos são imprevisíveis, em um momento está tudo bem e de repente acontece uma complicação”. Por fim, disparou: “O importante é que vai nascer, não sei porque está tão preocupada com o como”.

Por terem uma formação intervencionista, muitos médicos engrossam o coro regido pela cultura do medo que apresenta a cesária como melhor opção. Não sou otimista com relação à mudança de pensamento da comunidade médica, mas sou extremamente otimista sobre o poder de transformação advindo da circulação de informações que empoderem e encorajem a autonomia das mulheres de poder parir em paz.

 

Juliana Gonçalves é jornalista, 28 anos, negra e grávida de seis meses como Alyne, desejando um parto natural como Adelir.

 

Notas

[1] Dado Ministério da Saúde e IBGE.

[2] Número 33 de março/abril de 2014.