Debate eleitoral sobre saúde precisa ser qualificado

Por Pedro Leal David.

 

Daqui a duas semanas, o brasileiro vai às urnas escolher presidente, governador, deputados e senador. Como costuma acontecer em toda eleição, a Saúde está entre os temas mais presentes nas manchetes e debates políticos. Seja para atacar adversários ou exaltar si mesmos, os candidatos falam de filas em hospitais, criticam programas alheios, criam slogans para novas propostas. Mas até que ponto essa onipresença significa um aprofundamento do debate sobre a saúde? Num tempo em que o marketing quer dominar a tudo e a todos, como a população pode distinguir, no mar de frases feitas, propostas que defendam seus interesses? Essas foram as questões que nortearam a conversa do Informe ENSP com a pesquisadora da ENSP e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Isabela Santos, que você confere abaixo.

 

Informe ENSP: Isabela, a edição de setembro da Revista Radis fala de uma análise feita pelos pesquisadores Mário Scheffer, da USP e Lígia Bahia, da UFRJ, sobre as propostas para a saúde dos programas dos candidatos à presidência. O estudo aponta omissões sobre temas relevantes e falta de clareza quando às políticas a serem seguidas. Na sua opinião, quais pontos deveriam ter sido priorizados para que as propostas dos candidatos estivessem sintonizadas com as demandas da população?

Isabela Santos: Temos dois desafios: um é incluir na pauta dos candidatos e na agenda do debate político questões estruturais para que um sistema público de saúde tenha confiança de toda a população e seja usado por todos. Entre essas questões, estão um financiamento adequado e sustentável do SUS, melhorias na sua capacidade de gestão e a organização do sistema em redes regionais, com autoridade de saúde. Mas isso num país em que o que prevalece é o poder local que remonta aos tempos do coronel. Ou seja, estou falando de reforma política e de interfaces do setor de saúde com outros. Precisamos dialogar com os outros setores se queremos um SUS melhor.

O outro ponto é garantir que os projetos mais progressistas se mantenham na pauta dos governos depois dos candidatos serem eleitos. Transformar aquele projeto que vem involucrado no marketing num projeto de governo que efetivamente reposicione o SUS como o sistema de saúde escolhido pela população na Constituição. Do contrário, estamos apenas brincando com os discursos: dos candidatos, da população, cuja voz deveria ser maior nesse debate, e da academia, que estuda o sistema de saúde e as questões sócio-políticas e econômicas.

Informe ENSP: Recentemente, tivemos uma experiência que mostrou que os candidatos não estão dispostos a se envolver em debates qualificados.

Isabela Santos: O Cebes, que é uma entidade do movimento social com foco no setor de saúde, conseguiu realizar debates políticos com candidatos em alguns estados, mas em outros, não. No estado do Rio, por exemplo, criamos um grupo organizador com outras entidades e instituições de grande importância na área (Cebes, Abrasco, Fiocruz, ENSP, IMS/Uerj e UFRJ). Depois de um mês conversando com os assessores, tivemos que cancelar o debate porque não conseguimos a presença dos principais candidatos ao governo do estado. Ora, como elevar a qualidade do debate e dos programas eleitorais e de governo se os candidatos nem se interessam em discutir com essas instituições, provavelmente pelo cálculo de que vale mais a exposição na grande mídia televisiva que em um setor específico?

Informe ENSP: Em manifesto divulgado recentemente, o Cebes defende o “Direito Universal à Saúde” contra a “Cobertura Universal de Saúde”. O texto fala ainda da pressão que o setor privado exerce sobre as esferas do poder público. É possível identificar com mais clareza os mecanismos de ação desses setores privatistas com relação a lobby ou financiamento de campanha?

Isabela Santos: Especificamente no setor de saúde brasileiro vemos essa pressão no dia a dia das negociações, com pesada atuação dos bancos. Os seguros privados são fortemente ligados ao capital financeiro. A pressão vem também da indústria de medicamentos, insumos e equipamentos, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, fortemente permeada pelos interesses de poder e financeiros desse setor privado e dos prestadores privados (os profissionais, hospitais, laboratórios). Fazem pressão nas instituições públicas, no Congresso Nacional, em diversas instâncias do Poder Executivo. Não sabemos, por exemplo, da Receita Federal, exatamente quem paga quanto e deixa de pagar quanto por conta dos gastos privados com saúde. Mais especificamente nas campanhas eleitorais, temos o estudo “Representação política e interesses particulares na saúde: o caso do financiamento de campanhas eleitorais pelas empresas de planos de saúde no Brasil”, publicado em 2011 por Ligia Bahia e Mario Scheffer. Sempre que o financiamento for legal, temos essa informação pública. Hoje temos diversas análises sobre isso que circulam nas redes sociais e na mídia.

Mas é importante termos muito claro que ao falar dos entraves para a consolidação do SUS, não estou falando que nossa democracia e que todas as instituições representativas estão falidas. Ao contrário, com tudo o que avançamos na Constituição Federal de 1988, quero melhorar o que temos e acredito que seja possível. Quando o manifesto recentemente divulgado pelo Cebes (elaborado com apoio da ONG alemã Medico International) fala do direito universal à saúde, ele fala da universalidade que aparece no texto da Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde (8.080, de 1990). É uma universalidade vinculada à atenção integral à saúde, que só pode acontecer num modelo de atenção organizado em redes regionais, com a atenção primária à saúde (APS) resolvendo em torno de 90% dos problemas. No modelo dos planos de saúde, cada seguradora é uma empresa que tem sua carteira de clientes, independentemente do local onde moram.

