Denúncias da Band: o alvo é a OPAS ou a Rede Globo?

Paulo Capel Narvai* | Publicado originalmente no site da Associação Paulista de Saúde Pública (APSP)

Os povos americanos devem muito à Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), instituição supranacional criada e mantida pelos países do continente desde 1902. Após a ONU criar a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948, a OPAS se tornou o seu Escritório Regional para as Américas. A OPAS integra a Organização dos Estados Americanos (OEA) e conta com escritórios em 27 países, dispondo de oito centros científicos próprios. Além disso, mantém intercâmbio técnico-científico com algumas centenas de instituições de pesquisa em saúde nos 35 países do continente. Dentre outros feitos sanitários notáveis, a OPAS registra a coordenação da erradicação da varíola e o controle da poliomielite nas Américas.

Os sanitaristas que trabalham e dirigem a instituição, no Brasil e demais países americanos, habituaram-se a lidar cotidianamente com hospedeiros e vetores epidemiológicos de vários tipos, vírus, bactérias e vermes em geral. Mas atualmente, no Brasil, para realizar suas atividades veem-se na obrigação de lidar também com a mídia. Não é tarefa fácil, muito menos isenta de riscos. Não bastam paciência, conhecimentos científicos sólidos, recursos financeiros, nem estar munido de bons instrumentos para agir. É preciso, também, enfrentar a determinação de jornalistas dispostos a fazer uso político dos seus instrumentos de trabalho, na internet, nos jornais e nas emissoras de rádio e TV, como se fossem militantes partidários – e alguns, efetivamente, o são e têm todo o direito de sê-lo.

É essa espécie de militância partidária ou ativismo cujo propósito é preciso esclarecer, que explica a fúria com que alguns jornalistas se lançaram à “denúncia” de um segredo de Polichinelo: o fato de que, no Brasil, de modo similar ao que ocorre na maioria dos países, organizações supranacionais ligadas à ONU e a OEA, celebram convênios com instituições públicas (e contratos com empresas privadas), para cumprirem adequadamente suas respectivas missões. Têm o dever de compatibilizar com as legislações nacionais, os dispositivos normativos internacionais sob os quais realizam suas atividades. Precisam ajustar os termos para não cometer ilegalidades ou irregularidades. Simples assim. Nenhum segredo, nenhuma ação insidiosa, nada a esconder.

Pois vem agora o jornalismo supostamente “investigativo”, movido por iniludível ingrediente ideológico, e quer transformar em “denúncia” algo corriqueiro nas relações entre os países e organismos como a OPAS. Fingem ver nesses ajustes e compatibilizações corriqueiros, escabrosas manobras com a pérfida intenção de burlar. Vende-se a incautos versões bem embrulhadas de supostos trambiques, maracutaias, ilegalidades e práticas mafiosas, alguns procedimentos que são absolutamente legais e que correspondem a acordos administrativos éticos e transparentes, celebrados à luz do direito. As supostas denúncias vêm, contudo, no mesmo embrulho onde estão políticos venais, empresários inescrupulosos, sonegadores contumazes, corruptos de todo tipo e quadrilhas montadas para roubar dinheiro público.

Mas não é sem razão que as “denúncias” vêm no mesmo embrulho, pois a intenção não é informar, mas deturpar e atacar.

Porém, atacar quem mesmo? A OPAS?

Difícil acreditar que jornalistas competentes não compreendam as circunstâncias em que atuam organizações como a OPAS e, vale assinalar, a UNESCO. Cabe, então, perguntar: as denúncias se dirigem à OPAS? Como e por que atacar uma instituição como a OPAS, acusando-a, hoje, de fazer o que vem fazendo desde que se instalou no Brasil? Por que aparecem, agora, como procedimentos irregulares, práticas administrativas e acordos celebrados em conformidade com o direito internacional e a legislação brasileira?

À primeira vista, parece incompreensível que convênios e contratos similares aos celebrados com a OPAS antes de 1964, depois de 1964, nos governos Collor, Sarney, Itamar, Fernando Henrique e Lula, sejam “denunciados” no horário nobre do rádio e da TV, com tamanha desfaçatez e insolência e pouco apreço à verdade. É possível entender as razões, se levarmos em conta a cantilena anticomunista e anticubana cotidiana na grande mídia brasileira, sejam quais forem as consequências desses convênios e contratos para a população brasileira. Isto, o que interessa à maioria do povo brasileiro, parece ser o que menos importa para esses setores da grande mídia.

A OPAS não merece ser usada de modo tão sórdido, para fins políticos tão infames. Os sanitaristas brasileiros, que como eu devem se sentir insultados por esse péssimo jornalismo, e todos os cidadãos de bem, deveriam manifestar seu apoio à OPAS e pedir desculpas à instituição que tanto tem contribuído para melhorar nossas condições sanitárias.

É necessário alertar, por derradeiro, que os alegados “procedimentos irregulares e ilegais” da OPAS, objeto das supostas “denúncias” de um tipo de jornalismo parcial e antidemocrático são, a rigor, idênticos aos utilizados pela UNESCO em suas relações com instituições e empresas brasileiras, dentre as quais a Rede Globo de Televisão. O modo ignominioso com que jornalistas têm “denunciado” a OPAS aplicar-se-ia igualmente à UNESCO? Valeria também para o Programa “Criança Esperança”, ou apenas para o Programa “Mais Médicos”?

Mas, para esclarecer isto, é preciso jornalismo investigativo de verdade.
* – Paulo Capel Narvai é sanitarista e Professor Titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

 

Foto: Marcos Santos