Orçamento Impositivo e a saúde pública no Brasil. O que realmente está em jogo? Por Paulo Fleury-Teixeira

Por Paulo Fleury-Teixeira*

A comissão especial do orçamento impositivo aprovou na última terça-feira (dia 29/04) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 358/13, oriunda do Senado Federal. O relator acatou na íntegra o texto apresentado pelo Senado. O parecer será encaminhado para votação em dois turnos no Plenário da Câmara. Se aprovado, segue para promulgação das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado (1).

 

Mas o que vem a ser a PEC do orçamento impositivo?

O Senado, em consonância com o Governo Federal (PT), aprovou, no fim do ano passado, a proposta do orçamento impositivo, cujo objetivo principal é normatizar as relações entre o executivo federal e o parlamento no tocante às emendas individuais de parlamentares à lei orçamentária. Essas emendas individuais de parlamentares são, como todos sabemos, moeda de troca corrente nas barganhas, pressões políticas e chantagens entre o Governo Federal e o Congresso Nacional. Com a emenda constitucional o governo federal fica obrigado a executar emendas até 1,2% de suas receitas correntes líquidas (RCL), o que deverá reduzir sensivelmente a capacidade do Governo de exercer pressão e fazer chantagens contra o Parlamento. E o que importa essa medida para a saúde, especificamente?

A PEC 358 estabelece que a metade dos recursos das emendas individuais de parlamentares tem que ser destinada ao investimento em saúde (não podendo ser utilizados para custeio de pessoal) e, o que é o mais importante para o setor: a emenda determina a vinculação de 15% de toda a Receita Líquida da União para a Saúde (2). Para se atingir esse percentual haverá um aumento progressivo até 2018, partindo de um patamar atual próximo de 13%. Caso aprovada a emenda isso resultaria, já em 2014, em aumento de 6 bilhões de reais no orçamento federal para a saúde (passando de 90 para 96 bilhões no ano).

Registre-se que dentro desse percentual das RCL a ser destinado à saúde encontram-se as emendas parlamentares individuais e também os royalties do petróleo e gás natural, de acordo com as regras da Lei12.858/13.

Vale a pena lembrar ainda que a oposição (PSDB) apresentou emenda propondo a taxa de 18% das receitas líquidas para a saúde. Esse percentual seria mais equivalente ao projeto de iniciativa popular e à proposta original da PEC 29, de 10% da receita bruta da União para a saúde (3).

Podemos questionar se não seria melhor a aprovação da emenda da oposição. Podemos e devemos questionar ainda se a oposição tinha qualquer intenção séria ao fazer tal proposta ou apenas procurava “jogar para a plateia”, pois sabia que seria derrotada no Senado, onde o governo tem maioria absoluta. Conhecendo o ‘histórico dos partidos que compõem a oposição hoje e as trapaças, farsas e irresponsabilidades que caracterizam o jogo partidário, não é difícil responder a essa dúvida.

Mas, de todo modo, parece que estamos diante de um passo positivo em que, tanto os partidos da situação quanto os da oposição, estão alinhados com a percepção de que o sistema público de saúde está subfinanciado e estão sendo encontradas soluções, ainda que parciais, para prover mais recursos para o setor.

O que cabe indagar então é: o que podem representar essas medidas, caso venham a ser aprovadas, em termos de saúde e qualidade de vida para a população brasileira?

Uma questão correlata, que necessariamente deve ser colocada aqui é: o Brasil gasta pouco com a saúde?

Vamos começar por essa questão subsidiária.

O Brasil, atualmente, gasta aproximadamente 9% do seu PIB em assistência à saúde. Para efeitos de uma comparação observe-se que esse percentual, em 2011, foi de 9,3% na Inglaterra, 9,4% na Espanha, 11,2% no Canadá e 9,0% na Austrália, países com sistemas de cobertura universal, como o Brasil (não vale rir, pois é o que está escrito na Sagrada Constituição de 1988) (4). Devemos considerar, portanto, que os gastos com a saúde no Brasil são baixos, pois além de, em geral, investir um percentual menor do PIB que os demais países citados, o PIB per capita aqui é algo próximo de um terço da média desses mesmos países. Isso significa que o nosso gasto per capita com a saúde é muito mais baixo que o desses outros países.

