Entrevista com José Gomes Temporão

José Gomes Temporão é o entrevistado do mês de junho do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). Temporão é diretor executivo do Instituto Sul¬americano de Governo em Saúde (ISAGS) até 25 de julho de 2016, foi ministro da Saúde de 2007 a 2010 e diretor do Instituto Nacional de Câncer (INCA) entre 2003 e 2005. Na entrevista, o sanitarista fala sobre a falta de percepção da população brasileira sobre a importância de um sistema público de saúde universal e o desafio político que isso representa para o movimento da Reforma Sanitária, bem como a potencialidade das redes sociais nesta luta política – “nós podemos ser muitos, mais do que éramos há 40 anos atrás”. Entre os temas abordados estão ainda os problemas causados pela hiperespecialização dos profissionais de saúde e a fragmentação do cuidado, a relevância de colocar os serviços em rede, e o potencial do Programa Saúde da Família (PSF) como instrumento de racionalização do próprio setor privado.

Para o ex-titular da Saúde, que se envolveu numa série de polêmicas no período em que esteve à frente da pasta – “arrumaria mais polêmicas porque elas abrem caminhos”, o papel do ministro da Saúde de um país como o Brasil é “centralmente político-pedagógico”. Apesar de se declarar um otimista, Temporão demonstrou preocupação com propostas que podem agravar o processo de fragilização do SUS: “É um momento muito delicado e eu acho que as entidades que defendem a saúde pública precisam estar atentas e mobilizadas para enfrentar os tempos que virão”.

 

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Em entrevistas anteriores você já afirmou que há uma questão política e ideológica que leva ao desgaste da imagem do SUS. Você acha que a população brasileira não tem um sentimento de pertencimento ao SUS? É isso que leva ao desgaste?

José Gomes Temporão: Talvez esse seja um dos temas mais importantes e angustiantes porque está no campo do processo de construção de uma consciência política, no campo das ideologias, no campo essencialmente político-cultural. É preciso tentar entender e analisar como é que a população percebe e vê a saúde na sua vida, no seu dia a dia. Existem várias maneiras de apreender isso, uma muito comumente utilizada no Brasil são as pesquisas de opinião feitas pelos institutos como o Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística] e Datafolha. Quando você analisa essas fontes percebe que o grau de avaliação negativa é muito alto. Mas quando você olha para outros tipos de pesquisa mais estruturadas e complexas, como a PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios] do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], onde o entrevistador pode sentar com o entrevistado e aprofundar a entrevista, aparece um retrato bastante diferente da qualidade dessa percepção. De um lado temos a abordagem jornalística com avaliações superficiais e avaliações bastante negativas (basta ver as últimas pesquisas Ibope), hoje acho que está em 85% – baseada em entrevistas muito rápidas, onde a resposta está muito contaminada pela própria circulação das notícias, negativas normalmente, na sociedade, porque aí está expresso o padrão da grande mídia sempre muito crítico. De outro lado, temos a própria experiência pessoal ou familiar de contatos reiterados com os serviços de saúde, usualmente atendimentos de urgência e emergência onde aparecem as questões mais agudas – “ah, minha tia foi na UPA, ficou 4h esperando…”. Na entrevista mais curta, menos profunda, essas percepções superficiais afloram com mais rapidez e tem maior presença do que reflexões mais profundas – “mas, pensando bem, realmente eu tive um tio que fez um transplante, ele está muito bem” / “Ah, mas você fez o transplante onde?” / “Ah, foi no SUS”.

Mas a tua pergunta toca em um ponto mais complexo e estrutural quando se compara a sociedade brasileira com as sociedades mais avançadas que têm sistemas universais. Aí sim é possível afirmar que a sociedade brasileira não tem uma percepção clara do que significa, para a sociedade em termos coletivos, de redução de desigualdades, de garantias e de qualidade de vida, o papel do sistema público universal financiado com recursos públicos. Talvez o grande desafio da Reforma Sanitária brasileira hoje não esteja nem no financiamento, nem na organização dos serviços, nem no modelo assistencial. É um desafio essencialmente político e se coloca nesse nível.

