A violência no currículo da Faculdade de Medicina da USP

Por Cida de Oliveira, para Rede Brasil Atual.

 

Quando o país vê médicos saírem às ruas contra um programa governamental que pretende levar atendimento aos brasileiros das regiões mais distantes, onde eles próprios não querem nem passar, é evidente que não se trata apenas de corporativismo, descompromisso social e falta de ética, mas também de problemas na própria formação.

Este 2014 foi o ano em que a Faculdade de Medicina teve enfim expostas mazelas de um ambiente protegido pela omissão, a negligência e o complexo de superioridade daqueles que deveriam zelar pela reputação desse centro de excelência em pesquisa. Agora em 16 dezembro, a situação desencadeou a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa – algo raro num legislativo que teve, ao longo dos últimos 20 anos de controle tucano, dezenas de pedidos de investigação jogado para debaixo do tapete.

Semanas antes, em audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, no último dia 11 de novembro, médicos, professores, estudantes e parlamentares ouviram os relatos de alunos que sofreram violência física, sexual, assédio moral e homofobia nos trotes e festas do curso mais concorrido da principal universidade brasileira, a USP. E o que mais revolta: sofreram ainda difamação, perseguição e pressões para silenciar, numa agressão psicológica igualmente perversa.

Claramente nervosa, a estudante Marina Souza Pikman contou que foi estuprada em 2011, ainda caloura, numa festa tradicional da faculdade, por um trabalhador terceirizado da instituição. A consciência foi recobrada muito tempo depois, no Hospital das Clínicas, para onde foi levada. Por duvidar do que tinha acontecido, recusou-se a fazer exame de corpo de delito, mas acabou convencida por amigos a tomar antirretrovirais, procedimento comum em casos de estupro para tentar prevenir a infecção por HIV. Depois de muito tempo soube que o tal homem pagou para entrar na barraca onde ela estava desacordada.

A liderança da associação atlética a desencorajou a denunciar por falta de provas e “por sua culpa” ao ter se excedido na bebida. “Diziam que isso tudo podia vazar, e que eu ia destruir a atlética. Um ex-presidente de lá chegou a dizer que a gente precisava abafar para proteger a vítima e também para não destruir a festa. Eu procurava testemunhas, mas elas se esquivavam. Diziam que eu tinha que deixar isso para trás, tocar a minha vida para a frente e que eu não ia conseguir provar”, relatou. Mesmo assim, registrou boletim de ocorrência. Envergonhada e evitando as pessoas, ficou um mês longe das aulas e recorreu ao Grupo Psicológico de Apoio ao Aluno (Grapal), onde faz tratamento até hoje contra o trauma.

“As vítimas deveriam entrar com ações na Justiça contra a universidade e a escola de Medicina, a quem cabe a responsabilidade por tudo o que acontece ali dentro”, defende o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) e autor de livros sobre o trote universitário, Antonio Ribeiro de Almeida Junior. “Tratam-se de quadrilhas que assim devem ser tratadas pela lei.” De acordo com ele, professores, dirigentes, diretores, reitores e até ex-alunos estão por trás dos grupos trotistas, cuja atuação configura o ato não como brincadeira para a integração dos novatos, mas um mecanismo de manutenção da hierarquia no meio médico que deve ser assimilada já no início da formação. “Quem recebe no primeiro ano tem de se calar senão é expulso, num silêncio que lembra as organizações mafiosas, que depois vai acobertar práticas indecentes. Trote não é brincadeira. Divide alunos, causa perdas, tira alunos do campus. A cultura da violência é baseada na impunidade, na cultura do abuso”, afirma, lembrando o caso de uma menina na Esalq que, além de ter sido estuprada por oito rapazes, passou por agressões psicológicas ao ser chamada de pizza “porque dava para oito”.

Outro aspecto chocante é que, em vez de zelar pela segurança e integridade das vítimas e punir os agressores, que geralmente passam anônimos e incólumes em todos esses casos, a direção se preocupa apenas com a preservação do nome da faculdade. Conforme o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, Adriano Diogo (PT), dias antes da realização da audiência pública, ele e outros parlamentares foram pressionados diretamente pelo diretor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), o professor titular do Departamento de Cirurgia José Otávio Costa Auler Junior, para que não realizassem o debate sobre as violações aos direitos humanos naquela instituição. “Exaltado, sem me deixar falar, ele dizia que a reunião não deveria ser realizada porque iria jogar na lama o nome da instituição e que ele iria tomar providências contra os abusos”, disse Diogo. A audiência acabou realizada na marra.

“Apelar à direção não vai funcionar porque ela faz parte do esquema”, disse o professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e diretor da Associação dos Docentes Francisco Miraglia. “Só a democratização da universidade, em especial da Faculdade de Medicina, é que vai resolver esse problema que tem raízes na estrutura autoritária e militarizada da USP, que permite o lucrativo mercado das festas privadas aqui dentro, mas que criminaliza os estudantes.” Em meio à grande repercussão, no final de novembro Auler proibiu festas dentro da faculdade.

 

Fonte: Rede Brasil Atual