O SUS é uma conquista da sociedade, não é ‘pauta bomba’

Por Élida Graziane Pinto e Francisco Funcia* | Publicado Originalmente no Jornal O Estado de São Paulo

 

O Sistema Único de Saúde (SUS) representa uma das grandes conquistas da sociedade brasileira. A síntese da nossa Constituição Cidadã é extremamente feliz e revela a sua extensão: “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Quase três décadas se passaram desde 1988, contudo, sem que tenhamos sido capazes de tornar o SUS plenamente efetivo, sobretudo por força do seu subfinanciamento e, por certo também, de eventuais falhas de gestão.

 

Neste início de 2016, o Congresso Nacional é chamado a debater a falta de recursos para assegurar efetividade à política pública de saúde no país. O alvo da discussão é o risco sério de queda do gasto mínimo federal no setor decorrente da entrada em vigor das novas regras trazidas pela Emenda 86/2015, que estimamos alcança a expressiva monta de R$10 bilhões.

 

Foi precisamente para evitar um colapso do SUS, como, aliás, já alertavam o ex-Ministro Arthur Chioro e as entidades comprometidas com o SUS, que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 01-A/2015 entrou na pauta de discussão e votação da Câmara dos Deputados nesta semana.

 

Esse é o contexto em que nos encontramos e que, diferentemente do que está sendo divulgado pela mídia, não pode ser reduzido a uma disputa política entre governo e oposição. Com ênfase, afirmamos que o adequado financiamento do SUS não é uma “pauta bomba” de alguém contra outrem, mas sim uma antiga e extremamente relevante agenda da sociedade pela efetivação do direito à saúde.

 

Retomamos a importância para a sociedade da aprovação da PEC 01-A/2015 agora, porque nela vemos a possibilidade concreta de correção dos graves erros cometidos pelo mesmo Congresso Nacional em 2015 quando da aprovação da citada Emenda 86.

 

O primeiro equívoco na edição da EC 86 foi ter ignorado o pleito de mais de 2,2 milhões de pessoas que assinaram o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLC) nº 321/2013, conhecido como “Saúde+10”, que estabelecia como aplicação mínima para as ações e serviços públicos de saúde o patamar de 10% das receitas correntes brutas da União. O índice proposto pela sociedade hoje seria equivalente a aproximadamente 19,4% da receita corrente líquida (RCL), ao invés dos 13,2% fixados pela norma em vigor.

 

Mas o segundo e mais grave erro foi estabelecer a redução do volume de recursos federais destinados para o financiamento do SUS de 2016 a 2019, em face dos patamares históricos de aplicação efetivamente realizada pelo Ministério da Saúde, quadro que se agrava com a aceleração inflacionária e a expansão da demanda pela população em tempos de desemprego e crise como a atual.

 

A pergunta que nos angustia é como será resguardado o direito à saúde em todo o território nacional; se, em 2014 e 2015, o piso federal em saúde correspondeu, respectivamente, a 14,3% e 14,8% da RCL e o orçamento do SUS já não havia sido suficiente para cumprir todas as necessidades da população em cada qual desses exercícios? Não é demasiado lembrar que, em 2016, serão 10 bilhões de reais a menos diante de uma inflação superior a 15% no biênio…

 

Nosso temor, para além dos jogos olímpicos e da epidemia de zika, é de que os recorrentes atrasos de repasses de recursos do Ministério da Saúde para os estados e municípios se agravem, a judicialização de demandas no setor se intensifique e o cidadão sofra, a cada dia e de forma cada vez mais trágica, a precarização dos serviços e ações públicos prestados no âmbito do SUS.

Para evitar esse colapso, a PEC 01-A/2015 busca majorar, por meio de escalonamento temporal, os percentuais federais de aplicação mínima em saúde de modo que venham a ser equivalentes à proposta cívica do PLC 321/2013. Ou seja, caso ela venha a ser aprovada, passaríamos a ter alíquotas progressivas para os próximos 6 anos, de modo que a União deveria aplicar 15% da sua receita corrente líquida em 2017, 16% em 2018, 17% em 2019, 18% em 2020, 18,7% em 2021 e 19,4% em 2022, sendo que este último percentual se tornaria referência mínima de aplicação para os anos subsequentes.

 

Todavia, enquanto a PEC 01-A/2015 não é aprovada, vemos a redução real do patamar histórico de serviços no âmbito do SUS, na medida em que sua estrutura constitucional de financiamento dada pela Emenda 86 lhe impôs seu encolhimento. Ora, a Constituição de 1988 veda retrocesso no estágio de proteção conquistado para os direitos fundamentais e a saúde de cada cidadão brasileiro não pode literalmente definhar por falta de adequado custeio da correspondente política pública. Para conter essa inconstitucional redução de custeio, é que defendemos a imperativa mudança de regra do art. 2º da Emenda 86 pelo Congresso Nacional por meio da aprovação da PEC 01-A/2015, bem como sustentamos ser necessária a derrubada do veto presidencial ao parágrafo 8º do artigo 38 da Lei de Diretrizes Orçamentárias, dispositivo que justamente proibia a existência de qualquer retrocesso.

 

Nada há de mais prioritário na alocação dos recursos públicos que a preservação da vida em toda a sua dignidade e, por conseguinte, para a promoção e a recuperação da saúde dos cidadãos brasileiros. É somente nesta perspectiva que deve ser inserida a agenda de debates que trata da redução dos gastos tributários (renúncia de receita) e de novas fontes de receita vinculadas ao financiamento dos direitos sociais, entre os quais o de saúde, que é considerado como de relevância pública. Não podemos admitir o encolhimento orçamentário do SUS que ameaça ocorrer na esfera federal e, por isso, aqui avisamos que tratar o direito à saúde como “pauta bomba” neste momento é lançar sobre a sociedade um artefato financeiro explosivo que pode vir a tolher a vida de qualquer um de nós. Deixar definhar um Sistema Universal e Único de Saúde como o nosso é, de fato, a única bomba que seriamente não estamos a debater.

 

* Os autores são respectivamente: Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela UFMG do Ministério Público de Contas; e Mestre em Economia Política pela PUC-SP, Professor e Consultor nas áreas de finanças públicas e de orçamento e financiamento do SUS.