 

OAPS: E você acha que esse sentimento de não pertencimento é percebido também entre os trabalhadores de saúde? Falta no SUS uma política de pessoal?

José Gomes Temporão: Sim. Aprofundando um pouco a nossa conversa, existem alguns paradoxos e contradições nesse processo, o principal deles eu diria que é o fato de que a vanguarda dos trabalhadores, usando o conceito da esquerda mais tradicional, marxista, que são os sindicatos dos trabalhadores, historicamente na retórica sempre apoiaram o SUS e a reforma sanitária, mas na prática, na verdade, sempre fizeram acordos coletivos de trabalho onde a exigência por um seguro privado esteve sempre na mesa de negociações. Isso é uma contradição e, eu diria, uma das fragilidades da reforma sanitária brasileira. O SUS está na retórica da CUT [Central Única dos Trabalhadores], da CGT [Comando Geral dos Trabalhadores], de todas essas entidades… mas na prática, na hora de usar – “qual sistema eu vou usar? Ah, eu quero para mim e para minha família um plano de saúde”. E essas contradições estão presentes em nossas redes, dos próprios trabalhadores da saúde. Eu sou funcionário da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e nós temos um plano nosso, autônomo, coletivo, da própria Fiocruz. Os próprios construtores da reforma sanitária e os defensores do SUS, na prática, usam e se organizam para ter essa assistência diferenciada, o que é uma coisa um pouco esquizofrênica, eu diria.

Isso está presente também na medida em que os funcionários públicos dos três poderes – do Judiciário, do Legislativo e do Executivo – têm seguro de saúde privado e, o mais paradoxal, é que parte dessa assistência é financiada com recursos do orçamento da União. Quer dizer, recursos de toda a sociedade brasileira, o que é absolutamente incompatível com os conceitos que nós defendemos. Traduzindo isso em coisas práticas, é razoável supor que cada cidadão tenha a liberdade para escolher se quiser ter o seguro privado, mas não é razoável que ele sendo funcionário público parte do custo desse plano de saúde seja custeado pela população brasileira. Esse é o primeiro ponto.

O segundo ponto tem a ver com o conjunto de subsídios e renúncias fiscais que hoje é concedido aos planos e seguros saúde, que implica anualmente algo em torno de R$25 bilhões, segundo estudo recente do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. São recursos que deveriam, em tese, entrar no orçamento do SUS e não entram porque o Estado abre mão de recolher esse montante de recursos para subsidiar, na prática, estimular o mercado privado. Esse conjunto de fatos expressa uma contradição que se liga a nossa reflexão anterior, dentro desse contexto mais amplo, de como é que se dá o processo de construção de ver a saúde como um bem público em um país tão diferenciado, tão desigual como o Brasil; por que é importante defender um sistema universal, por que esse sistema de saúde tem que ser financiado com recursos de todos, nessa perspectiva da solidariedade coletiva. Esse é mais um fator que complexifica, digamos assim, o quadro na medida em que os próprios trabalhadores que constroem cotidianamente o SUS usam o setor privado.

 
OAPS: Isso acaba favorecendo uma imagem – e a mídia também tem um papel fundamental nisso – de um “SUS para os pobres”?

José Gomes Temporão: Ah sim, são as sutilezas do discurso hegemônico. Volta e meia você vê o editorial de um grande jornal dizendo que “nós temos que defender o SUS, ele tem que ser aperfeiçoado, tem um monte de problemas etc etc”, em seguida vem: “vírgula, principalmente ou basicamente porque o SUS é um sistema muito importante para os pobres”. E nós não propusemos a Reforma Sanitária nem colocamos na Constituição o capítulo Saúde – “saúde é direito de todos e dever do Estado” – pensando em um sistema para os pobres. Na verdade, pensamos em um sistema para todos. Tanto que nós lutamos a vida inteira contra políticas focalizadas, fragmentadas e programas verticais. Pelo contrário, lutamos pela horizontalização, linhas de cuidado, integralidade, democratização, participação. Eu diria que esse é um ponto bastante importante e significativo desse debate.

