“Um povo sem saúde é incompatível com o desenvolvimento” – Ana Maria Costa

Leia a íntegra da entrevista que a presidenta do Cebes, Ana Maria Costa, concedeu à revista Brasileiros 

 

Vocês defendem o aumento do gasto publico à saúde. Isso não vai na contramão da situação em que vivemos? Temos força política para isso?

Saúde não é gasto, mas investimento. Um povo sem saúde é incompatível com o desenvolvimento. O Brasil investe poucos recursos públicos para a saúde apesar de um mandato constitucional de um sistema publico e universal. O SUS não tem financiamento suficiente e com o ajuste fiscal reduziu ainda mais. Entretanto, o Brasil continua gastando um volume muito grande de recursos públicos com o pagamento de juros e encargos da dívida (10%) e amortização da dívida (8%) contra apenas 6% para a saúde. Ainda temos a DRU (Desvinculação das Receitas da União) que desvinculará agora, se aprovada, até 30% dos recursos da saúde a depender das necessidades “prioritárias” do governo. O SUS precisa de recurso adequados e vinculados para que se consolide como o sistema de saúde previsto na Carta Constitucional.

 

Também defendem a não dedução do IR de serviços gastos com a saúde. Acreditam que uma medida tão impopular poderia ser implementada?

A renúncia fiscal opera como incentivo para que trabalhadores e população em geral gaste com serviços e planos privados de saúde. Claro que a população é estimulada a buscar recursos assistenciais privados em saúde por que não confia no SUS para resolver de forma oportuna e com qualidade os seus problemas de saúde. Enquanto o SUS não for um sistema de qualidade e de fácil acesso a população não confiará nele. Mas para isso precisa de recursos. O montante estimado da renuncia fiscal não é desprezível e esse recurso deveria ser aplicado no SUS. Isso seria , segundo estimativas, em torno de 5 bilhões de reais. E o SUS gasta com a população segurada por planos privados e, mesmo sendo legal e o governo ter empenhado no ressarcimento estamos muito distantes de receber todo o gasto de volta. Assim o seguro lucra duas vezes: com o que recebe do segurado e com o que deixa de gastar com o atendimento feito pelo SUS. É justo isso?

A medida pode ser impopular para uma parcela da população segurada mas, essa mesma parcela da população que tem seguro privado associado ao emprego sabe que, ao perder o vinculo do emprego ou com a aposentadoria, não conseguirá seguir pagando plano de saúde cujo preço aumenta com a idade. E isso ocorre justamente na fase da velhice, quando as pessoas mais precisam de atendimentos e serviços de saúde, o recurso que resta a elas é o SUS. Defender a consolidação do SUS é uma questão de consciência política em relação aos direitos sociais, de cidadania. Trata se de um processo longo de incorporação dessa consciência que já está em curso no Brasil.

 

Entre outras questões, o CEBES cita a participação do Brasil no BRICS, a reforma política e a reforma tributária na tese. Por que isso é importante para a saúde?

Primeiro o significado do BRICS é a despolarização e mudança da ordem do capitalismo mundial que acarreta mudanças políticas e de concepções para todo o planeta, hoje submetido ao acirramento das desigualdades entre países e no interior dos próprios países. A continuar essa ordem o planeta entrará em falência e a degradação e barbárie humana será o destino inexorável. A saúde está no meio disso tudo por que precisa assumir um destaque nos projetos de desenvolvimento dos países como expressão da valorização do ser humano deslocando valores vigentes da ordem contemporânea. Há chances que novos acordos surjam no cenário criado por esses países que corajosamente enfrentam o capitalismo instalado no mundo.

Por outro lado a saúde mobiliza um enorme setor produtor de insumos tecnológicos hoje muito centralizado nos países centrais e que poderão ser melhor distribuídos. Isso poderá contribuir com melhores preços e maior acesso das populações a insumos hoje restritos a grupos de populações privilegias. Portanto a saúde tem muito a ganhar com o BRICS e esperamos que, na queda de braço que assistimos hoje , essa associação de países possa prosperar efetivamente.

 

Como avalia o governo Dilma e a atuação do Congresso?

O governo Dilma deve ser avaliado no contexto das complexas forças sociais que imperam no Brasil e que mantém governos sob seus interesses. Os avanços conquistados nos últimos anos são inegáveis ainda que insuficientes em relação a conquista de justiça social plena. Ao examinarmos foi muito o pouco que se gastou no país para promover as políticas de inclusão social e da renda, mesmo com o real impacto que ocasionou na qualidade de vida e acesso a bens e serviços de parcelas da população mais pobre. E houve impacto real sobre o consumo o que satisfaz claramente ao mercado. Mas na hora de avançar, de promover mais mudanças na estrutura das classes sociais e na soberania nacional, a reação destas forças privilegiadas historicamente surge de forma agressiva tal como temos assistido na tentativa de golpe político e inviabilização de um avanço de um estado com mais compromisso com o bem estar social. Um cenário de forças antagônicas mas covardemente manipulado pela condução da opinião publica por uma mídia aliada ao poder dos mais abastados , que, mesmo sendo poucos, acumulam um poder descomunal e contam com agentes públicos da classe política e do judiciário que serve e obedece muito bem aos que lhes financiam. Um jogo duro. Dilma tem sobrevivido – e certamente sobreviverá – mas com muitas concessões e por isso com um enorme desgaste de seu patrimônio político e o de seu partido. Nesse contexto , a saúde não tem recebido a prioridades, os recursos e o lugar que gostaríamos.

 

Vocês citam o projeto de emenda constitucional 451, de autoria do Eduardo Cunha, que tornaria planos privados obrigatórios aos trabalhadores empregados. Por que são contra?

Somos contra por que a saúde é de relevância publica e não pode ser mercantilizada como qualquer produto.Somos contra por que a saúde é direito de todos e dever do Estado tal como o artigo 196 da CF 88 preconiza. Somos contra por que seria remeter o Brasil ao modelo anterior à CF onde saúde era privilégio dos segurados pelo INAMPS, que tinham vinculo de trabalho. Somos contra por que seria pior que naquele tempo de outrora onde pelo menos o Estado mantinha a gestão do órgão segurador e gestor. Somos contra por que seria o fim de um sistema de saúde concebido na Constituição, adequado para o país e que pode ser consolidado tal como concebido, que é o SUS.
Precisamos lembrar que a Politica de Proteção e Seguridade Social – articulando saúde, previdência e assistência social – aprovada pelos nossos constituintes e constantes de nossa Carta deriva de uma base conceitual e política de uma sociedade solidaria que, para ser operacionalizada conta com distintas faixas de contribuintes para que todos, de forma indistinta, possam usufruir. Esse tecido solidário é básico na democracia social .