O pai, dois pais :: Por Sylvia Ypiranga

* Por Sylvia Ypiranga

A última lição

Uma das últimas coisas que o meu pai me ensinou foi que “uma vida sem problemas é privilégio dos medíocres”. Como aprendiz contestadora que sou (ou como ele me ajudou a ser), aceito esta frase com ressalvas. Papai não era uma pessoa medíocre, nem tampouco tinha uma vida sem complicações. Entendo que ele, como sempre, me mostrava o lado glamouroso das intempéries com as quais nos deparávamos mais de uma vez. Entretanto, gostaria que fosse só isto… Ou talvez, eu invejasse a felicidade simples daqueles que ele considerava “medíocres”.

Os amigos

O que eu e meu irmão vivemos, como filhos do papai, é muito difícil de contar num só capítulo. Ele não isolava as partes de sua vida. O nosso pai nunca se separou do Eleutério-do-Partidão, do Leleco-do-Balaco-baco, do Eleutério-do-Cebes, do Eleutério-do-NUTES, do Eleutério-do-Nesp, do Eleutério-da-Opas, do Eleutério-amigo, do Eleutério-inimigo, do Eleutério-político, do Eleutério-companheiro e de tantos outros Eleutérios amados e odiados.

A nossa vida era compartilhada com os amigos: sempre compartilhamos o papai com os amigos. Acredito que se houvesse alguma coisa que papai pudesse congelar e carregar sempre consigo, essa ‘coisa’ seria os amigos, mesmo que eles não soubessem disso. É legal que ele receba, nesta homenagem, o carinho dos amigos, mesmo que ele não saiba disso.

O que foi

Papai fo¡ meu pai por opção. Mamãe costumava dizer que ele foi escolhido; ele contestava: ele que tinha nos escolhido. Numa época em que nem a ‘amizade colorida’ ou a ‘produção independente’ tinham sido inventadas, papai e mamãe desafiaram os cos-tumes. Desde pequena, eu sempre gostei de dizer: “meus pais namoraram, eu nasci e eles casaram”, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E, com o rabo de olho, adorava ver as carinhas de surpresa dos meus coleguinhas de vida normal.

Não foi uma situação fácil de ser encarada, mas estava muito longe de ser razão para fazer qualquer um de nós três infeliz, pelo contrário, meu primeiro ano de vida – não me lembro perfeitamente, é claro! – foi cheio de amor, no seu sentido real, longe de ser piegas.

Papai não morava conosco, mas estava presente. Não trocava minhas fraldas à noite, mas a qualquer hora que pudesse fazê-lo, desembaraçava-se melhor do que qualquer um. Cozinhava super bem, e um ‘arroz com ovinho’  feito por ele desbancava os outros banquetes que eram preparados para mim. Na minha opinião, porém, o mais importante, para a minha felicidade, era o carinho, a cumplicidade e a admiração mútua que existia entre ele e minha mãe. Tanto era assim, que minha avó, mãe do papai, mesmo com todo o preconceito da sociedade, percebeu que um não poderia viver longe do outro. Foi ela quem questionou por que eles não ficavam juntos e, bancando o cúpido, os reuniu.

Claro que nem tudo podia ser como eles queriam. Não pude entrar com os noivos na igreja – chovia muito! Mamãe,  num micro-vestido verde escuro, com um chapéu roxo-batata, estava linda. Papai era pura alegria. Seu sorriso, cheio de dentes, parecia tatuado no rosto. Digo isso com base em fotografias e na expressão de seus rostos, cada vez que se referiam ao casamento, anos e anos depois.

A essas alturas, já havíamos deixado Brasília. Papai passou a preceptor de residentes na Universidade de São Paulo (USP). Mamãe e eu nos mudamos com ele para São Paulo e, lá, papai foi obrigado a tirar pela primeira vez aquela barba de Lincoln. Como eu chorei! Aquele não era meu pai! Muito tempo depois, ele voltaria a tirá-la e eu, já adulta, poderia nem ter chorado, mas chorei de novo: aquele também não era o meu pai!