No entanto, ao compararmos com países da América Latina, vemos que o Brasil ocupa o quarto lugar em termos de percentual do PIB gasto com saúde, atrás apenas de Cuba, Nicarágua e Costa Rica (5). Além disso, como nos informa André Médici, o gasto em saúde no Brasil é o mais elevado entre os BRICs (6). Olhando por esse lado devemos concluir que, para o nosso nível de desenvolvimento econômico, já investimos bastante em saúde.

Ocorre que aqui, como todos sabemos, o percentual do gasto público é menos da metade do gasto total com a saúde, representando, segundo Gilson Carvalho, apenas algo em torno de 4% do PIB, ficando os restantes 5% por responsabilidade do gasto privado, diretamente das famílias, ou através das empresas, em pagamento a planos de saúde, serviços particulares ou compra de medicamentos (7). Outro dado importante a se observar aqui é que os planos privados de saúde cobrem hoje algo próximo de 25% da população (8), o que nos leva a identificar que, no sistema público de saúde, temos um financiamento realmente deficiente, com mais ou menos 4% do PIB para a assistência à saúde de quase 150 milhões de pessoas, representando um gasto per capita próximo de 700 reais por ano. De fato, para os padrões de países desenvolvidos essa soma é muito baixa. Mas como destaca Médici, o gasto público com a saúde, na China, em termos de percentual do PIB, é cinco vezes menor do que o brasileiro. E, como também é de conhecimento geral, os resultados, em termos de indicadores de saúde e qualidade de vida, chineses não são piores que os nossos, mas, sim o contrário. Acabamos então chegando à infeliz conclusão de que não podemos discernir perfeitamente se investimos mesmo muito pouco em saúde ou não. O que nós todos temos certeza é que as condições de saúde da população brasileira e a assistência no SUS são, no mínimo, insatisfatórias. Um bom dinheiro a mais para o SUS certamente poderia ajudar a melhorar essa situação. Ocorre que, ainda de acordo com os levantamentos de Carvalho, o Ministério da Saúde responde por aproximadamente 45% dos gastos públicos com a saúde, sendo o restante dividido quase igualmente entre os gastos dos estados e dos municípios. Logo deve restar patente que os aumentos de recursos da união terão um impacto limitado em termos do orçamento público para a saúde. Para o ano de 2014, por exemplo, o acréscimo de 6 bilhões de reais, resultaria em um aumento de 0,12% do PIB no gasto com a saúde, ou 40 reais per capita a mais para os 150 milhões de dependentes exclusivamente do SUS para a sua assistência à saúde. Não é difícil avaliar que esses valores, apesar de nada desprezíveis, não deverão fazer uma grande diferença no acesso e qualidade dos serviços de saúde para a população e, muito menos ainda, nas suas condições de saúde e adoecimento.

Claramente o que se pode dizer sobre isso é que com o atual sistema de serviços de saúde caótico, fragmentado, capturado em todos os níveis por interesses privados e corporativos, a injeção desses novos bilhões de reais no SUS deve ter um resultado bem limitado.

Não se trata aqui, jamais, da falsa e mal intencionada pretensão de que apenas com melhor gerenciamento dos esparsos recursos existentes vamos conseguir uma assistência de qualidade para a saúde pública no nosso país. Nem, portanto, da tentativa convergente de se desqualificar a luta por maiores recursos para a atenção à saúde no Brasil.

Trata-se, na verdade de questionar e buscar alternativas para a opção estratégica de acomodação e favorecimento explícito ao setor e às práticas privadas de assistência à saúde dos governos sociais democratas no Brasil, nos últimos 18 anos. Esta é realmente a opção estratégica de nossa socialdemocracia, que se mostra em tudo acomodativa e sem energias para qualquer alteração de vulto nas relações sociais e econômicas em nosso país. Não é mesmo de se estranhar que recentemente o governo federal namorasse a ideia de aumentar as isenções para as empresas privadas criarem planos privados específicos para as classes C e D.

