Em dez anos, política de combate às DST perde eficácia e movimentos querem diálogo

Por Malú Damázio.

 

Na última década, as políticas públicas nacionais de combate e prevenção a doenças sexualmente transmissíveis (DST), aids e hepatites virais tiveram a eficácia diminuída. A ausência de campanhas nacionais de prevenção e informação direcionadas às populações de risco e o preconceito velado ao tratar publicamente de sexualidade estão entre as principais críticas feitas por pesquisadores e movimentos sociais com atuação na área. A estagnação nas políticas públicas voltadas às DST e ao HIV coloca em xeque a imagem do Brasil como referência mundial no tratamento de aids, conquistada, principalmente, com a inclusão da doença no Sistema Único de Saúde, em 1992.

Apesar do aumento de portadores de HIV em tratamento com antirretroviral no Brasil, que passou de 165 mil, em 2002, para 353 mil, em 2013, e do investimento em testagem rápida de aids, o número de casos de HIV no país cresceu 11% de 2005 a 2013, na contramão do cenário global, em que os casos de infecção apresentaram redução de 28%. Os dados fazem parte de relatório divulgado em julho deste ano pelo Unaids, programa conjunto das Nações Unidas (ONU) sobre HIV/aids, que constatou, ainda, aumento de 7% de mortes pela doença no mesmo período.

A veiculação de campanhas informativas – principalmente as direcionadas às demais DST – ainda são um campo inexplorado pelo Ministério da Saúde. Hoje, as propagandas do órgão federal têm como objetivo a prevenção de todas as doenças sexualmente transmissíveis com incentivo ao uso de camisinha. “A população só tem acesso a mais informações se ela quiser procurar por isso. A gente não vê qualquer tipo de orientação na televisão e no rádio, a não ser na época do Dia Mundial da Aids [1º de dezembro] e no Carnaval, que é quando todo mundo se manifesta. Isso, sem falar nas campanhas que são vetadas”, argumenta o coordenador da ONG Pela Vidda (Valorização, Integração, Dignidade do Doente de Aids) SP, Murilo Duarte. A entidade desenvolve trabalho de acolhimento e acompanhamento com pessoas portadoras do vírus HIV em São Paulo.

Tratar de sexualidade abertamente na televisão e no rádio, no entanto, pode ser bastante espinhoso. Na visão do chefe do setor de DST da Universidade Federal Fluminense (DST/UFF), Mauro Leal Passos, editor do Jornal Brasileiro de DST, a deficiência de campanhas de prevenção e orientação está intrinsecamente relacionada aos costumes morais da sociedade. Para ele, a maioria dos brasileiros evita discutir temas-tabu, como sexualidade, e isso se reflete na postura dos órgãos governamentais e das empresas ao realizarem e patrocinarem campanhas publicitárias sobre o assunto.

“O ser humano tem necessidade biológica de relações sexuais, mas trabalhar em DST e em sexualidade não é a mesma coisa que trabalhar com câncer da mama, por exemplo. Ninguém quer “colar o nome”. As empresas querem associar a marca a esportes e em beleza. À sexualidade ninguém quer. Você não consegue patrocínio nem um artista famoso que queira fazer campanha contra uma doença venérea. No Outubro Rosa (campanha contra o câncer de mama), até avião foi pintado de rosa. Você viu alguma coisa ligada à DST? Alguém vai pintar um avião para dizer ‘esse avião protege contra a gonorreia’?”, questiona.

 

Dogmas

A falta de informação sobre as DST está diretamente ligada à religiosidade e ao preconceito com relação à população e ao comportamento de risco, como gays, travestis, profissionais do sexo e a poligamia, uma vez que a maioria das religiões cristãs apresenta posição desfavorável e, em alguns casos, condenatória, com relação aos relacionamentos homossexuais, como defende Murilo.

O coordenador da Pela Vidda SP acredita que não existam, hoje, campanhas em grande número, direcionadas a nichos específicos de transmissão e contágio de HIV e DST, porque boa parte dos brasileiros ainda se sente “invadida e afrontada por uma propaganda aberta”, que fale diretamente sobre práticas sexuais desses grupos. “A maior parte dessas pessoas que apresenta resistência é, infelizmente, a que está mais vulnerável, mais sujeita a se contaminar por falta de uma informação mais direta e mais clara”, lamenta.

Na visão da psicóloga Maria Amélia Portugal, pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a situação dos últimos anos com as DST é resultado da falta de diálogo do governo com movimentos sociais que promovem ações de prevenção, acolhimento e orientação dos infectados. “É um governo surdo, porque, nele, os movimentos sociais falam e não são ouvidos. É uma decepção inacreditável do ponto de vista político de gestão e a administração tem sido de um autoritarismo impressionante. A gente pode tentar evitar retrocessos, mas não conseguimos avanços”, afirma.

