Querem matar o SUS: CPSUS neles!
Paulo Capel Narvai (*)
Em 17 de maio, há 27 anos, uma quarta-feira, os constituintes de 1988 tomaram a decisão de criar o SUS. Um acordo histórico com o “centrão”, um bloco parlamentar conservador que hegemonizou o congresso constituinte, viabilizou politicamente a proposta e o sistema foi criado. Foram 472 votos favoráveis, 9 contrários e 6 abstenções. Uma vitória e tanto.
Mas logo se percebeu que aqueles 15 votos contrários correspondiam a um enorme poder – que logo se pôs a agir contra o SUS. Se o parto ocorreu em 17 de maio a certidão de nascimento do SUS só viria em 5 de outubro, com a promulgação da Constituição de 1988. Na ocasião, Ulysses Guimarães comemorou, mas lamentou não ter sido possível avançar mais. Reconheceu que a Carta de 88 não era perfeita, mas afirmou confiante que seria “útil, pioneira, desbravadora”. Disse, emocionado, que seria “luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”. E está sendo mesmo. Para os “indigentes” do período pré-SUS e para os desgraçados em geral, para os excluídos de quase tudo, o SUS faz uma enorme diferença, embora o SUS faça uma enorme diferença para todos, mesmo para aqueles que, às vezes arrogantemente, pensam que “não usam” o SUS, por “ter plano de saúde”. O sistema, ninguém nega, tem problemas e, com razão, é criticado por isto. Mas, justiça se faça: o SUS é frequentemente atacado mais por suas qualidades do que por suas deficiências, a partir de interesses que nada têm a ver com o direito à saúde, mas porque o SUS “atrapalha” certos negócios – ainda que viabilize outros tantos negócios.
Os 15 poderosos votos contra o SUS no congresso constituinte de 88 nunca deixaram de agir contra o sistema, influenciando decisões para inviabilizá-lo tanto no executivo, quanto no legislativo e no judiciário. Desde sua criação o SUS luta tenazmente para se firmar como um sistema efetivamente universal de saúde. Mas enfrenta ferrenha oposição. Os quinze “SUScidas” de 88 geraram filhotes e estes deram crias que vem se dedicando, diuturnamente, a boicotar e sabotar o SUS, atacando-o de todos os modos e com todos os meios. Há uma guerra contra o SUS e não resta dúvida: querem matá-lo. Os SUScidas disputam a opinião pública, dominam a grande mídia, compram parlamentares venais, corrompem autoridades públicas. Agem na legalidade e, também, ao arrepio da lei. E, nessas batalhas, lançam mão de muitas armas.
A arma principal dos SUScidas é a asfixia financeira do sistema.
Se, conforme a clara indicação dos manifestantes de junho de 2013, a população quer mais acesso e mais qualidade nos serviços de saúde, os SUScidas repetem a cantilena do impostômetro e do suposto excesso de tributos, da má gestão e do desperdício do dinheiro público. Constata-se, porém, uma equação ilógica: a sociedade quer mais e melhores serviços públicos de saúde, mas o Estado brasileiro vem restringindo, a cada ano, os recursos orçamentários alocados ao SUS. Caso o SUS dispusesse em 2015 do equivalente em recursos ao que detinha em 1995 – já insuficientes à época, registre-se –, contaria com pelo menos mais R$ 150 bilhões por ano. Além disso, nas duas últimas décadas, a população aumentou em mais de 50 milhões e envelheceu. O financiamento do SUS, como proporção do PIB, manteve-se abaixo do padrão internacional, e inferior a países como Argentina, Chile e México. Enquanto os países investem, em média, aproximadamente 9% do PIB em saúde, nós seguimos em torno de 7%. Mas se a média do gasto público dos países é 6,7% do PIB, no Brasil é de aproximadamente 3,5%. Investindo tão pouco no setor público, e com problemas de corrupção e gestão, o êxito do País no enfrentamento bem-sucedido de várias epidemias (cólera, para dar apenas um exemplo) e na redução dos indicadores de mortalidade materna e infantil deve-se a uma conjugação de fatores em que ressaltam as melhorias de renda e escolaridade, dentre outras, e a dedicação abnegada dos trabalhadores do SUS, sobretudo no interior da Amazônia e zona rural nordestina. Os gestores do sistema, em vários níveis, fazem o que podem para evitar seu colapso. Mas prejudica-se a qualidade dos serviços, que não fecham suas portas em muitas situações apenas porque os trabalhadores precisam dos seus postos de trabalho, e lutam por eles e para atender quem precisa dos seus cuidados. Além disso, o orçamento da saúde é fortemente pressionado pela dívida pública, que consome mais de 40% dos seus recursos. Tal quadro é paradoxal, pois o grau de desenvolvimento da economia brasileira, que a situa entre as dez principais, é compatível com a ampliação dos recursos para a saúde pública. Porém, sucedem-se os governos e a saúde segue sem recursos definidos e subfinanciada. O Estado brasileiro está refém do sistema financeiro, que lhe devora o orçamento com a voracidade de agiotas. Vão parar no sistema financeira os recursos públicos que deveriam financiar as políticas públicas, dentre elas o SUS. Mas isto destoa muito do que a economia brasileira pode proporcionar ao sistema de saúde. É uma assimetria gritante.
