Os ensaios clínicos e a Anvisa: uma priorização invertida

Reinaldo Guimarães *

Para entender o contexto

Ensaios clínicos de fase III são a penúltima etapa antes do lançamento de um produto farmacêutico no mercado. São essenciais para que uma agência de regulação sanitária confira ao produto candidato o registro farmacêutico, que é a última etapa. Os ensaios clínicos de fase III têm o objetivo de avaliar a eficácia e a segurança do produto em um número grande de indivíduos. Pelo fato de utilizarem humanos como sujeitos de testes, os ensaios clínicos devem passar por uma avaliação ética, além da avaliação sanitária.

Os ensaios clínicos são também a etapa mais cara no processo de desenvolvimento de um medicamento. Podem responder por até 80% do custo total desse desenvolvimento. Por essa razão, também pelo enrijecimento das normas regulatórias em países centrais, pela necessidade de testar o medicamento em populações com perfis genéticos variados e pela necessidade de encontrar pacientes em período mais curto, as farmacêuticas multinacionais passaram a realizar seus ensaios clínicos em países em desenvolvimento. Nestes, os custos são menores (até 1/10 do custo por paciente em relação aos EUA), a regulação sanitária seria mais frouxa, o perfil genético dos pacientes seria mais variado e haveria mais pacientes disponíveis.

Com exceção da frouxidão regulatória, posto que a ANVISA é uma agência que possui atualmente um padrão técnico-regulatório comparável às melhores congêneres no mundo, o Brasil tornou-se um país ideal para a realização de ensaios clínicos: somos multiétnicos e temos uma grande população. Além disso, possuímos uma comunidade científica de dimensão e competência adequadas para atender à demanda de ensaios clínicos no país.

A indústria farmacêutica brasileira, tanto a nacional quanto a multinacional, tem restrições ao processo de regulação sanitária e ética, essencialmente no que diz respeito aos tempos despendidos pelos órgãos responsáveis para tramitar as solicitações de autorização. Em vista disso, tanto a ANVISA quanto o sistema de regulação ética na pesquisa com seres humanos (sistema CEP’s/CONEP – governado pelo Conselho Nacional de Saúde) têm sido responsabilizados por uma suposta ‘perda de oportunidades’ de sediar ensaios clínicos no país em virtude de sua lentidão.

A resposta da ANVISA

O sistema CEP’s/CONEP, do qual não trataremos neste pequeno texto, tem procurado agilizar suas ações, muito embora numa velocidade que talvez não seja a ideal, mas que decorre das próprias dificuldades de formação de consenso no plenário do órgão de controle social do SUS. Pelo lado da regulação sanitária, após o devido processo de consulta pública realizado em 2014, sua diretoria colegiada aprovou em 4 de fevereiro passado as novas normas que devem reger essa regulação após a sua publicação no DOU. De um modo geral a orientação foi simplificar os procedimentos de entrada e processamento dos pedidos, bem como estabelecer prazos para algumas decisões em caráter final. Há muitos e importantes avanços, mas pelo menos um problema de monta.

Esse problema diz respeito aos prazos para a tomada de decisão da agência quanto a anuência ou não das solicitações para a realização de ensaios clínicos. Conforme a nota expedida pela sua assessoria de comunicação;

“…Uma das novidades é a definição de prazo fixo para que a ANVISA realize a avaliação dos Dossiês de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM) contendo projetos de ensaios clínicos a serem realizados no Brasil. Pelo texto aprovado, os estudos de fase III, com medicamentos sintéticos e com realização em outros países [grifo meu] contidos em um DDCM terão um máximo de 90 dias para a sua avaliação. A estimativa é que 60% dos estudos analisados hoje pela ANVISA se enquadrem nesta regra de 90 dias. A nova norma define que nos casos em que a Agência não se manifestar no prazo de 90 dias, o estudo poderá ser iniciado, desde que aprovados pelas instâncias que avaliam os aspectos éticos da pesquisa. Nestes casos, a ANVISA vai emitir ainda uma autorização para que o pesquisador importe os produtos da pesquisa em questão. …. Já os estudos … com medicamentos biológicos ou realizados apenas no Brasil [grifo meu] terão uma meta de 180 dias para sua avaliação pela ANVISA, mas o início do estudo não poderá ser feito até [a] avaliação da agência”.

Em outros termos, os estudos clínicos patrocinados pelas empresas multinacionais terão prazo de 90 dias para serem anuídos, enquanto os patrocinados por empresas nacionais, bem como os que envolvam rotas biotecnológicas terão como meta [aqui é meta e não prazo] de 180 dias. Aqueles estudos serão iniciados após os 90 dias, automaticamente. Estes não poderão sê-lo após os 180 dias. Deverão aguardar o final do processo, sempre que a meta não seja cumprida.

