Porque todos nós precisamos do SUS e sem abertura do capital estrangeiro na saúde

Isabela Soares Santos* | Publicado pelo Informe ENSP 

Semana passada, soubemos de uma grave e péssima notícia sobre o não veto da presidenta à Medida Provisória n.º 656, de dezembro de 2014 (para o Projeto de Lei n.º 18, de 2014), que muda a vida dos brasileiros e nossa perspectiva de uma sociedade mais solidária.

Explico: grave porque é inconstitucional e péssima porque afeta o direito que cada cidadão tem à saúde, além de nossa perspectiva para o futuro de nossos filhos e netos.

Mas o que a redação do Projeto de Lei n.º 18 traz? Ele altera o texto da Lei Orgânica da Saúde, a famosa LOS nº 8.080 de 1990, ao autorizar a “abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde”.

Mais que oferta de serviços, o texto ainda versa que “É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde”, ou seja, não estamos mais falando somente em oferta de serviços e sim a respeito da assistência que envolve outras coisas.

E delimita essa abertura para a oferta e assistência em alguns casos; entre eles, pasmem, “instalar, operacionalizar ou explorar: a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e b) ações e pesquisas de planejamento familiar”. Qualquer pessoa que já tenha utilizado o SUS em algum dos estabelecimentos citados já compreendeu que a abertura é para, praticamente, tudo.

Essa MP é uma violação à nossa Constituição Federal – documento de maior hierarquia jurídica do país que deve ser respeitado nas diretrizes para o sistema de saúde brasileiro. Isso é grave. É grave também o fato do governo e do Congresso Nacional não terem considerado as recomendações da nota feita pelo movimento das entidades da Reforma Sanitária acerca do assunto (consulte a carta aqui).

Enquanto a Constituição Federal veta o capital estrangeiro, a MP abre para o capital internacional na saúde. Portanto, é inconstitucional! E representa as forças que intencionam que o SUS sirva ao melhor lucro do setor privado e ao capital internacional – o qual é privado.

Mas por que precisamos de um sistema público?

Cito alguns exemplos. Em primeiro lugar, o SUS pode ser usado por todos os brasileiros. Qualquer pessoa que precise utilizar um serviço de saúde pode ser atendido pelo SUS simplesmente por ser uma pessoa; não precisa pagar por ele na hora do uso. A essa condição denominamos Direito Universal à Saúde. Trata-se de um direito de cidadania. Isso não ocorre com os planos de saúde, nem com os médicos, laboratórios e hospitais privados sem atendimento do SUS, pois nesses é necessário pagar para usar, seja por intermédio do plano ou pagando diretamente pelo próprio bolso – nesses casos, é estabelecido o direito de consumidor.

O uso do SUS por todos pode ter diversos problemas. Realmente tais problemas existem, mas ainda é para todos. O direito de cidadania estende-se a todas as pessoas, principalmente nas sociedades preocupadas com o bem-estar geral, cuja organização é determinada com base em valores de solidariedade, os quais fundamentam serviços de interesse público, coletivo. Já o uso do serviço de saúde mediante o pagamento, baseado no direito de consumo, ocorre se a pessoa tiver como pagar; do contrário, não poderá usar. Nesse caso, é cada um por si, de modo a prevalecer o valor da liberdade individual. Isso acontece nos mercados privados.

Na prática, todos os sistemas de saúde do mundo têm mistura de público e privado. Em minha opinião, o mais importante a compreender em cada sistema, e sobretudo no nosso, é se aquilo que é de interesse de todos (interesse público) consegue prevalecer sobre o interesse de alguns (interesse privado).

Assim, por mais problemas que o SUS apresente e por mais imbricado que esteja com o setor privado, ele ainda é um sistema de saúde de interesse público para os mais de 200 milhões de brasileiros (algum outro país desse tamanho tem sistema público para todos?). Portanto, o SUS é nosso e precisa ser melhorado.

Mas por que precisamos de um sistema público de saúde e por que é tão difícil melhorar o SUS?

Além dos motivos aqui já discutidos, precisamos de um sistema público por diversos outros motivos. Um deles é viabilizar a organização e a gestão do sistema. Imaginem como seria organizar a atenção à saúde em mais de 5 mil municípios, mais de 44 mil postos e centros de saúde, cerca de 41 mil policlínicas e clínicas especializadas, 20 mil estabelecimentos de serviços de apoio à diagnose e terapia (SADT), além dos mais de 6 mil hospitais e mil prontos-socorros, para mais de 200 milhões de brasileiros ?

