Índios brasileiros desenvolvem doenças ‘urbanas’ após mudanças no estilo de vida

Por Guilherme Rosa, publicado originalmente na Unesp Ciência.

 

Desde o início da colonização, as doenças do homem branco têm representado um flagelo para as populações indígenas das Américas. O Brasil, antes de 1500, possuía mais de cinco milhões de habitantes. A partir da chegada dos portugueses, a população indígena começou a declinar rapidamente, principalmente por causa de epidemias de sarampo, varíola, rubéola e gripe. Nos anos 1970, não passavam de 100 mil em todo o território nacional. De lá para cá, medidas como a vacinação e o avanço no reconhecimento de terras indígenas conseguiram reverter esse quadro. Hoje, segundo dados do censo de 2010, a população já alcançou a marca de 800 mil.

Nos últimos anos, no entanto, novas doenças do homem branco começam a se fazer presentes dentro das terras indígenas. Desta vez, são problemas causados pela adoção de um estilo de vida mais urbano, semelhante ao das grandes cidades. O antropólogo Laércio Dias, da Unesp de Marília, estuda como essas alterações afetam a saúde de grupos que vivem na região do rio Uaçá, no norte do Amapá, e já constatou um índice maior de obesidade, hipertensão, diabetes e abuso de álcool entre eles. “São doenças ligadas a mudanças na forma de trabalhar, de beber e de se alimentar, causadas principalmente pela presença de produtos industrializados produzidos fora da aldeia“, diz.

Além dessas doenças, Laércio diz que existem estudos que apontam uma presença maior de outras doenças ligadas ao estilo de vida “ocidental” entre os índios, como câncer e Aids. “Acontece que essa população indígena ainda sofre com problemas antigos, como leishmaniose, febre amarela e malária”, diz o antropólogo. “Essa sobreposição de perfis epidemiológicos é muito preocupante do ponto de vista da saúde, além de indicar que as populações estão sofrendo transformações muito rápidas em seu modo de vida.”

Laércio Dias estuda as etnias Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur e Galibi Kali´na, que habitam três terras indígenas no município de Oiapoque, na divisa entre o Brasil e a Guiana Francesa. São grupos que convivem entre si e têm contato com o homem branco desde o século XVI. “A convivência é tão antiga que existe na região uma língua franca – o patuá – que é uma mistura de português, francês e das línguas indígenas”, diz o antropólogo.

Hoje, vivem na região cerca de cinco mil indígenas, em contato constante com áreas urbanas. Algumas aldeias ficam a menos de 30 minutos de barco da cidade de Oiapoque, onde os indígenas vão vender farinha, peixes e frutas e comprar arroz, café, açúcar e bolacha. Nas casas, possuem geladeiras, TVs e até computadores.

Segundo Laércio Dias, antigamente muitos antropólogos encaravam com maus olhos as transformações que ocorriam nesses grupos, agindo como se houvesse uma cultura indígena “pura” a ser preservada a qualquer custo. “Mas nas últimas décadas nós temos nos focado mais em estudar os processos de transformação por que passam essas sociedades. Quero compreender como elas estão se adaptando a essas mudanças“, diz.

No doutorado, Dias investigou o consumo de bebidas alcoólicas entre as tribos do Uaçá. Os hábitos tradicionais sofreram o impacto da chegada de produtos típicos da cidade, principalmente a cachaça. “Minha intenção não era apontar qual o modo correto de eles consumirem álcool. Pelo contrário, queria saber o que eles mesmos encaram como consumo reprovável e ver quais alterações ocorreram após a chegada das bebidas destiladas”, diz.

Os grupos da região tradicionalmente consomem uma bebida alcoólica preparada à base de mandioca fermentada, chamada de caxiri. O caxiri faz parte do dia a dia da tribo, e é consumido tanto na labuta na roça quanto nos rituais religiosos mais importantes. Como a bebida serve para estreitar os laços sociais, seu consumo acontece em diversos eventos e festividades da região, como o Dia do Índio, festas de santos, competições esportivas e até assembleias políticas.