Uma priorização equivocada

É lícito supor que a diferença entre os tempos e a mudança do termo ‘prazo’ para o termo ‘meta’ transmitirá ao corpo técnico responsável pela análise uma nada justificável priorização daquilo que tem 90 dias de prazo em relação ao que tem 180, acentuada pela perspectiva de romper um ‘prazo’ (que terá consequências potenciais para os sujeitos da pesquisa, que poderá ser iniciada sem que haja uma anuência formal) contraposta a não observância de uma ‘meta’, pouco importante e vazia de consequências. Isso porque os ensaios de 180 dias como ‘meta’ não serão iniciados enquanto não foram formalmente anuídos, mesmo que a análise dure dez vezes mais tempo do que a ‘meta’.

O argumento dos que propuseram esse ‘duplo standard’ sanitário é que se um DDCM já foi aprovado numa agência de outro país, então a análise do projeto já passou por um crivo sanitário, sendo menos exigido o olhar percuciente dos técnicos da ANVISA. Em outros termos, estes já terão um background analítico, em benefício da segurança dos futuros sujeitos da pesquisa brasileiros. Embora substantivo, esse argumento tem problemas. O primeiro deles é o conceito de ‘agência de outro país’. Há muitos níveis de agências em muitos tipos de países. Se pensarmos no FDA, na EMA e em mais uma dúzia de agências pelo mundo afora, tudo bem. Mas e as outras, cuja competência técnica e ética está muitos furos abaixo das da ANVISA? Em um artigo de 2009 (1), seus autores revelam que 1/3 dos ensaios patrocinados pelas 20 maiores empresas farmacêuticas norte-americanas estava sendo conduzido exclusivamente com pacientes de fora dos EUA e que quase 60% dos locais (sites) de arregimentação de pacientes se situavam fora dos EUA. O que isso sugere é que a categoria “[ensaios]…com realização em outros países contidos em um DDCM” está longe de definir um conjunto homogêneo de protocolos de pesquisa clínica e que a aprovação do mesmo numa agência estrangeira está longe de garantir a desejável segurança dos futuros sujeitos brasileiros do ensaio.

Acresce outro problema a possibilidade da ocorrência de duplo standard em protocolos clínicos destinados a pacientes de países centrais e periféricos. Muito embora a literatura aborde essa questão predominantemente no âmbito da regulação ética, não há porque negligenciar sua ocorrência no âmbito da regulação sanitária. No campo dos ensaios clínicos, esses dois universos (o ético e o sanitário) possuem uma grande intersecção (2). O que isso quer dizer é que um protocolo aprovado numa respeitável agência sanitária no exterior pode conter especificações que devam ser aplicadas apenas em pacientes autóctones do país da agência.

Na contramão da política do Ministério da Saúde

Os aspectos que discutimos até aqui dizem respeito à segurança dos sujeitos. Mas há outra dimensão, igualmente relevante, que deve ser tocada. Sob a liderança do Ministério da Saúde, em particular de sua Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, e com a decisiva participação da ANVISA em vários de seus aspectos, desde 2007 vem sendo desenvolvida uma política específica para o desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde, cujo objetivo central é o de promover o fomento à indústria farmoquímica e farmacêutica nacionais como ferramenta para a ampliação do acesso a medicamentos através do SUS.

Essa política se expressa em vários terrenos, como a explicitação de produtos prioritários para o SUS, as preferências nas compras governamentais, a construção de mecanismos de avaliação e incorporação tecnológica e o estabelecimento de parcerias entre laboratórios públicos e privados para o desenvolvimento e produção de medicamentos prioritários para o SUS. A indústria farmacêutica/farmoquímica nacional vem participando dessa iniciativa que, entre outros benefícios, está fazendo com que novas tecnologias sejam incorporadas por laboratórios públicos e empresas privadas no país, bem como tem estimulado iniciativas de pesquisa e desenvolvimentos locais. Naturalmente, produtos novos necessitarão de ensaios clínicos projetados e realizados no país. E, de acordo com a nova norma da ANVISA, os DDCM’s desses ensaios terão que se submeter à ‘meta’ de 180 dias, prorrogáveis indefinidamente.

Essa dificuldade poderá incidir de modo particularmente danoso no desenvolvimento local e na transferência de tecnologia de medicamentos biológicos (biossimilares), fortemente apoiado tanto pelo Ministério da Saúde quanto pelo BNDES. Biossimilares desenvolvidos por uma nova rota necessitarão obrigatoriamente de ensaios clínicos de fase III e mesmo aqueles cujas rotas tentam reproduzir uma já existente poderão necessitar desses ensaios, dependendo da capacidade do fabricante nacional em comprovar a similaridade de seu produto com o que lhe deu origem.

Prejuízos à formação de massa crítica.

