Texto e contexto das Eleições

Por Reinaldo Guimarães*

O movimento sanitário, com o Cebes e a Abrasco à frente, jamais renunciou a participar dos debates eleitorais no campo da saúde. Mesmo antes da existência das duas entidades, o movimento participou através de partidos (em seus grupos de saúde), de lideranças individuais e da academia. Uma boa revisão dessa participação está no número especial de ‘Saúde em Debate’ sobre eleições presidenciais, de setembro de 2010[1] . O editorial que apresenta os artigos ressalta a tradição das proposições do movimento aos candidatos, bem mais do que a reação do movimento às propostas deles aos eleitores. “No momento em que debates ocorrerão, avaliações mais ou menos merecedoras de crédito serão feitas, promessas e acordos nem sempre cumpridos serão firmados. A nossa fidelidade aos compromissos que sempre embasaram nossa luta precisam, mais que nunca, serem explicitados” (p.4).

Em 1982, em pleno processo de abertura lenta, segura e gradual proposto pela ditadura, um grupo de intelectuais do Rio de Janeiro vislumbrou que a candidatura de Miro Teixeira, posta pelo partido de oposição, o MDB, seria a melhor opção para governar o estado. Entendíamos então que a nós estava reservado o papel de desenhar um programa de governo que fosse capaz de aglutinar as propostas gestadas em todo o período de resistência ao regime militar. E que esse virtuoso programa teria o condão de orientar o nosso candidato fiel e racionalmente durante o seu mandato.  Após tantos anos de compulsória contenção na expressão de nossas ideias, estávamos firmemente convencidos de que essas ideias tinham poder, entre outras dimensões, tinham o poder de nos levar ao poder real, de governo. No folclore político carioca, ficamos conhecidos como “Luas Pretas” (os que nunca aparecem).  No componente de saúde daquele grupo tomaram parte alguns importantes pais fundadores do que viria a ser o SUS, oito anos depois. A proposta para a saúde era um primor.

Então ocorreram três desilusões: a primeira, política, foi imediata e incontrastável. Leonel Brizola teve uma fulgurante (e merecida) vitória eleitoral. A segunda, que veio aos poucos, foi um aprendizado sobre o papel dos intelectuais na política num ambiente que então se desenhava no caminho da democracia. Um papel mais realista e menos arrogante, mais largo e menos ressentido. Aprendemos então que as regras (e a ética) na política são distintas das regras na academia, embora nesta haja muita política. Na academia ideal, a ética é governada pela convicção. Na política ideal o vetor da ética é a responsabilidade, como ensinou Max Weber. E a terceira desilusão disse respeito ao poder dos textos na política, onde o peso das circunstâncias (o contexto) sobredetermina o poder dos textos. Na academia, o que se escreve não prescreve. Na política, o que não prescreve são as circunstâncias. A esse respeito, aliás, alguns anos depois, o vencedor daquelas eleições de 1982 para governador cunhou uma frase que ficou famosa: “Se programa de governo ganhasse eleição, o Dr. Hélio Jaguaribe era o Presidente da República”. Jaguaribe, sociólogo hoje com 91 anos, talvez tenha sido o campeão mundial de elaboração de programas de governo. De todos os tipos e para todos os gostos.

Ao modificar a Lei n.º 9.504/97, a nova lei eleitoral n.º 12.034, de 29 de setembro de 2009, acrescentou mais um documento às exigências formais para o registro de candidaturas: as propostas defendidas pelos candidatos a Prefeito, a Governador de Estado e a Presidente da República. Uma formalidade. Um texto. Quando ainda não era obrigatória a apresentação de um programa de governo para registrar uma candidatura, houve alguns de boa qualidade, como aquele que fizemos para o Miro e os de Jaguaribe em seus melhores momentos, independente do candidato a quem se destinava, diga-se de passagem. Ou ainda, como o programa de Anthony Garotinho quando de sua candidatura a governador do Rio de Janeiro em 1998. No capítulo sobre saúde (que, infelizmente, não consegui recuperar), Garotinho colou todas as propostas do movimento sanitário, com nuances e detalhes. Irretocável. Na outra ponta da corda, houve alguns muito pobres como, por exemplo, o do candidato José Serra nas eleições de 2010 que, para ter seu registro de candidatura aceito pelo Tribunal Superior Eleitoral, protocolou uma compilação de discursos seus proferidos antes de julho, durante a pré-campanha eleitoral. (Confira aqui)

A partir desses exemplos, devo ainda dizer que não conheço programa de governo que tenha sido decisivo para a eleição de um candidato. Que candidatos sem programas textuais já foram vencedores em eleições. Que já houve muitos candidatos vencedores com péssimos programas. Que candidatos com programas primorosos já sofreram fragorosas derrotas. E que candidatos vitoriosos com programas primorosos fizeram governos lamentáveis. Maus programas de candidatos diferentes não os igualam. Bons programas de candidatos diferentes não os diferenciam além do plano limitado daquele texto específico. Programas limitam-se ao plano do texto. Nada dizem do contexto, das circunstâncias. Do passado, do presente e do futuro. O verdadeiro Programa, com maiúscula, não deriva do que está no papel que, como ensinam os juristas, tudo aceita. O verdadeiro Programa deriva: (1) da trajetória política e ética dos candidatos; (2) dos macroprojetos em que estiveram e estão imersos e; (3) de suas respectivas viabilidades eleitorais.

No meu ponto de vista essas três variáveis, que nem sempre são facilmente identificáveis e harmônicas em um só personagem, é que diferenciam as candidaturas. Elas são o recheio de seus contextos; a matéria das suas circunstâncias. Elas é que conferem poder discriminante a uma aparente identidade de propostas boas ou más. Não os textos formais exigidos pela legislação.

Nas próximas eleições de outubro, são essas ideias que seguirei para escolher meus candidatos. Com um olho na saúde pública e no SUS, mas com o outro no futuro do país como um todo. E com os dois olhos na continuidade do macroprojeto que, com todas as dificuldades e vacilações, vem conduzindo desde 2003 o Brasil a um novo patamar de país, com mais democracia e mais justiça social.

Daí que não escolherei candidato cujo partido tenha votado pelo desfinanciamento à saúde pública como ocorreu em 2007 com a extinção da CPMF. Não escolherei candidato que proponha manter a estabilidade econômica com o sacrifício dos empregos e dos salários. Não escolherei candidato que vá fazer o país retornar a uma posição subalterna no contexto internacional. Não escolherei candidato cujo partido chamou de “Bolsa-Esmola” o mais importante programa de inclusão social já realizado no país. Não escolherei candidato que negligenciou os desassistidos pelo SUS e buscou conforto nos representantes mais atrasados da corporação médica. Independentemente do conteúdo dos seus programas na Justiça Eleitoral.

Nada disso está posto com clareza nos textos dos programas apresentados compulsoriamente à Justiça Eleitoral pelos atuais candidatos à Presidência da República. Mas é parte importante e nítida do contexto de cada um deles. Para mim é o que os diferencia. É com base nisso que eu já fiz a minha escolha.

[1] Saúde em Debate nas Eleições Presidenciais: Memória e perspectivas, v.34, n. especial, set. 2010. O editorial desse número pode ser lido aqui

* Reinaldo Guimarães é médico sanitarista e vice-Presidente da ABIFINA