Historicamente, os avanços no tratamento da aids e DST no Brasil foram alcançados, segundo Maria Amélia, porque os órgãos governamentais se abriram à sociedade civil e construíram programas de acesso à saúde em conjunto com as entidades representantes de segmentos marginalizados. “Saúde é uma questão política, assim como a sexualidade. Saúde não é corpo, é social. Qual corpo está fora da sociedade? O Brasil tem população e território enormes e existe uma demanda cada vez maior por direitos sociais. É preciso uma política pública que atinja as pessoas do Oiapoque ao Chuí, já que nós propagamos, do ponto de vista nacional e internacional, que saúde é um direito.”

Há hoje cerca de 750 mil pessoas portadoras do vírus HIV no Brasil, sendo que, desses casos, 656.701 foram registrados pelo Ministério da Saúde. Dados e ações de campanha nacionais estão concentrados no Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do órgão. A página do ministério reúne informações sobre sintomas e tratamento de aids, hepatites B, C e D, e as demais DST – condiloma acuminado (HPV), tricomoníase, linfogranuloma venéreo, cancro mole, doença inflamatória pélvica (DIP), herpes, clamídia, gonorreia, donovanose, sífilis e infeção pelo vírus T-linfotrópico humano (HTLV).

 

Notificação

Desde 1986 o país notifica casos de aids e sífilis congênita, transmissível de mãe para filho, e produz boletins epidemiológicos anuais, por recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, há ainda hepatites virais que, assim como as DST, são transmitidas por sexo desprotegido e transmissão sanguínea por meio de seringas e objetos cortantes e que passaram a integrar as estatísticas nacionais em 1996 (tipos B, C e D).

Entretanto, outras doenças sexualmente transmissíveis, como gonorreia, clamídia, herpes e tricomoníase não são de notificação obrigatória, nem possuem dados e estudos unificados por parte do órgão federal. As informações ficam restritas a postos de saúde e núcleos de pesquisa em universidades. O último mapeamento de DST em populações específicas, realizado pelo governo federal e disponível no site do ministério, é de 2005.

Os boletins epidemiológicos têm a função de mapear a doença e, dentre outras coisas, identificar também as principais áreas de ocorrência, populações atingidas e número de mortes em todo o território nacional. A partir desses dados, o governo pode saber quais medidas específicas devem ser adotadas para prevenção e tratamento da enfermidade em cada região do país e direcioná-las à população de risco. No caso das DST na América Latina, os grupos mais afetados são homossexuais, transsexuais, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis, diz o relatório da Unaids.

Com a notificação dos casos de sífilis congênita, por exemplo, os órgãos públicos puderam identificar as populações mais vulneráveis: mães entre 20 e 29 anos (57,7%), a maioria (25,8%) com escolaridade entre a 5ª e a 8ª série incompleta. De 1998 a junho de 2013, foram notificados 88 mil casos de sífilis congênita em menores de 1 ano, sendo que, até 2012, a região Sudeste concentrava a maior parte das ocorrências (45,9%), seguida pelo Nordeste (31,4%). Norte (8,7%), Sul (7,7%) e Centro-Oeste (6,3%) apresentaram números similares.

Esses dados fizeram com que o governo federal investisse em modelos de testagem rápida, distribuídos desde 2011. Até o ano passado, foram feitos 2,9 milhões de testes rápidos de sífilis congênita no país, o que aumenta a notificação de casos e também o número de pessoas encaminhadas para tratamento. No entanto, somente 11,5% dos parceiros sexuais das mães identificadas com a doença, até junho de 2012, foram tratados. Com isso, o homem infectado continua a ser transmissor da sífilis para outras possíveis parceiras sexuais.

 

Preconceito e tratamento

Murilo é portador de HIV há 27 anos e se trata desde 1990 no Centro de Referência e Treinamento em DST/aids (CRT) Santa Cruz, na região centro-sul de São Paulo. Após quase três décadas de sorologia, ele precisa ir ao hospital a cada três meses para passar por exames de rotina, como hemograma completo e a detecção de carga viral. A infectologista que o acompanha há 12 anos analisa a ação do antirretroviral no organismo do paciente, prescreve medicamentos para o próximo período e ele pode retirá-los logo em farmácia.

Assim como é feito em São Paulo, na maioria dos municípios brasileiros o atendimento ao portador do vírus HIV e à pessoa infectada com DST é feito em locais especializados, os CRT. A vantagem dos centros é que as atividades são direcionadas somente ao tratamento dessas doenças específicas e a pessoa com aids, por ter a imunidade baixa, não precisa entrar em contato com as demais enfermidades, como em hospitais e prontos-socorros, que recebem todo tipo de urgência médica e de patologia infectocontagiosa, como tuberculose.