Outro motivo é ter escala econômica. Alguns indivíduos necessitam gastos com saúde muito maiores que outros, de modo que é preciso diluir esses gastos, de forma que a viabilidade econômica é maior em uma população maior. Isso é reforçado dentro de um contexto em que os custos com saúde são cada vez maiores em razão do desenvolvimento tecnológico – que no setor de saúde incorpora novas tecnologias sem se desfazer das antigas –, bem como devido a diversas mudanças, como envelhecimento populacional, aumento das doenças crônicas, aceleração da urbanização não planejada, gentrificação, crescimento dos modos de vida pouco saudáveis, quando a diluição dos gastos com saúde se faz cada vez mais necessária.

Um sistema de saúde público também é fundamental para existir e serem estabelecidas regras mínimas de segurança e qualidade dos serviços realizados e, ainda, dis recursos físicos e humanos que oferecem os serviços. Isso não pode ser previsto por cada empresa de saúde, seja um estabelecimento ou empresa de plano privado; tem de ser realizado por entidade que represente o interesse coletivo e público, e não o interesse privado do lucro. Então, só é possível ser realizado pelo Estado.

Além disso, um sistema público de saúde também é importante por questões relacionadas ao desenvolvimento econômico do país. Interessa a todos um bom sistema público de saúde na intenção de garantir uma população saudável e com qualidade de vida. Atualmente, alguns países já atentam para a necessidade de prover sustentabilidade às políticas sociais, de modo a garantir o acesso da população aos serviços de educação, saúde, previdência, saneamento e assistência social, para que as sociedades possam se desenvolver inclusive economicamente como forma de enfrentamento da pobreza, geração de emprego e produção de riqueza.

O setor privado é um problema? Como essa mudança no setor de saúde pode nos afetar tanto se ficamos sabendo, todos os dias, de tantas notícias a respeito dos diversos problemas do SUS e dos planos de saúde? Pode atrapalhar a melhora do SUS? Pode piorar nosso sistema de saúde em sua totalidade?

O SUS já melhorou muito desde que foi implantado. É possível constatar isso facilmente ao compararmos a situação atual com a de 30 anos atrás, pois não eram todos os brasileiros que podiam ser atendidos, sem mencionar a importante melhora geral dos indicadores de saúde dos brasileiros. Contudo, o SUS continuar sempre melhorando não interessa a todos (e temos de fazer muitos enfrentamentos para mudar essa situação).

Em primeiro lugar, pelo motivo mais óbvio, isto é, se o SUS for muito bom, o setor privado não terá muitos clientes, e, portanto, os empresários do setor privado não conseguirão acumular tanta riqueza. Carlos Ocké-Reis mostrou, em 2013, em um trabalho publicado, que o faturamento das empresas de planos de saúde vem aumentando de forma espantosa.

Em segundo lugar, há muitos enfretamentos a serem feitos, pois, desde a aprovação em 1988 da “Saúde como direito de todos e dever do Estado” na Constituição Federal, e também que “A saúde é livre à iniciativa privada”, o SUS tem de competir com o mercado privado de saúde, porém em situação de desvantagem. Apresentamos, a seguir, alguns exemplos extraídos do documento Manifesto do Cebes em defesa do Direito Universal à Saúde, Saúde é direito e não negócio (leia aqui a íntegra do documento):

– 53% de todo o gasto com saúde no Brasil é privado (dados de 2010); enquanto entre as 10 maiores economias do mundo, só na Índia o gasto privado em saúde é maior que no Brasil (BANCO MUNDIAL: 07/02/2014);

– 25,3% dos brasileiros (mais de 49 milhões de pessoas) são clientes de planos privados de saúde (ANS: 20/04/2014);

– As empresas de planos privados de saúde faturaram R$ 95,417 bilhões em 2012, 12,7% mais que em 2011 (ANS:23/04/2014);

– As despesas do Ministério da Saúde foram de R$ 62,621 bilhões em 2011, R$ 22,036 bilhões a menos que o faturamento do setor suplementar, o Ministério, porém, destina-se a todos os brasileiros, e os planos a um quarto da população;

– As empresas de planos privados de saúde têm forte poder econômico e financeiro e gastam bilhões de reais em publicidade. Como exemplo, em 2011, os planos de saúde eram o primeiro na lista de desejos de 90% dos brasileiros (SCHELLER, 2011: 28/11/2013). Ao mesmo tempo, desde os anos 1970, os sindicatos defendem o acesso mais amplo dos trabalhadores aos planos privados de saúde;