 

OAPS: No evento “Diálogos Capitais: Saúde, os desafios da saúde no Brasil do século XXI”, promovido por Carta Capital, você afirmou que é importante que se fortaleça a ideia de que saúde de qualidade é cara. Há um reconhecimento geral de que a saúde pública é subfinanciada no Brasil, mas, por outro lado, propostas que envolvem aumento de impostos, mesmo para financiar a saúde, não costumam ser bem recebidas por grande parte da população. Há saída para este impasse em torno do clássico problema do financiamento?

José Gomes Temporão: A questão do financiamento não está nem no campo da macroeconomia, nem no campo da legislação tributária, ela está no campo da política. Se você analisar por que o SUS já nasce subfinanciado, por que nunca se conseguiu regulamentar a Emenda 29 e, quando se conseguiu regulamentar, a União não aumentou sua participação no financiamento, e por que agora existe uma PEC que tira recursos do sistema de saúde, aí voltamos à primeira pergunta. É porque na verdade não se conseguiu ainda construir hegemonia no sentido de que a sociedade como um todo exija mais recursos para a saúde e, de maneira coletiva, construa alternativas. Nós sabemos quais são as alternativas: temos que ter uma estrutura tributária menos regressiva, temos que ter taxação sobre grandes fortunas, temos que repensar toda essa estrutura fiscal, temos que repensar os gastos da União com pagamento dos juros e do principal da dívida interna. Quando você olha o conjunto de recursos que a sociedade brasileira recolhe através de impostos, fruto do trabalho de todos os brasileiros, quando você vê para onde são direcionados esses gastos, vê que a saúde recebe apenas 5% desses recursos, educação outros 5% e grande parte vai para o pagamento da dívida interna. Quanto mais a política econômica aumenta os juros, mais aumenta o serviço e o custo da dívida interna. Existe uma grande preocupação nessa situação de impedimento da presidenta Dilma, se vão surgir ideias exóticas em relação, por exemplo, à desvinculação dos recursos da saúde e educação. O risco de eventualmente alguém propor o início de co-pagamento, ou seja, de você pagar por alguns procedimentos como fator de limitação de demanda, de acesso, entre outras coisas. Se isso acontecer vai aprofundar desigualdades, vai agravar o processo de fragilização do Sistema Único de Saúde.

Essa questão do financiamento expressa o conjunto das contradições e o conjunto da ideologia que domina as contas públicas, a grande economia, e que dirige o país. Ela não é exatamente um problema para os economistas nem para os tributaristas, é um problema de nós todos, de todos os cidadãos: para onde está indo o fruto do meu trabalho, os impostos que estou pagando como cidadão? Isso está sendo colocado onde, em uma rede de escolas públicas? Agora eu me lembro do Anísio Teixeira: “o motor que constrói a democracia é a escola pública, gratuita e universal”. Nós estamos caminhando por aí? Eu não estou vendo. Estamos caminhando para uma privatização da educação e, no caso da saúde, o que se vê… Eu não sou pessimista, eu valorizo muito os gigantescos avanços que tivemos no SUS, eu não me alio aos pessimistas de plantão, às hienas de plantão, como diria Nelson Rodrigues, porque nós avançamos muito. Mas nós estamos em um momento muito complexo em que pode haver uma fragilização da base que dá sustentabilidade ao sistema, o que seria dramático, ainda mais em uma conjuntura de recessão, de desemprego, de piora das condições de vida. Nós sabemos que o impacto disso sobre a saúde das pessoas é muito maior e vai aumentar a demanda sobre os serviços de saúde. O desemprego tira gente que tinha plano e joga no SUS. É um momento muito delicado e eu acho que as entidades que defendem a saúde pública precisam estar atentas e mobilizadas para enfrentar os tempos que virão.

 

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