Algumas cidades, porém, realizam o atendimento das DST nos Centros de Atenção Primária (CAP) e de saúde da família, que geralmente recebem público da região ou bairro em que estão localizados. Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza e Curitiba são capitais que adotaram esse tipo de política pública. De acordo com o Ministério da Saúde, cada município tem autonomia para definir como será feito o tratamento de DST e alguns optam pelo modelo para desafogar serviços especializados, mas o órgão reforça que o atendimento oferecido nos CRT é fundamental.

O atendimento de DST em esferas locais é um dos principais pontos criticados por portadores de HIV e movimentos voltados à defesa de direitos humanos. Nos CAP, além do contato com diversos tipos de patologia, o portador do vírus e as demais pessoas infectadas podem passar por situações constrangedoras e se expor a comentários e comportamentos preconceituosos ao encontrar conhecidos que não saibam da situação.

“Antes de falar de aids e HIV, temos que pensar primeiro no pior vírus que existe, que é o preconceito. Ele mata a pessoa em vida, como cidadão, destrói a autoestima e ela se sente rejeitada. Esse é o pior vírus. A maioria das pessoas não quer ser atendida no posto de atendimento no bairro em que mora, ou na região do bairro em que mora. Ela corre o risco de encontrar um vizinho, um parente, um colega da escola, amigos de rua etc. Como explicar para a pessoa o que ela está fazendo lá?”, explica Murilo.

 

Prevenção medicamentosa

Desde o ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar a terapia antirretroviral para qualquer portador do vírus HIV que tenha quantidade de linfócitos CD4 (células de defesa) menor ou igual a 500 células/mm3 de sangue contra 350 células/mm3. Geralmente, somente as pessoas que têm aids, que caracteriza a deficiência do sistema imunológico, realizam tratamento com antirretrovirais. Quem é apenas portador, mas que não manifesta o vírus, precisa fazer acompanhamento médico regular para monitoramento.

A política da OMS, no entanto, defende que o casal sorodiscordante – em que uma das pessoas seja portadora do vírus HIV e a outra não – tenha acesso aos antirretrovirais. Nesse caso, além do uso da camisinha, o soropositivo deve tomar os medicamentos para evitar transmissão do vírus para o parceiro. Controversa, a recomendação da OMS busca prevenir novas infecções e dar maior segurança ao casal sorodiscordante. A implementação no Brasil ainda é discutida. Alguns setores de pesquisa em HIV/aids, no entanto, discordam da postura de “super prevenção” adotada pelo órgão por acreditarem que o portador de HIV, tomando os antirretrovirais, estará sujeito a efeitos colaterais muito violentos e desnecessários.

“Além de aumentar os efeitos colaterais, essa medida também favorece o não-uso da camisinha em relações sexuais. Quando você alimenta a ideia de que não precisa usar preservativo, está aumentando também a chance de transmissão de todas as DST. Elas não são transmitidas pela mesma forma do HIV? Não são as mesmas práticas?”, critica Maria Amélia. Para a pesquisadora da UFES, a recomendação atende aos interesses da indústria farmacêutica de produzir e comercializar cada vez mais medicamentos.

Porém, na visão do coordenador da Pela Vidda SP, a política representa um avanço no tratamento e modo de vida do portador de HIV e é positiva. “Quando se fala em qualquer tipo de atitude ou de empenho da OMS e dos governos de tentar diminuir o número de contágios de HIV, aumentar a prevenção da população e tentar desenvolver um sistema em que as pessoas se sintam mais protegidas, tudo é válido”, argumenta.

Murilo avalia que as pessoas não se submeteriam a altas cargas de medicamento com fortes efeitos colaterais apenas para fazer sexo sem preservativo. “A gente tem que saber o seguinte: os remédios têm efeitos colaterais, são super drogas, drogas poderosíssimas. Então, a pergunta é a seguinte: você acha que uma pessoa que não tem aids irá se submeter, de certa forma, a tomar esses remédios diariamente, em horários regulares, sofrer os efeitos colaterais que eles eventualmente causam só pelo simples fato de que vai poder transar sem preservativo? A camisinha é ainda a melhor forma de se prevenir”, ressalta.

 

Serviço

Grupo Pela Vidda SP
Rua General Jardim, 566, Vila Buarque – São Paulo
Atendimento gratuito de segunda-feira à sexta-feira, das 14h às 20h

Durante as quintas-feiras, das 19h30 às 22h, ocorre o Chá Positivo – roda de conversa com psicólogos, assistentes sociais e assessoria jurídica que recebe portadores de HIV/aids e familiares.

 

Fonte: Rede Brasil Atual