Vamos considerar por um momento esse ponto bastante conhecido por todos nós: as isenções e deduções fiscais para a assistência privada à saúde que drenam recursos vultosos todos os anos dos cofres públicos e que certamente poderiam ser investidos em saúde. Não consegui encontrar uma fonte segura que indicasse o valor anual representado por essas isenções e deduções, mas a única estimativa que pude localizar dá conta de um montante de aproximadamente 16 bilhões por ano (9). Some-se a isso o fracasso da ideia de ressarcimento do SUS pelo setor de saúde suplementar, some-se ainda o quase total controle dos leitos hospitalares pelo setor privado etc. e temos que reconhecer que não é improvável que esses novos recursos se dissolvam nas redes de interesses privados e corporativos que capturam a saúde pública no nosso país.

Mas é óbvio, todos também estamos cansados de saber, está em todos os manuais de saúde coletiva, que: a saúde de uma população não se determina fundamentalmente pela qualidade dos serviços de saúde que ela tem a seu dispor, mas, antes e predominantemente, pela qualidade de vida que essa população realiza e usufrui no seu cotidiano.

Essa lição óbvia é, no entanto, sempre esquecida precisamente quando nos mobilizamos para defender a saúde pública e sem pestanejar concluímos que o problema maior é o subfinanciamento e que nossa maior bandeira é, coerentemente, o aumento dos recursos para o setor de assistência à saúde pública. E por que esquecemos essa obviedade? Talvez porque acreditemos que ela esteja fora do nosso escopo ou mandato profissional ou institucional. Talvez porque acreditemos que os problemas sociais que assolam a saúde e o bem estar da nossa população estão sendo encarados e resolvidos a contento pela social democracia que instalamos no poder nessas duas últimas décadas.

Não posso discutir as diversas visões pessoais e institucionais de missão e compromisso da saúde pública ou coletiva, mas certamente posso avaliar o que está sendo feito em termos de enfrentamento dos desafios sociais no nosso país.

Nesse caso nós temos um ponto crucial, uma questão central a qual todos os demais aspectos da nossa vida social se vinculam mais ou menos diretamente. Trata-se da nossa imensa desigualdade social. E nesse caso os indicadores parecem dar razão a quem pretende que a saúde deve ficar quieta no seu canto, reivindicando os seus 18%, ou 10%, porque o trabalho pesado já está sendo feito e bem feito.

Mas talvez seja o caso de se olhar com mais detalhe e numa perspectiva mais ampla para a realidade e nos perguntarmos: é bem feito pra quem, mesmo?

Os fatos são os seguintes. Desde 2001 / 2002 tivemos uma década seguida de queda da desigualdade social no país. Saímos de um patamar de índice de Gini de 0,62 (o pior nos últimos 50 anos, pelo menos) e chegamos em 2012 ao nível de 0,53, de acordo com os dados da PNAD ou 0,50 de acordo com os dados da PME. Desdobrando-se esses resultados muito positivos em seus fatores causais temos a seguinte distribuição, segundo o IPEA: Trabalho (58%), Previdência (19%), Bolsa Família (13%), Benefício de Prestação Continuada (BPC) (4%) e Outras (6%) (10).

A recuperação do salário mínimo, isoladamente, responde por aproximadamente 40% da queda na desigualdade entre 2002 e 2012. Ocorre que a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2012, contudo, traz um dado preocupante. Pela primeira vez em mais de dez anos não há redução no Índice de Gini, que ficou praticamente estagnado. Em 2011 registrou o valor de 0,527 e em 2012 ficou em 0,526 (11).

Destaque-se ainda, e talvez isto seja o mais relevante aqui, que atingimos agora exatamente o mesmo patamar de desigualdade que tínhamos na primeira metade da década de 60, antes dos efeitos econômicos da ditadura militar começarem a se manifestar (12). As décadas de 70, 80 e 90 elevaram e mantiveram em níveis altíssimos essa desigualdade. Fomos por muito tempo a principal referência mundial em termos de desigualdade social e opressão econômica no mundo. Nessa época éramos conhecidos como a belíndia, ou a sociedade 20 x 80, em que os 20% mais ricos detinham 80% da renda e vice versa. Éramos, naquela época, um dos 10 países mais desiguais do mundo. E, então, o que conseguimos após praticamente 20 anos de social democracia à brasileira? Voltamos ao patamar pré ditatura militar e, a se tomar o acesso aos planos privados de saúde como um parâmetro, deixamos de ser a sociedade 20 x 80 para nos tornarmos uma sociedade 25 x 75.

Não se pode considerar desprezível essa mudança, mas temos que constatar que é apenas uma tímida recuperação do terreno perdido durante a ditadura militar. Para se ter uma ideia clara da pequenez dessa recuperação basta referir que, ainda de acordo com o relatório do IPEA, o percentual de pessoas que tiveram acesso simultaneamente a energia elétrica, coleta de lixo, esgotamento sanitário adequado e acesso adequado à rede geral de água aumentou 1 ponto percentual em 2012, atingindo o universo de 59,2%.

Segundo os dados da PNAD de 2012, mesmo esse processo tímido de redistribuição da riqueza social no nosso país pode ter encontrado um limite. Não será um reflexo disso a ressurgência dos movimentos de rua que despontaram em 2013 e seguem intensos até o momento, ainda que se apresentando agora nas periferias, nas favelas, nos guetos, no território dos 75%?

Parece que chegamos àquele ponto em que, para a nossa elite econômica e política, conservadora e antipopular, cessa-se toda a cortesia. Estamos de fato nesse momento diante de uma forte campanha da “intelligentsia” econômica instalada no governo e nos principais partidos de oposição para que se reveja, já em 2015, a fórmula de reajuste do salário mínimo, que está sendo considerada inflacionária, artificial e negativa para o crescimento econômico.

Somos forçados a concluir que tudo o que andamos foi muito pouco, que temos uma das sociedades mais injustas e opressivas do universo, que temos uma das tradições políticas mais conservadoras e elitistas de todo o mundo, que temos ainda uma verdadeira guerra civil de extermínio não declarada contra pobres, pretos, periféricos e índios nosso país.

Diante desse quadro assumir como a principal ou única bandeira do setor de saúde o aumento dos recursos para a assistência é, para dizer o mínimo, rezar a cartilha da social democracia tímida e acomodada que vem nos dirigindo.

 

foto_paulofleury* Paulo Fleury-Teixeira é médicopesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da UFMG. Tem  especialização em medicina Preventiva e Social pelo Hospital das Clínicas da UFMG, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Notas

(1) https://cebes.org.br/2014/04/comissao-especial-aprova-orcamento-impositivo-texto-segue-para-o-plenario-da-camara/ (2)http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F27F402FD045C53F1A348144E4D070E1.proposicoesWeb2?codteor=1200541&filename=PEC+358/2013 (3)  http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/11/1370537-senado-aprova-orcamento-impositivo-com-15-das-receitas-da-uniao-para-saude.shtml (4) http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/estudos/2013/NTn12de2013FinanciamentodaSadeBrasileOutrosPasesV.Prel.pdf (5) http://monitordesaude.blogspot.com.br/2012/06/comparacoes-internacionais-sobre-o.html (6) http://files.bvs.br/upload/S/1413-9979/2011/v16n1/a1867.pdf (7) http://www.saudemaisdez.org.br/index.php/2012-10-10-19-31-44/analise-de-conjuntura/26-analise-de-conjuntura-do-financiamento-publico-federal-de-saude-no-brasil (8) http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-11-29/percentual-da-populacao-que-tem-plano-de-saude-aumenta-para-247 (9) http://bogdopaulinho.blogspot.com.br/2013/07/medicos-e-convenios-recebem-quase-r-16.html (10)http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicadodoipea155_v5.pdf (11) http://www.brasil-economia-governo.org.br/2013/10/16/a-desigualdade-de-renda-parou-de-cair-parte-i/ (12)http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicadodoipea155_v5.pdf