Ligia Bahia aos candidatos: Vocês e seus familiares são ou pretendem se tornar usuários do SUS?

por Ligia Bahia, em O Globo.

 

Propostas progressistas como o mesmo SUS para pobres e ricos tornam-se muito apetitosas em contextos eleitorais. Candidatos de todos os matizes político-partidários tendem a apoiá-las sinceramente. Depois, os vencedores passam o mandato inteiro tentando provar que a tese de um SUS abrangente é meritória, mas não deve ou não pode ser efetivada.

O sobe e desce do SUS dos palanques deve-se a crenças bastante comuns entre ocupantes de cargos executivos. A primeira é a de que um SUS de fato universal provocaria um efeito contrário, seria apoderado pelos ricos, e quem mais precisa ficaria ainda pior atendido. A segunda tende a ser usada para comparar uma proposta vis-à-vis a outra que está em execução e mostrar que as duas são excludentes ou competem entre si e que, portanto, qualquer tentativa de mudança põe em risco conquistas que não vale a pena sacrificar.

O assomo desses pressentimentos pode se acompanhar ou não da convicção de que o SUS não é viável enquanto as verdadeiras questões estruturais não forem resolvidas. Essas alterações de humor influenciam o abandono das intervenções sobre as causas dos problemas de saúde. Já que é difícil atuar sobre os determinantes das doenças e agravos, porque requer políticas que envolvam toda a população (inclusive os ricos), tenta-se governar os efeitos.

A alternância entre os instantes de renovação das promessas do SUS, aprovado pela Constituição, e os períodos prolongados de sua desmoralização justifica as políticas de saúde baseadas no menos pior. Vislumbres abstratos de grandeza e generosidade são sucedidos por decisões amesquinhadas, reverentes a interesses particulares. As gestões estaduais que se encerram em 2014 realizaram desde grandes investimentos públicos, que melhoram a saúde de todos, até obras de fachada para clientelas especificas.

São Paulo construiu um instituto estadual para atendimento de câncer com 600 leitos, contando com a participação da USP nas atividades assistenciais e de ensino e pesquisa.

Nesse mesmo período, o Rio de Janeiro contou com o apoio de recursos da União para levar adiante a pretensão de se tornar a referência nacional em algumas especialidades, especialmente ortopedia, que não por coincidência é a área de atuação do secretário que recentemente deixou o cargo, e o Maranhão projetou a instalação de nada menos que 72 hospitais gerais de pequeno porte.

Hoje está menos pior que no passado, ainda que São Paulo tenha um SUS próprio, a intenção de centralização no Rio de algumas especialidades médicas tenha acentuado a penúria de seus quatro hospitais universitários (três federais e um estadual) e o tipo de oferta de serviços proposto pelo governo maranhense esteja de costas para o desafio de reduzir uma das mais elevadas taxas de mortalidade infantil do Brasil.

Essa variedade de alternativas assistenciais poderia ser positiva e reveladora de avanços cumulativos e adequados às circunstâncias de um país continental, não fossem a preservação de disparidades e os altos custos da descontinuidade administrativa, mais incidentes exatamente nas regiões com maiores problemas de saúde.

Portanto, aquiescer com a máxima do menos pior e seu método de ensaio e erro significa reafirmar que é melhor ter algum tipo de atendimento, ainda que precário e sempre provisório, do que não dispor de nenhum lugar para se socorrer, e se conformar com a crescente concentração dos serviços privados e públicos de excelência em São Paulo.

Os últimos programas para a saúde apresentados pelos candidatos a eleições majoritárias para governador e presidente foram muito parecidos.

Todas as coalizões políticas juraram paixão pelo SUS e omitiram os acordos com empresários das industrias setoriais, da construção civil, de planos e seguros de saúde, donos ou controladores de hospitais e unidades de diagnose e terapia, grupos médicos e sindicatos de profissionais de saúde.

Parece que os votos de amor e dedicação ao SUS único serão renovados. Embora nem os todos candidatos tenham divulgado seus planos de governo, os documentos de Aécio Neves e Eduardo Campos propõem aumentar os gastos federais com saúde e melhorar a gestão. As mesmas platitudes apresentadas nos sufrágios anteriores.

Não há poder de convencimento que resista ao fato de homens e mulheres que ocupam cargos públicos se recusarem a experimentar o atendimento propiciado pelos seus governos à maioria da população.

Os mais recentes presidentes da República e diversos governadores foram e são atendidos, independentemente do local onde exercem seus mandatos, em hospitais privados paulistas.

Portanto, Para sair da armadilha do menos pior é preciso que as eleições propiciem um debate verdadeiro sobre as divergências a respeito da arrecadação e destino dos recursos públicos. A pergunta que os candidatos nas próximas eleições não poderão deixar de responder é se eles e seus familiares são ou pretendem se tornar usuários do SUS.

As reais intenções e o esconde-esconde de discordâncias, inclusive com a Constituição, bem como os compromissos com financiadores de campanha ficarão mais claros se os postulantes aos cargos executivos explicitarem se vai valer o SUS do “somos um” ou as versões recicladas do tradicional “pega pra capar”.

 

Fonte: Viomundo