Nossa adaptação foi dura. Durante um ano eu era só da mamãe e ela só minha. Agora nós tinhamos que nos dividir e, ainda por cima, dividi-lo. Soma-se a isso uma frustração profissional experimentada por cada um deles; vivemos outro período complicado.

Tudo devidamente superado e agora no aconchego, seguindo a máxima ‘depois da tempestade vem abonança’, chegaram novidades: Pedro Paulo estava a caminho. Surgiu a possibilidade de um bom trabalho no Rio para o papai e do concurso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para a mamãe.

Nos mudamos para lá, onde fomos uma família feliz, pelo menos na minha ótica daquele momento. Talvez por causa da disputa ini-cial pelo amor da mamãe ou pela incrível semelhança de personalidade que tínhamos, papai e eu dividíamos um sentimento de cumplicidade e concorrência, ingredientes importantes para o crescimento das pessoas.

Sei do orgulho com que ele se referia às nossas proezas junto aos amigos. Para nós, contudo, este sentimento vinha transmutado em senso crítico. Cada vez que conseguíamos superar esta crítica, o seu orgulho aumentava.

Alguns pais se derretem com as gracinhas de seus filhos. O papai também era assim, só que não era qualquer menininha cantando a música do ‘Chapeuzinho Vermelho’: que despertava esse ‘babão’. As nossas proezas tinham que ser mais elaboradas.

Existem duas histórias minhas, quando criança, que ele gostava de contar. A primeira aconteceu quando, aos três anos, meu irmão perguntou ao papi por que a cor do comunismo era vermelha. Ele não sabia como responder; gaguejou, pigarreou, por fim, eu o interrompi, olhei para o meu irmão com a minha cara entojada de ‘é óbvio’ e disse: “o que é que tem na veia de todo mundo, seja rico ou seja pobre? Sangue! Nas revoluções, o que se derrama? Sangue! Qual a cor do sangue? Vermelha!” Papai se derretia e repetia, “eu nunca pensei assim!” Mais tarde, feminista feita, aos oito anos, uma amiga do papai me perguntou o que eu acharia se fosse criado o Ministério da Mulher. Mais uma vez, com aquela cara, eu respondi: “Acho errado. Tem que ter mulheres nos Ministérios e não o Ministério da Mulher!” Baba, papai, baba.

Por estas e por outras, um dos muitos rótulos que ganhei foi o de ‘Mafalda’. Fui também ‘Bruxínha’, ‘Patrulha’, ‘Dona Bicadinha 2’, ‘Buscapé’, ‘cri-cri’. Para cada um destes nomes, uma personagem e um único pai.

Papa¡ era um entusiasta da educação. Ele e mamãe estudavam muito, participavam das nossas vidas escolares, como poucos pais faziam à época. Mudamos muitas vezes de escola; era uma busca incansável até que achassem aquela que casava com o ideal deles – o Centro Educacional Anísio Teixeira (Ceat). Às vezes, eu e meu irmão tínhamos a impressão de que ele gostava mais da escola do que que nós, mas apesar de realizado como pai de aluno daquela escola, a vida continuava e Brasília nos esperava. Nos mudamos em busca de ideais profissionais, políticos e sociais, que acredito, se não foram alcançados, estiveram muito perto disso.

Lembro-me ainda das reuniões clandestinas do Partidão. Naquela época eu não sabia do que se tratava. Sabia apenas que mamãe esperava angustiada até a volta do papai; e ele sempre voltou.

Depois, veio o movimento pela Anistia ‘ampla geral e irrestrita’. As reuniões do Cebes todas as segundas-feiras, à noite; o movimento sanitário; as Diretas Já; a Nova República; a legalização do PCB; a 8 Conferência Nacional de Saúde; a Constituinte; a Lei do Sangue e a Lei Orgânica da Saúde. Em cada um desses momentos, uma causa que ele abraçava, uma nova concorrente para dividir a atenção do papai. Dentro do possível, comungávamos destes movimentos, com ele e, desta forma, estávamos mais próximos.

As crianças crescem, seguem caminhos próprios. Papai não se sentia um pai frustrado pelo nosso desempenho como seres humanos. Éramos justos, como ele sonhou; politicamente coerentes e, por isso, motivo de orgulho para ele.

