Uma agenda prioritária para a saúde e para o Brasil

Carlos Ocké-Reis*

 

Marcado pelo acirramento da luta de classes, o debate sobre política social, desenvolvimento e cidadania é central na atual conjuntura histórica, seja no Brasil ou na América Latina.

Em sentido socialista, o mundo do trabalho está desorganizado e desmobilizado aqui, sem teoria e estratégia para resistir e superar o avanço do conservadorismo no estado e na sociedade.

Esse é um momento vital para construir a unidade das forças populares, democráticas e socialistas; uma frente progressista, decisiva para os destinos deste País, que barre o autoritarismo e o fascismo instaurados na raiz oposicionista.

Nesse debate, a questão da carga tributária é protagonista e não pode ser menosprezada. Segundo Marx, ela é a mais velha forma de luta de classes. É preciso mudar sua composição e desonerar as classes populares e médias, penalizadas por uma carga que incide sobre o trabalho e sobre a produção à medida que não tributa a alta renda e o patrimônio.

Devemos criar condições políticas que viabilizem essa mudança, inclusive como engrenagem para a retomada do crescimento econômico brasileiro, uma vez que a não tributação do patrimônio e da alta renda favorece a financeirização. Esse é um meio concreto para fortalecer o padrão de financiamento público dos direitos sociais.

No contexto da crise econômica internacional, assiste-se a um duro ataque ao estado democrático de direito e aos direitos sociais – que exige a definição de um programa mínimo em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), da democracia, da soberania nacional e do socialismo.

Desse ponto de vista, o Partido dos Trabalhadores (PT) cometeu um grave equívoco: no exercício da sua hegemonia no estado, sua direção bloqueou o diálogo do bloco histórico progressista acerca da oportunidade de constituição de certo capitalismo de estado que superasse, em sentido positivo, a herança cepalina, keynesiana e schumpeteriana.

Apesar das janelas de oportunidade, isso inviabilizou a adoção de um programa reformista mediante o controle do câmbio e das finanças; do fortalecimento do investimento público; da universalização das políticas sociais; da reforma tributária, política, agrária e dos meios de comunicação; e, por fim, da mobilização da classe trabalhadora e das classes médias em favor de profundas transformações na estrutura social brasileira.

Em particular, a universalização das políticas sociais deveria ser vista como ponto de apoio fundamental para abertura de um novo ciclo de desenvolvimento que promoveria o crescimento econômico e radicalizaria a luta pela redução das desigualdades sociais e regionais. Para tanto, o debate teórico e estratégico (no partido e no estado) deveria residir, também, na rica experiência dos acertos e erros do movimento socialista internacional.

Caso houvesse políticas sociais universais consolidadas, por exemplo, os efeitos da recessão em curso seriam mitigados – especialmente na política de saúde, que desconcentra renda e favorece o aumento da produtividade do trabalho, a criação de empregos e a redução da inflação. Ou seja, seria uma linha de ação estratégica para amenizar os efeitos da crise, permitindo ao governo Dilma – apesar do recuo na economia – não se afastar da base social que a elegeu em 2014.

Entretanto, paralisou-se nos marcos de um projeto reformista fraco, como atesta André Singer, que foi “revolucionário” ao enfrentar a questão da pauperização, no entanto, não mexeu nos esquemas de poder e nos circuitos da produção da riqueza. A isso, agrega-se um aspecto específico apontado pela professora Lena Lavinas sobre o setor da saúde nos governos petistas: a valoração positiva do consumo de planos privados de saúde.

Gostaria de fazer uma inflexão, contudo. Não há dúvidas quanto à importância da agenda que gira em torno do financiamento. Boa parte dos problemas de gestão do SUS decorre dele, particularmente no que se refere aos recursos humanos. Porém, há outra agenda igualmente importante que gera dissenso entre nós: a da regulação do mercado de serviços de saúde.

Alguns analistas de políticas de saúde colocam que a expansão do SUS teria o potencial de trazer a clientela da medicina privada para o setor público de maneira quase natural. A meu ver, esse movimento deve ser combinado com a regulação substantiva do mercado da saúde suplementar: a partir do nexo do seguro social, por exemplo, devemos ampliar o escopo regulatório dos planos empresariais de saúde, visando a redução do gasto das famílias, das classes médias e dos empregadores com bens de serviços privados de saúde.

Esse eixo parece-me bastante oportuno para unificar a luta de setores médios e populares, sob risco do parasitismo do mercado sobre o SUS, fortalecer, ainda mais, sua hegemonia sobre a organização do sistema público de saúde.

Espero que construamos essa dupla agenda: a de fortalecimento do SUS com melhora do financiamento, da gestão e do controle social, mas também a de regulação substantiva do mercado, em particular dos planos de saúde – tendo como eixo norteador a universalidade, de um lado, e a redução dos gastos das famílias, dos trabalhadores e dos empregadores com bens e serviços privados de saúde, de outro.

Vale dizer que defendo a aprovação da CPMF da saúde para destinação aos estados e municípios da federação. O welfare state brasileiro continua pressuposto na Constituição Federal de 1988, por isso é fundamental lutar pela vivificação do artigo 196: saúde não rima com lucro, é um direito social!
* – Economista do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea).