Diferença de classe no SUS, por Ligia Bahia

Por Ligia Bahia*/publicado no Jornal O Globo

Foto: Luciana Areas

 

“A Constituição de 1988 não autoriza que os recursos públicos sejam usados para nenhuma diferenciação de classe e os enunciados das manifestações de junho avisam, para quem esqueceu, que o sentido dos sistemas de saúde é a redução das desigualdades”.

 

Qualquer mortal que desconheça detalhes íntimos do sistema de saúde terá dificuldades para entender a convocação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de uma audiência pública, a ser realizada no fim deste mês, para debater a diferença de classe nas internações do SUS. Como assim, diferença de classe em um sistema de saúde do século XXI que se pretende universal e igualitário? A pergunta tem duas respostas corretas: não, não é possível, e não, mas acontece. Esse diferencial, via oferta de melhores acomodações e atendimento personalizado para pacientes, é apenas um entre muitos outros. O que o STF vai examinar é uma das formas antigas e residuais das “diferenças de classe” na saúde pública, aquela estabelecida pelo pagamento direto de pacientes ao médico e uma Santa Casa conveniada com o SUS, pela internação em quarto particular. O médico, credenciado ou não, ganha uma remuneração adicional (o que o SUS paga mais o valor cobrado ao paciente) e o hospital pode estabelecer um preço pelo quarto individual.

Essa distinção existe desde que o Funrural passou a pagar um montante fixo para que as Santas Casas atendessem quem trabalhava no campo e era categorizado como não contribuinte. Indigentes e trabalhadores rurais ficavam internados em enfermarias e os trabalhadores especializados podiam optar por um atendimento personalizado. O Inamps, órgão que repassava recursos públicos para as Santas Casas, admitia oficialmente a “livre escolha de profissionais por parte da clientela previdenciária”. Naquela época, tudo o que a Previdência Social do regime militar fazia era atribuído ao autoritário modelo estatal-privatista. A referência dos defensores da saúde pública era o Plano de Metas de 1963, que, durante o governo João Goulart, previu a organização da infraestrutura pública para a saúde, uma vez que a existência de “particulares que dependem cada vez mais do auxílio do poder público para seu custeio representam uma orientação contrária aos princípios da organização democrática que tornam incompatível o emprego do dinheiro público para fins de caridade ou filantropia”.

O SUS foi concebido para mudar o padrão assistencial baseado no seguro para o direito universal, como uma alternativa de reconexão dos projetos interrompidos pelo autoritarismo com o futuro democrático. Mas a onda neoliberal, sucedida por marés pragmáticas ininterruptas, tragou as intenções de construir um amplo sistema público de saúde. As velhas práticas sobreviveram e outras, ainda mais potentes, se legitimaram. Está certo que não se pode cobrar pelo uso privilegiado de leitos. E o fato de hospitais filantrópicos serem operadoras de planos de saúde, pode? Não tem cabimento que os médicos recebam por fora pelo atendimento no SUS e uma cooperativa médica, sem fins lucrativas, que tem proteção fiscal, pode financiar time de futebol? E o que dizer das ameaças de instituição de duplas filas em hospitais públicos? Esses dispositivos são compatíveis com a Constituição?

Seria proveitoso que o entendimento do tema pelo STF partisse da compreensão de que a sobrevivência e o surgimento de novas práticas discriminatórias em contextos democráticos não têm explicações e soluções simples. Proibir o funcionamento do varejo e fechar os olhos para o atacado não detém a expansão e o surgimento de circuitos diferenciadores. Os planos vendidos a preços baixos permitem a entrada dos pacientes como particulares e depois a transferência para hospitais públicos ou cobrança do atendimento pelo SUS. Essa distinção de classe, que é conhecida como “o doente entra pelo plano e sai pelo SUS”, serve para internações em unidades intensivas por períodos prolongados, uso de medicamentos caros e transplantes.

Segurar o touro pelo rabo ajuda mas, para deter a marcha da diferenciação no atendimento à saúde, é importante que o julgamento do fato inclua as alegações que o justificam. Assim a repercussão da decisão poderá se estender para outras situações de distinção subsidiadas com recursos públicos. O argumento que é direito do paciente pagar “diferença de classe” — e especialmente a concepção de que é possível e até benéfico para o SUS o uso combinado do público com o privado, para prover atendimento para clientelas especificas — justifica todas as diferenciações financiadas com parcelas menores ou maiores do fundo público. Há empresas ganhando rios de dinheiro direta ou indiretamente provenientes dos impostos pagos por todos, em nome de uma suposta ajuda ao SUS. Perto da escala das operações financeiras e comerciais sustentadas pela transferência direta ou indireta de pacientes do privado para o público, as remunerações indevidamente auferidas por médicos e Santas Casas não passam de caraminguás.

O ressarcimento ao SUS continua sendo contestado e não aplicado integralmente. Sete anos depois do parecer do STF em 2003, julgando-o constitucional, um dos recém-indicados para a diretoria da ANS declarou com todas as letras sua contrariedade à decisão da Suprema Corte. A diretoria da ANS, a qual o indicado pode vir a integrar, julga inúmeros processos de planos de saúde contra o ressarcimento. Por exemplo, na 396ª Reunião Ordinária da Diretoria Colegiada da ANS, de 7 de março de 2014, foram votados 99 recursos de contestação pelos planos de saúde. A política de saúde regime militar foi a de estimulo explicito ao empresariamento da saúde. Na versão contemporânea de privatização, os mesmos termos aparecem invertidos: o pobre SUS só subsiste graças a um setor privado-dependente, mas disfarçado de autônomo. A Constituição de 1988 não autoriza que os recursos públicos sejam usados para nenhuma diferenciação de classe e os enunciados das manifestações de junho avisam, para quem esqueceu, que o sentido dos sistemas de saúde é a redução das desigualdades.

 

*Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).