Finalmente, conspira contra o tratamento diferencial entre protocolos patrocinados com prévia aprovação em agências estrangeiras e protocolos originais brasileiros um aspecto relacionado à formação e capacitação de mão de obra especializada no país. É bastante conhecida a tendência contemporânea da formação de cadeias produtivas internacionalizadas, como uma dimensão da globalização econômica e financeira. E, da mesma forma, é conhecida a tendência dessas cadeias produtivas globais produzirem assimetrias entre os participantes envolvidos segundo a sua nacionalidade, gerando formas de participação que são hierarquizadas. No desenvolvimento e na produção de medicamentos essa hierarquização é bastante evidente. A globalização é quase inexistente nas etapas iniciais da cadeia, onde predominam processos de pesquisa e síntese de moléculas-candidatas, um pouco mais frequentes conforme se avança no escalonamento e mandatórias nos ensaios clínicos, em particular nesses de fase III que estamos tratando. As razões para que isso ocorra já foram mencionadas no início deste texto.

É indiscutível que a participação de profissionais brasileiros (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, epidemiologistas, etc.) nos ensaios patrocinados por multinacionais é benéfica por carrear recursos financeiros que podem reverter em serviços e produtos necessários ao desenvolvimento dos serviços de saúde e da pesquisa de uma maneira geral. Além disso, oferecem alguma possibilidade de treinamento desses profissionais. Entretanto, os graus de liberdade concedidos aos profissionais locais nesses ensaios tende a ser mínima, vale dizer, de muito baixa hierarquia na “cadeia de produção” do projeto. Habitualmente, apenas a captura de pacientes para o ensaio. Por exemplo, um oncologista que já tenha participado de uma dezena de ensaios patrocinados do exterior na qualidade de aplicador de um protocolo de cuja formulação não participou, sobre o qual não são permitidas quaisquer mudanças e de cuja análise final dos dados ele não participará, deverá estar ansioso para ele mesmo construir um protocolo. De acordo com a
norma proposta, os protocolos patrocinados do exterior terão um tratamento claramente privilegiado em relação ao protocolo desenhado aqui no país que ele tem desejo de elaborar. Essa dimensão da pesquisa clínica no Brasil foi discutida, entre outros, por Quental e Salles Filho (3).

Haveria alternativas para essa norma?

A alternativa mais óbvia é que os prazos fossem idênticos para ensaios nacionais e internacionais. Se a existência de um dossiê anterior aprovado em agência regulatória externa poupa trabalho aos técnicos, então a solução para equilibrar os dois tipos de ensaios seria alocar mais técnicos/hora no exame dos protocolos nacionais. Aliás, penso que um complemento na busca por uma solução de equilíbrio seria a existência de ‘filas’ separadas para o exame dos DDCM de acordo com sua origem. Do talento da gerência da área dependerá o andamento pari passu das duas filas, buscando respeitar o prazo de 90 dias nos dois casos.

Uma variante dessa sugestão seria a de encontrar uma ponderação de tempo para as duas modalidades de DDCM. Se, como afirma a nota da agência, 60 % dos DDCM’s são internacionais e 40% são nacionais, um mesmo prazo de 125 dias poderia ser instituído para ambos. Isso diminuiria a chance de um estudo internacional começar sem a anuência concedida e de um DDCM nacional ficar para as calendas.

Naturalmente, em qualquer das duas sugestões, não haveria a distinção entre ‘prazo’ e ‘meta’. DDCM’s das duas origens deveriam ter a sua anuência examinada no mesmo prazo e as consequências da não observância desse prazo (autorização para início do ensaio e licença de importação) seriam vigentes igualmente para as duas origens.

* – Médico Sanitarista. Segundo Vice Presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e Suas Especialidades (ABIFINA).

Notas:

(1) – Ethical and Scientific Implications of the Globalization of Clinical Research. Seth W. Glickman, M.D., M.B.A., John G. McHutchison, M.D., Eric D. Peterson, M.D., M.P.H., Charles B. Cairns, M.D., Robert A. Harrington, M.D., Robert M. Califf, M.D.,and Kevin A. Schulman, M.D. – NEJM 360;8 february 19, 2009.

(2) – Para uma discussão sobre o duplo standard, o leitor pode consultar: Clinical research as a development strategy in health. Sonia Mansoldo Dainesi, Moisés Goldbaum. Rev Assoc Med Bras. 2012;58:2-6 – Vol. 58 Num.01. http://ramb.elsevier.es/en/clinical-research-as-development-strategy/articulo/90157531/.

(3) – Cristiane Quental; Sérgio Salles Filho – Ensaios clínicos: capacitação nacional para avaliação de medicamentos e vacinas. Revista Brasileira de Epidemiologia. vol.9 n.4 São Paulo Dec. 2006.