A persistir o quadro atual, há riscos importantes de sucateamento crescente do sistema com o consequente esfacelamento de programas de saúde estratégicos para o País, como os de imunização e prevenção e controle de doenças. Por ampla que seja a resiliência do SUS, há limites que não devem ser ultrapassados, conforme ensina a epidemia de Ébola na África Ocidental.
Especialistas comprometidos com a defesa do SUS, anti-SUScidas, vem denunciando a incúria com que os poderes públicos têm lidado com o problema do financiamento da saúde no Brasil gerando crônica falta de recursos, agravado por esquemas muitas vezes amadores e precários de orçamentação, alocação e gestão. A indefinição de fontes orçamentárias que vinculem legalmente recursos públicos ao SUS solapa o sistema, submetendo-o a contingenciamentos variados e planos de ajustes fiscais, dentre outras restrições.
Neste contexto, nem “Mais Médicos”, ou “Mais Especialidades”, “Mais AMAs”, “mais AMEs”, “mais UPAs”, nem qualquer programa de saúde, por bem concebido e executado que seja, produzirá a mágica de resolver a insuficiência de recursos. Não adianta brandir o mantra da “falta de planejamento” e da “incompetência administrativa”, que embora sejam problemas reais, não são o cerne da questão. É preciso dotar o SUS de fontes orçamentárias fixas, permanentes, suficientes e razoavelmente estáveis.
Teremos, neste ano, a realização da 15ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), que aliás, já começou com a etapa municipal. Vários municípios estão organizando suas conferências. Neste processo, os delegados deveriam analisar o gravíssimo problema do financiamento da saúde e contra-atacar os SUScidas. Uma possibilidade nesse sentido é propor a criação da Contribuição para o Financiamento do SUS, a CPSUS, nos moldes da proposta encaminhada ao Congresso Nacional em 2009, isentando de recolhimento as pequenas movimentações financeiras. Naquele momento, a proposta de criar a contribuição para financiar o SUS foi atingida mortalmente por um ambiente político polarizado pelas eleições presidenciais, e o debate sobre a “CPMF da Saúde” foi abortado. É preciso agora, no contexto da 15ª CNS, reabrir esse debate, pois o Brasil precisa da CPSUS para manter vivo o SUS, essa notável conquista da cidadania que, não obstante persistam importantes desigualdades regionais, é responsável por proezas como fazer o Brasil registrar níveis de cobertura vacinal superiores em alguns casos aos obtidos pelos Estados Unidos e União Europeia, controlar epidemias e fazer vigilância sanitária, realizar 2,1 bilhões de ações e operações de média e alta complexidade, dentre as quais mais de 2 milhões de partos e aproximadamente 25 mil transplantes por ano, cerca de 95% pelo SUS.
Um sistema de saúde com tal impacto social e significado humanitário não pode seguir à mercê dos humores do mercado e do seu impacto em autoridades econômicas. E não há por que prever qualquer “desastre” com a instituição da CPSUS. A análise do desempenho da economia brasileira no período em que vigeu a antiga CPMF comprova que seu impacto foi insignificante sobre o conjunto da atividade econômica. A dinâmica da economia brasileira é compatível com uma contribuição social para financiar o SUS, que seja fixada em algo como 0,1% sobre as movimentações bancárias cujos valores totais, mensais, sejam superiores a 10 mil reais, ou próximo disso. Não há qualquer dificuldade para fazer com que a CPSUS não incida sobre salários de até cinco salários-mínimos, por exemplo, aposentadorias e pensões, saques do FGTS, PIS/Pasep e seguro-desemprego, dentre outras exclusões de interesse público.
Não é possível esperar mais: é preciso dar respostas concretas às manifestações por mais acesso e mais qualidade na saúde e dar um basta à asfixia financeira do SUS. É preciso criar, com urgência, a CPSUS e, com isso proporcionar o oxigênio de que necessita o sistema. Não fazer isto e postergar decisões sobre seu financiamento implicará promover um perigoso esgarçamento desse sistema que é, segundo vários analistas, o principal elo da rede de proteção social construída no Brasil a partir da luz de lamparina de Ulysses Guimarães e demais constituintes de 1988.
– – – – – – –
(*) PAULO CAPEL NARVAI é professor titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).