Quem nos protege destes “deuses”?

Por Luiz Caversan, da Folha de São Paulo.

 

Então é assim: o cidadão está sem documentos, dirigindo um automóvel sem placas, é parado por uma agente de trânsito, tenta dar a famosa carteirada na linha “você sabe com quem está falando” e diz que é juiz.

Ouve da moça que “juiz não é Deus” e está estabelecido o bafafá que, ao contrário do que determinaria qualquer lei, ou qualquer lampejo de bom senso, em qualquer país civilizado, acaba com a moça sendo processada e condenada por “ofender” o magistrado.

Condenada, aliás, em segunda instância, porque o desembargador que assinou a sentença no Tribunal de Justiça disse que ela, com sua mais-do-que-óbvia observação, ofendera toda a magistratura do país.

Ai, meus sais…

Ok, uma advogada de São Paulo se mobilizou e conseguiu angariar na internet, em regime de financiamento coletivo (crowdfunding), dinheiro para a moça pagar a indenização estabelecida, e sobra até um pouco mais para as despesas com o processo.

Ok, mesmo sem se referir diretamente ao caso, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski,, informou a quem quisesse ouvir, ou seja, também ao juiz que moveu a ação e ao desembargador que condenou a moça, que não, juiz não é Deus. Espera-se, portanto, que ao menos quando chegar ao Supremo esta bizarrice seja corrigida.

 

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Então é assim: a mais famosa, prestigiada e de fato importante faculdade de medicina do país, a da Universidade de São Paulo, está envolvida num escandaloso, vergonhoso, inacreditável emaranhado de denúncias em que diversas calouras revelam casos de assédio moral, assédio sexual, estupro, racismo, intolerância religiosa, abuso de substâncias ilegais e “otras cositas más”.

Os detalhes (levantados em boa série de reportagens do site “Ponte Jornalismo”) são escabrosos, de corar gigolô, e vão desde ofensas raciais dirigidas a negras, referências pouco lisonjeiras ao órgão sexual feminino, extremando-se em pormenores sobre estupros, mesmo. Sabe-se agora que humilhações, violência, abusos por parte de veteranos contra os calouros, sobretudo as mulheres, fazem parte, há anos, do dia-a-dia da instituição, tudo acobertado por uma tão ameaçadora quanto conveniente lei do silêncio.

Além das reportagens citadas, o caso ganhou notoriedade por conta de audiências públicas promovidas pela Assembleia Legislativa de São Paulo, em que as vítimas relataram as sevícias, e também por iniciativa desta Folha.

Vejam o que o professor encarregado de conduzir as investigações disse à jornalista Claudia Colucci dias atrás: “A faculdade nunca fez nada. Como professor, sinto que falhei, não desempenhei meu papel. Todos os professores deveriam se sentir assim. Isso diz respeito a todos nós.”

Disse mais: “A faculdade [de medicina da USP] se comportou mal. Houve demora da congregação, ficaram na defensiva [sobre as denúncias de estupro das alunas]. Há uma crise de conduta, de valores. Cansei de engolir sapo”.

A referência ao batráquio indigesto se dá porque o mestre, o professor titular de patologia Paulo Saldiva, decidiu não apenas demitir-se do cargo de coordenador da comissão de investigação, como afastar-se inteiramente da Universidade.

Imagine a vergonha que deve estar sentindo…

Agora, imagine nós, pobres mortais pagadores de imposto, que podemos a qualquer momento de nossas vidas cair nas mão de um médico que se formou em meio a tão “saudável” e “instrutivo” ambiente e que por qualquer razão que seja carregou para a vida profissional estes “valores”.

Ou que venhamos, por uma dessas ironias do destino, a depender do senso de justiça e da capacidade de discernimento de um magistrado deste jaez, ou seja, que se julga acima do bem e do mal.

Adaptando uma piadinha antiga de redação de jornal, pergunto: você sabe a diferença entre o médico e o juiz? O primeiro se julga Deus, o segundo tem certeza…

Ah, estes médicos e juízes são exceções, me diz aqui o bom senso, a maioria é correta e qualificada, não merece ser julgada genericamente por desvios de condutas de uns poucos.

Beleza. Então que médicos oriundos da USP e juízes do bem venham a público para repudiar claramente aqueles que denigrem sua tão nobre profissão, por favor…

 

Fonte: Folha de São Paulo