Para funcionar APS nesse modelo de seguro teríamos diversos sistemas de saúde, um para cada seguradora. É inoperável na prática! E esse é mais um motivo para escolher um sistema público. Além disso, temos os valores de solidariedade e de cidadania que o sistema público de saúde traz consigo; a viabilidade econômica, uma vez que a saúde é cada vez mais cara e precisa ser financeiramente suportável, motivo pelo qual somente o Estado pode redistribuir o custo entre os que precisam; e, ainda, para viabilizar uma população saudável e com qualidade de vida, potencializando, inclusive, o desenvolvimento econômico do país.

Informe ENSP: Você pode detalhar melhor o que seria o projeto da Cobertura Universal de Saúde?

Isabela Santos: O projeto da Cobertura Universal de Saúde (CUS), que pelo nome aparenta ser um projeto fortalecedor do Direito Universal à Saúde, na realidade, vai por outra linha e é isso que o Cebes vem denunciando. De uma semana para cá, vemos os documentos sobre a CUS vinculados ao termos “health for all”, como se fosse possível operacionalizar a proposta original com o direito universal. Não dá, é incompatível!

A CUS parte do pressuposto de que uma importante proporção da população deseja pagar por serviços do setor privado e fortes atores de mercado estão aumentando a pressão para atrair financiamento público e privado, especialmente nos países de baixa e média renda. Em documentos que vêm sendo apresentados desde o início dos anos 2000, surgem expressões como “proteção para risco financeiro”, “pacote de serviços”, “oferta e procura”, “libertação de recursos”, as quais passaram a pautar documentos da OMS e de outras instituições como o Banco Mundial e Fundo das Nações Unidas para a Infância/UNICEF, além de entidades “parceiras” do setor privado como Fundação Rockefeller e Save the Children. Nesses textos vemos a preocupação com a necessidade de prover melhor acesso a serviços de saúde para os pobres – a CUS se destinaria a eles, enquanto os que pudessem pagar teriam o seguro privado de saúde – sempre justificada pela necessidade de proteger os sistemas públicos dos riscos financeiros. Ou seja, risco e proteção são ideias centrais usada pelos defensores do seguro privado de saúde como modelo a ser adotado, como se o seguro privado pudesse defender os sistemas públicos.

Em 2012, foi aprovada uma resolução na Assembleia das Nações Unidas favorável à CUS, inclusive com voto do Brasil (“General Assembly 67th : Resolution towards UHC”). Atualmente vemos a proposta da CUS como o indicador de saúde a ser medido nos novos indicadores da ONU, na agenda pós 2015 que substituirá os indicadores do milênio. Há duas semanas, em evento internacional, o Cebes se posicionou contra a CUS diante da OMS, com amplo debate, pois enquanto Brasil, Índia, Itália e outros países também se posicionaram contra a CUS, por se tratar de uma proposta de financiamento voltada para o setor privado, a OMS seguiu afirmando que se tratava de mais acesso para a população.

Informe ENSP: O tema da saúde sensibiliza ao extremo a população. O manifesto do Cebes, por exemplo, identifica a cultura do medo como uma das estratégias de propaganda da “Cobertura Universal da Saúde”. No mesmo sentido, a mídia foca em temas como falta de leitos ou de médicos. O que o cidadão comum pode fazer para se defender de discursos interessados? O que levar em conta na hora de votar quando o tema é saúde?

Isabela Santos: Para votar, é importante que as pessoas tenham em mente que a proteção social solidária é o que mantém os países desenvolvidos, com boa educação, saúde, condições de mobilidade urbana e condições de vida. Temos que estar atentos não só aos projetos políticos dos candidatos mas também à sua trajetória para saber quais deles se identificam mais com esse tipo de projeto de sociedade.

Precisamos ampliar a base de apoio social ao SUS para avançar num sistema único de saúde que verdadeiramente proteja os brasileiros dos riscos de saúde. No caso dos trabalhadores, por exemplo, é no mínimo curiosa a grande adesão que fazem ao seguro privado de saúde uma vez que a maior parte deles, ao se aposentar, não poderá mais pagar pelos planos, em função da forte elevação dos preços para os mais velhos. Na maior parte dos países que tem grandes sistemas públicos de saúde, os trabalhadores estiveram na linha de frente da sua constituição e continuam a representar uma de suas principais bases de apoio social. Podemos resgatar essa parte da população brasileira se os trabalhadores entenderem que é estelionato o que vem sendo praticado pelas seguradoras, que quando se aposentarem é o SUS que os atenderá e que, portanto, é melhor lutarem por ele e não pelos seguros privados. Outra parcela importante da população são os funcionários públicos. São trabalhadores que também têm seguro privado, na maioria das vezes com apoio financeiro do Estado. Essas pessoas, e me incluo entre elas, têm grande poder de interferência no projeto do SUS e ajudam a manter seu grau de aprovação e excelência em diversos serviços a despeito do desfinanciamento das últimas décadas.

Por fim, a juventude e os movimentos sociais, para mim, configuram os principais atores que precisam ser mobilizados. É preciso incrementar o conhecimento que têm sobre os diferentes projetos de sistema de saúde. Com a inclusão do SUS na pauta de reivindicações da juventude e dos movimentos sociais podemos vislumbrar um futuro melhor para nosso sistema e, portanto, para nossos filhos e netos. Foi nesse sentido que o Cebes fez o manifesto, buscando uma linguagem mais acessível e direta. Agora estamos fazendo quadrinhos e animações sobre o tema. Estamos até com projeto de fazer uma série de televisão.

 

Fonte: Fiocruz