Apenas mulheres podem participar da produção do caxiri. Seguindo uma receita ancestral, elas misturam biju de mandioca, cana-de-açúcar e batata, que são colocados para fermentar em um recipiente de barro. Depois de alguns dias, o resultado é um líquido branco e grosso, de gradação alcoólica baixa, variando entre quatro e cinco.

Por causa da grande quantidade de carboidratos na bebida, ela acaba sendo uma importante fonte de calorias para os índios. Isso faz com que sua função não seja apenas psicoativa, mas também de alimentação. Por isso, é consumida durante as atividades produtivas, servindo de combustível para o cultivo da roça, a caça e a pesca.

Durante as festas, o consumo excessivo de caxiri é comum. Isso porque esses grupos possuem um costume que chamam de beber até zerar. Trata-se de um costume comum entre populações indígenas das zonas tropicais, habituadas a viver em contextos ecológicos onde há recursos em abundância e que não desenvolveram mecanismos de conservação de alimentos.

Durante séculos, esse estilo de consumo de bebida alcoólica não provocou grandes danos aos grupos, uma vez que o caxiri tem baixo teor alcoólico e alto valor calórico. Com a chegada da cachaça, no entanto, a prática dos hábitos tradicionais com a nova bebida revelou-se explosiva.

Embora esses grupos conheçam a cachaça há séculos, foi somente nas últimas décadas que seu consumo passou a ser assimilado pelas aldeias. Hoje, ela está presente nas festividades e atividades cotidianas, adquirindo significados culturais semelhantes aos do caxiri. “Eles têm um contexto cultural que valoriza a vida coletiva, a festa e o consumo não parcimonioso de comida e bebida. Ao ser incorporada por esse padrão cultural, a cachaça produz efeitos indesejáveis”, diz o antropólogo.

Nenhuma das etnias estudadas considera a embriaguez como um mal em si. Trata-se de uma prática moralmente neutra, que não envergonha ninguém. O consumo de álcool só é visto com maus olhos quando resulta em tensões que atrapalham a coesão do grupo. Aqueles que, sob efeito da bebida, causam algum tipo de acidente, entram em brigas, ficam indispostos para trabalhar ou deixam sua cultura de lado podem ser recriminados.

Segundo o relato dos povos estudados, o consumo de cachaça tem aumentado muito o estilo de beber reprovável. Nos últimos anos, por exemplo, cresceu o número de acidentes envolvendo embarcações e incidentes durante a abertura de clareiras na mata. “Assim, os próprios índios começam a afirmar que a bebida traz uma série de problemas, inclusive de saúde, como a gastrite”, afirma Dias.

Esse estilo de beber não é exclusividade dos grupos indígenas do Uaçá. O antropólogo Paulo Santilli, da Unesp de Araraquara, coordenou entre 2007 e 2008 a seção de identificação de terras indígenas do Ministério da Justiça e da Funai. Nesse período, ele teve contato com diversas lideranças indígenas, de várias regiões do país. “A maior parte dos povos indígenas brasileiros têm bebidas tradicionais feitas a partir da fermentação da mandioca e do milho. As lideranças, no entanto, demonstram preocupação com a presença de bebidas destiladas vindas de fora”, diz. Segundo o antropólogo, a preocupação é maior com os jovens, que são os que mais frequentam as cidades e podem acabar desenvolvendo uma relação de dependência com o álcool. “Por isso, muitas vezes as próprias lideranças criam regras banindo do território as bebidas produzidas fora.”

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Em sua pesquisa atual, Laércio Dias estuda o surgimento das chamadas doenças e agravos não transmissíveis (Dante) entre os indígenas brasileiros. São problemas como obesidade, hipertensão e diabetes, relacionados ao consumo de produtos industrializados vindos de fora das aldeias.

Na primeira parte do estudo, o antropólogo se debruçou sobre dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), criado em 2006 para registrar as condições nutricionais dos brasileiros. A partir de informações sobre a altura e peso das populações indígenas, ele calculou o Índice de Massa Corpórea (IMC), que é usado para estimar se um adulto se encontra acima do peso ideal. Ele é obtido pela divisão do peso pelo quadrado da altura. Comparando os dados de 2008 e 2012, o antropólogo registrou que o sobrepeso aumentou entre os indígenas, passando de 30,44% para 35,25% da população. A obesidade também cresceu, de 14,24% para 19,33%. Já os adultos com peso ideal caíram de 46,44% para 41,89%. “Temos claramente uma mudança no perfil. Os índios estão engordando.”