Escolhi a sua profissão e, ao iniciar o curso na mesma escola em que ele estudou e na qual ainda ensinava, ele não cabia em si de tanto orgulho. Realmente, acho que este foi o ponto máximo a que ele poderia chegar enquanto meu pai. Na faculdade, nós não éramos ‘um a sombra do outro’, tínhamos nossas vidas e idéias independentes, o que muitas vezes terminava em discussão.

Em várias ocasiões eu quis desistir da minha opção profissional. A cada fraquejada,  ele me amparava e mostrava que pelo menos aquela etapa eu deveria concluir, porque se eu mudasse de ideia poderia retomá-la depois. E assim, de etapa em etapa, cheguei ao que sou hoje e estou muito feliz por ser dermatologista, por estar iniciando uma carreira acadêmica e buscando novos desafios.

Sinto falta dele me criticando ou, silenciosamente, se inchando de orgulho.

Obras do destino

O destino também tripudia… Houve uma coincidência entre a época de início do quadro degenerativo e a nossa saída de Brasília. Tentávamos nos manter próximos, mas tudo era muito complicado e só se explicou alguns anos depois. Como nos brigávamos, como não nós entendíamos, como nos silenciamos e como nos afastamos.

O destino tripudia mesmo…Os planos eram voltarmos para Brasília; voltamos por apenas seis meses e tudo o que fiz nesse período se resume no esforço em resgatar meu pai. Longe de qualquer mediocridade (e no limite de uma novela mexicana), estávamos eu, o Rodrigo e a mamãe, às voltas com a mudança, com a adaptação profissional, e eu já esperando o nascimento de Laura e Sofia, no meio do mestrado, lutando para proteger e guardar um papai bem diferente.

Uma pessoa não muda de caráter, mas de comportamento. A mentira sempre foi a maior inimiga do papai e de repente passou a ser a sua maior aliada, a dissimulação era a sua máscara. Aquele não era o meu pai! Cadê o meu pai? Ninguém sabia. Os amigos não sabiam, nós não sabíamos, mas havia um instinto inexplicável para a busca. E nós não desistimos dele. Cada vez que nos aproximávamos, ele nos escapava; se o pegávamos, ele se esvaía por entre nossos dedos. Até que o alcançamos.

Hoje eu o vejo como dois. Existe um pai na minha memória: elegante, sedutor, orgulhoso, contestador, critico e polêmico. Este ‘meu pai’ está sempre em companhia de algumas pessoas que hoie só habitam a minha memória: são os amigos como o Ricardo Lafetá, a Cecília Donnangelo, o Menezes, camaradas como o Eric, todos fazendo parte de uma história imutável.

Outros companheiros da minha lembrança deste ‘meu pai’ fazem parte de um grupo que pode continuar a sua história, como o Temporão, a Sarah, o Agenor, o Arouca, o Trajano,  o Lobo e tantos outros. Há ainda a lembrança daqueles que participaram de todas as fases da vida do papai, sem medo de conhecer aquele que é o meu ‘outro pai’, como os muito queridos Jouval, Joana, Alina e Moisés. É deste ‘segundo pai’, com quem venho convivendo e tentando conhecer, que vou falar um pouco. Ele não fala; ele nos olha e nos remete ao que pode ser mais puro na sua existência. Ele não tem crítica dos seus atos, muito menos dos nossos. Ele é terno com duas pessoinhas muito especiais: suas netas.

Laura e Sofia só conheceram este avô e elas o amam. Elas surgiram na minha vida quando aquele ‘meu pai’ saía como se eu pudesse contemplar a Lua e o Sol da minha vida, sem que um nunca encontrasse o outro.

É vantagem ter dois pais? Acho que não, mas cresci tendo que enfrentar este fato e descobri o amor diferente que sinto por cada um deles. Hoje, vejo que se eu e meu irmão sentíamos falta dele nos momentos em que se dedicava de corpo e alma ao movimento Sanitarista, sentimos muito mais falta dele agora, quando já não se dedica à causa, nem a mais nada.

 

* Sylvia Ypiranga é médica, mestre em dermatologia pela Unicamp e filha de Eleutério / Texto escrito em 2003