“Pobres e ricos têm tratamento igual”: um médico brasileiro e o sistema de saúde do Canadá

Com passagem pelo SUS (Sistema Único de Saúde) no Paraná e há mais de 10 anos atuando no Canadá, o médico brasileiro Fabio Cury acumula experiência nos dois sistemas públicos de saúde e acredita que o Brasil poderia aproveitar alguns aspectos do modelo canadense.

Para Cury, que é especializado em rádio-oncologia – o tratamento do câncer com radiações ionizantes (também conhecido como radioterapia) – uma das grandes diferenças entre os dois países é a presença, no Brasil, de dois sistemas de saúde, um público e outro privado, diferentemente do que acontece no Canadá.

“A vantagem de ter um sistema único realmente único (como acontece no Canadá) e não ter um sistema paralelo, como o sistema privado ou o plano de saúde, é que todo mundo tem que ser tratado, e bem tratado, sob aquele sistema (público)”, disse Cury à BBC Brasil.

“(No Canadá) Toda a população tem acesso aos mesmos tratamentos, aos mesmos médicos, independentemente da sua classe social. É diferente do Brasil, onde uma pessoa com mais recursos será tratada em um hospital particular, e outra, com menos recursos, às vezes não será sequer tratada, ou será tratada em um hospital com menos tecnologia”, diz.

Sistema público

Cury explica que todos os canadenses, independentemente da situação financeira, usam o sistema público para serviços médicos e atendimento hospitalar. O gasto com saúde já está incluído no Imposto de Renda, de acordo com os rendimentos de cada um. Na hora de receber o atendimento, geralmente não é preciso desembolsar nada.

Mesmo no caso de uma clínica de propriedade privada, o pagamento pelo tratamento será feito pelo governo, dentro do sistema público de saúde, e não pelo paciente. O sistema privado pode ser usado apenas para alguns serviços, como testes e diagnósticos, algumas cirurgias estéticas ou tratamento odontológico.

Cury faz uma comparação com a situação no Brasil, onde, dependendo dos recursos financeiros, os pacientes vão optar pelo SUS, por planos de saúde ou por pagar pelo tratamento integralmente.

“No tratamento do câncer, por exemplo, há drogas que o SUS não cobre, e o convênio cobre. Ou só tem acesso se pagar. Então essa pessoa (com mais recursos financeiros) vai receber um tratamento diferenciado do que aquele que está lá pelo SUS (no Brasil)”, afirma.

Transição

Para Cury, uma possível maneira de elevar a qualidade do sistema público de saúde no Brasil seria melhorar salários e equipamentos, até que houvesse uma transição natural dos pacientes do sistema privado para o público.

“Quando (o tratamento pelo SUS) chegasse no mesmo nível dos grandes hospitais, talvez o paciente particular olhasse com outros olhos, visse que poderia fazer o tratamento de graça e com a mesma qualidade e no mesmo tempo”, destaca.

O brasileiro ressalta que os hospitais públicos no Canadá, ao contrário de muitos no Brasil, são equipados com tecnologia de ponta, acessível a todos os pacientes, ricos ou pobres.

“O investimento em tecnologia poderia fazer o sistema público do Brasil se tornar algo mais próximo do que o que existe aqui fora. Porque os profissionais do Brasil são bem treinados, de maneira geral”, afirma o brasileiro, que integra a equipe do Montreal General Hospital, parte do McGill University Health Center (Centro Universitário de Saúde McGill) em Montreal, na Província do Québec.

Espera

No sistema canadense, todos compartilham dos mesmos benefícios e eventuais desvantagens.

“Aqui toda a população tem acesso a tecnologia de ponta, tratamento de ponta, com as devidas restrições”, resume Cury.

Uma reclamação comum no Canadá é em relação ao tempo de espera para determinados tratamentos, considerado longo – mas, de acordo com Cury, ainda menor que a média no Brasil.

Naquele país, um órgão do governo é responsável por vistoriar e ter certeza de que os prazos são cumpridos.

“Aqui tem fila, mas ninguém morre na fila”, afirma Cury, ao observar que o tempo de espera costuma ser menor que o registrado no SUS, mas maior do que no sistema privado do Brasil ou de outros países.

Ao contrário do que ocorre no Brasil, no Canadá o paciente não tem a opção de pagar mais para ser atendido mais rápido.

Cury observa que há casos de pacientes com mais recursos que acabam, por exemplo, viajando aos Estados Unidos em busca de uma consulta de segunda opinião ou de tratamento mais rápido.

Mas de modo geral, em caso de descontentamento com algum serviço, a reação da população costuma ser reclamar e exigir seus direitos ao tratamento de saúde de ponta.

Ensino e pesquisa

Para o rádio-oncologista, o maior estímulo ao ensino e à pesquisa também são aspectos do modelo canadense que poderiam ser adotados no Brasil.

Outro fator que, na visão de Cury, poderia ser melhorado no Brasil seria a criação de condições para que os profissionais de saúde se dediquem exclusivamente a um determinado local, sem precisar recorrer a dois ou mais empregos para pagar as contas.

“Infelizmente, vejo colegas no Brasil trabalhando em dois ou três lugares. Aqui, a maioria trabalha em um único hospital. É onde você vai ver seus pacientes, vai fazer sua pesquisa e vai lidar com a sua parte de ensino”, afirma.

“A ideia de se ter plano de carreira para um médico, tanto dentro da universidade quanto alguma coisa guiada pelo governo, com salários melhores, com plano de aposentadoria e tudo mais, seria um grande atrativo para o médico brasileiro.”

Formado pela Universidade Federal do Paraná, Cury, de 40 anos, chegou ao Canadá em 2003, após concluir residência no Brasil. Logo depois, surgiu o convite para permanecer no país.

Assim como todos os médicos formados fora do Canadá, ele teve de revalidar seu diploma e fazer diversas provas, inclusive de língua francesa (falada no Québec), para ganhar a permissão para atuar.

O fato de muitos médicos estrangeiros atuarem no Canadá facilitou a adaptação, diz Cury. “Nunca senti preconceito em relação a ser de fora ou em relação a ser brasileiro”, afirma.

“Acho que o aspecto humano do médico brasileiro é uma coisa que chama a atenção de qualquer população. Quando o brasileiro vem para cá, faz sucesso entre os pacientes. Essa forma carinhosa que o brasileiro tem é um ponto positivo.”

Recrutamento de estrangeiros

A demanda por médicos levou o Ministério da Saúde e Serviços Sociais do Québec a criar há mais de dez anos um programa de recrutamento, o Recrutement Santé Québec, para atrair profissionais formados em outros países.

Esses médicos precisam ser aprovados pela ordem profissional de médicos, o Collège des Médicins du Québec, equivalente a um CRM (Conselho Regional de Medicina) no Brasil.

As regras do programa incluem ainda a aprovação em testes e cursos de treinamento, e o recrutamento não vale para áreas universitárias, como Montreal, mas somente para áreas onde há muita demanda.

Segundo a assessoria de imprensa do projeto, desde seu início, em 2003, o programa já recebeu 62 inscrições do Brasil. Desses candidatos, 12 obtiveram licença para atuar no Québec, sendo três recrutados como professores. Atualmente, nove deles permanecem no programa.

 

Fonte: Diário do Centro do Mundo