Os números batem com as mudanças que Dias tem observado entre os grupos do Uaçá. Lá é cada vez menor o número de pessoas que se alimentam de acordo com a dieta tradicional, baseada em peixe, farinha de mandioca e frutas como açaí, bacaba, banana, laranja, mexerica e limão. No seu lugar estão sendo consumidos produtos processados, muito mais calóricos e ricos em sódio e açúcar. A mudança é possível devido ao contingente cada vez maior de indígenas assalariados dentro das aldeias, que trabalham como professores ou enfermeiros. Além de o dinheiro permitir que se comprem produtos da cidade, esses profissionais abandonam práticas antigas como a caça ou o cultivo de alimentos, e terminam por praticar menos atividades físicas.

Se essa hipótese estiver correta, a maior parte dos problemas de saúde deverá se concentrar nas aldeias maiores e mais próximas da cidade. Para avaliar a hipótese, o antropólogo comparou dados compilados pela Casa de Saúde do Índio (CASAIAmapá) sobre a presença de hipertensão e diabetes em aldeias da região do Uaçá. No polo Manga, o mais próximo do Oiapoque, a hipertensão atingia 18,8 de cada mil habitantes, o maior índice da região. “As três maiores aldeias, onde se consomem mais produtos industrializados, são onde a presença de doenças vinculadas ao estilo de vida é maior”, diz.

Um fato que impulsionou o consumo de alimentos industrializados nos últimos anos foi a chegada às aldeias dos vários programas de assistência social do governo federal. Segundo o antropólogo Paulo Santilli, o processo iniciou-se quando as aposentadorias rurais começaram a se estender para as populações indígenas. “Isso mudou bastante a relação com os idosos. Se antes eles eram o repositório do conhecimento, dos cantos e da memória social, hoje também detêm os recursos para a compra de alimentos industrializados e eletrodomésticos”, diz. ”O processo se intensificou ainda mais com a chegada do Bolsa Família, que não foi desenvolvido pensando nas populações indígenas. Agora, o governo está promovendo pesquisas sobre seus efeitos nesse grupo.”

Segundo os antropólogos, essas transformações no modo de vida não significam que os índios estejam perdendo sua identidade. Pelo contrário, é possível adaptar-se às novas condições e ainda usar sua afirmação étnica para lidar com os problemas trazidos de fora da aldeia. Um exemplo disso acontece com os Tenharim, um povo que vive no sul do Amazonas, à beira de rodovia Transamazônica e em contato muito próximo com a cidade de Humaitá.

Historicamente, a estrada tem representado uma enorme pressão sobre esse grupo, e os casos de violência são comuns. No ano passado, inclusive, um confronto levou ao abandono temporário das terras indígenas. Esse contato tenso com a cidade, no entanto, levou a uma valorização cada vez maior de sua própria cultura. “Os Tenharim têm uma autoestima muito grande. Eles proíbem o consumo de álcool dentro das aldeias e valorizam muito sua culinária tradicional”, diz o antropólogo Edmundo Peggion, da Unesp de Araraquara, que estuda o grupo. “Os mais velhos não gostam da carne de gado, que dizem ter um sabor adocicado. Eles preferem carne de anta e de queixada, que era consumida por seus ancestrais.“

“Ao mesmo tempo em que as mudanças culturais têm acontecido, a identidade indígena tem se fortalecido nos últimos anos”, diz Laércio Dias. “As mudanças são comuns em qualquer sociedade, e não querem dizer que os índios estão deixando de ser índios.” Mas o que fazer quando essas transformações trazem efeitos perigosos para a própria saúde dos indígenas? A saída pode ser a mesma que existe para o homem branco: a conscientização. “Esses produtos têm um apelo publicitário que não deixa claros seus efeitos para sua saúde, e essa mudança na alimentação é muito recente”, diz Santilli. “Agora, pela primeira vez, esses grupos estão vendo os efeitos desses alimentos. As próprias lideranças indígenas estão preocupadas com isso.”

 

Fonte: Opera Mundi