O Cebes e a defesa intransigente do direito à saúde e da democracia

Editorial da edição 108 da Revista Saúde em Debate

 

HÁ EXATOS 40 ANOS, um grupo de jovens médicos sanitaristas da Universidade de São Paulo propôs a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que teria como um de seus objetivos promover, por meio de um periódico, “a análise do setor de saúde como componente do processo histórico-social” (CEBES, 1976, p. 3). A fundação do Cebes e da revista ‘Saúde em Debate’ ocorreu durante a XXVIII Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em julho de 1976 em Brasília. A revista rapidamente tornou-se um dos principais veículos de análises críticas sobre os determinantes da saúde e sobre propostas políticas para o setor. Embora surgido no meio acadêmico, por intermédio da revista e de seu posicionamento claro contra o regime militar, o Cebes conquistou filiados entre profissionais de saúde e de áreas afins e criou articulações com as comunidades eclesiais de base, com o movimento sindical e com associações de moradores e grupos de esquerda. Parte dos filiados reuniram-se em núcleos, formaram grupos de estudos, organizaram seminários para discutir os documentos da entidade e tornaram-se ativos divulgadores da revista. O Cebes desempenhou um papel importante na emergência e fortalecimento do chamado movimento sanitário e na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), mantendo, desde então, influência política significativa no setor.

 

A atuação do Cebes durante esses 40 anos foi balizada pela defesa da democracia como valor, como uma causa atemporal, cujas regras devem ser respeitas por todos e garantidas pelas instituições criadas para assegurar o jogo democrático. A questão da democracia é intrínseca à defesa do direito à saúde como direito de cidadania, bem como de todos os demais direitos sociais universais.

 

Exemplos dessa forma de atuação do Cebes podem ser recuperados do I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, promovido pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, realizado em 1979, que reuniu as principais lideranças e entidades preocupadas com a situação da saúde no País. Naquele evento, o Cebes lançou o documento intitulado ‘Democratização e saúde’, que criticava a ‘mercantilização da medicina’ propondo a transformação dos ‘atos médicos lucrativos em um bem social gratuito à disposição de toda a população’; a criação de ‘um sistema único de saúde’ e a atribuição ao Estado da ‘responsabilidade total pela administração desse sistema’. O referido documento destacava: “Cresce […] a irritação da população contra as filas, a burocracia, a corrupção e os custos da má atenção médica que recebem.
[…] Enquanto isto acontece, a medicina brasileira vive uma profunda crise. Exacerbam-se as críticas à sua qualidade.” (CEBES, 1981, p. 227). Lendo isso, alguém poderá dizer que pouca coisa mudou. Entretanto, ocorreu o inverso, muita coisa mudou. Dos aproximadamente 120 milhões de brasileiros em 1980, um terço não tinha acesso a serviços de saúde, e grande parte dos serviços prestados eram inadequados (BRASIL, 1980, p. 20). Atualmente, quase toda a população tem acesso a serviços de saúde, especialmente a partir da adoção da Estratégia da Saúde da Família (ESF) como modelo de atenção.

 

Todavia, a despeito da grande melhoria que a ESF trouxe no tocante ao acesso, este permanece ainda insuficiente e inadequado. Concorrem para isso vários fatores, como a restrição do acesso a procedimentos de média e alta complexidade, a falta de profissionais com formação adequada, a infraestrutura precária, problemas de gestão e o subfinanciamento que acompanha o SUS desde os seus primórdios. Nesse aspecto, um dos maiores problemas tem sido a participação indefinida e reduzida do Governo Federal. Isso sugere que o SUS, apesar de consagrado pela Constituição Federal, não foi assumido pelos governos e nem foi incorporado subjetivamente por importantes setores da sociedade brasileira (classe média e alta, trabalhadores sindicalizados), ou seja, não reconhecem o SUS como o sistema público universal do Brasil.

 

A EC 29/2000 não definiu o piso de contribuição para o Governo Federal, vinculando a contribuição à variação do PIB, e a EC 86/2015 desrespeitou o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLC n.º 321/2013) com mais de 2,2 milhões de assinaturas em prol da aplicação mínima de 10% da Receita Corrente Bruta da União em saúde. A substituição da regra definida pela EC 29/2000 para calcular o gasto federal mínimo com base em percentuais sobre a receita corrente líquida, definidas pela EC 86, implicam uma perda de aproximadamente R$ 10 bilhões para o ano de 2016. O artigo 38 da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União, o qual define que o valor atual do gasto federal mínimo não poderá ser inferior ao valor resultante da aplicação da regra anterior, foi vetado pela presidente. Enquanto isso, a votação da PEC 01/2015 baseada na iniciativa popular Saúde + 10 foi sucessivamente adiada. Por outro lado, as transferências do governo ao setor privado, por meio de empréstimos subsidiados do tesouro nacional, cresceram significativamente e superam a casa dos R$ 38 bilhões estimados para 2016. Essa situação nos convoca para a luta pela rejeição do veto ao artigo 38 e pela aprovação imediata da PEC 01/2015. Contudo isso não basta, devemos continuar a lutar pelo SUS que sonhamos em 1979.

 

Por fim, nestes momentos de crise política e institucional que o Brasil vive, o Cebes, por meio de seu principal órgão de divulgação, reafirma o valor da democracia como princípio civilizatório.

 

Condena os atos que colocam em risco a frágil democracia conquistada pela sociedade brasileira depois de 20 anos de ditadura e reafirma: SAÚDE É DEMOCRACIA!

 

Cornelis Johannes van Stralen
Presidente do Cebes

 

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde, Brasília, DF, 24 a 28 de março, 7., Anais… Brasília, DF:
Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1980.
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Editorial. Rio de Janeiro, Saúde Debate, v. 1, n. 1, 1976.
______. Relatório de atividades da diretoria nacional do CEBES, gestão 1980/1981. Rio de Janeiro: CEBES, 1981.

 

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