– Todos os principais fornecedores de equipamentos, medicamentos e insumos biomédicos são privados;

– O Brasil é, atualmente, o quarto maior mercado de produtos farmacêuticos de todo o mundo, e o SUS é comprador de uma grossa fatia desse mercado (INTERFARMA, 2013, apud SILVA, 2014, p. 56);

– Os prestadores privados de serviços de saúde são responsáveis por grande parte dos leitos de internação hospitalar do SUS, e ainda há vários programas públicos de apoio financeiro a essas entidades (por exemplo, o BNDES Saúde – Atendimento SUS, BNDES: 22/04/2014, e o PRO SANTA CASA do Estado de São Paulo, SÃO PAULO: 23/04/2014);

– Os gestores privados de saúde vêm sendo fortalecidos pela contratação de OSCIP e OS, permitidos pela Lei Federal n. 9.790/1999, sendo crescente sua atuação na gestão de hospitais, centros de saúde, UPAs e unidades de saúde da família;

– Em 2012, o Programa “Aqui tem Farmácia Popular” contava com 25 mil farmácias em 3.730 municípios, 12,953 milhões de pessoas (SILVA, 2014, p. 152 e 153). Para exemplificar, a remuneração do Programa às Farmácias Privadas foi superior em 254,9%, em média, ao preço de aquisição praticado pela SMS do Rio de Janeiro (SILVA, 2014, p. 231);

– Em 11 anos, a proporção do financiamento federal relativa ao financiamento total do SUS caiu de 58,4% para apenas 45,4%;

– A isenção do imposto de renda dos gastos com saúde privada é enorme – representava R$ 15,8 bilhões em 2011, o equivalente a 22,5% de todo o gasto federal em saúde (OCKÉ-REIS, 2013, p. 4) –, e a metade dessa isenção era relativa às despesas com planos de saúde (R$ 7,7 bi);

– Os gastos só do governo federal com assistência privada à saúde para os servidores públicos e familiares equivalem a 5% do valor total do orçamento do Ministério da Saúde (SANTOS, FERREIRA e SANTOS, 2014);

– 66% dos equipamentos de diagnóstico e terapia encontram-se sob controle do setor privado, e 62% dos leitos hospitalares existentes no Brasil eram privados em 2014 (DATASUS: 18/05/14).

Esses são exemplos de importantes resultados de ações de competição que o SUS tem de fazer com o setor privado, em situação desfavorável. São situações como essas que precisamos enfrentar. Por exemplo, só o fato de as pessoas terem desconto no imposto de renda para pagar assistência privada à saúde já é um forte desmotivador para que justamente a população mais formadora de opinião tenha planos e deixe de lutar pelo SUS. Que futuro esperamos com isso? Até quando aceitaremos isso, cara pálida?

A meu ver, estamos diante de um grande desafio, tanto individual de posicionamento na sociedade como ser político e, ao mesmo tempo, de estabelecimento de canais de diálogo com a população que sejam mais efetivos, a fim de fazer valer os valores de uma sociedade solidária.

Enquanto propagam-se teses de cataclismos no mundo, no Brasil, estamos preocupados vivendo adiantados tempos de escassez que surgem por outros motivos. Assim, optei por energizar minha atuação no movimento social e seguir na torcida para que a escassez de governantes comprometidos com a população e os valores de solidariedade se reverta. É preciso discutir e agir tanto no que diz respeito ao caminho que o SUS seguirá quanto à escassez de recursos hídricos (que nos colocará em situação de revisão da hierarquia social brasileira herdada da época da escravidão). Enfim, mais que nunca, é hora de as pessoas e instituições fazerem pressão por um Brasil melhor, como é possível ser.

A começar esclarecendo a população de que os planos privados são um estelionato. A grande parte das pessoas que tem plano o tem vinculado ao emprego. Quando se aposentarem, seus orçamentos diminuirão, sua necessidade de serviços de saúde e seus gastos com saúde aumentarão e, provavelmente, não conseguirão mais pagar por esses planos. A única saída para nós e nossos filhos é um SUS melhor.

Ao mesmo tempo, é hora de reunir o pensamento progressista de esquerda, independentemente do partido ao qual as pessoas pertençam, e se inspirar nos movimentos que estão ocorrendo na Grécia e na Espanha, para, de fato, avançarmos nas políticas sociais.

* – Isabela Soares Santos é Pesquisadora do Daps/Ensp, vice-presidente do Cebes e coordenadora do PDTSP/VPPLR/Fiocruz.