STF reconhece o “direito a ter o custeio adequado de direitos” na ADI 5.595

Élida Graziane Pinto | No Consultor Jurídico 

 

Parafraseando Beto Guedes, quando entrou setembro, a boa nova andou nos campos do financiamento dos direitos fundamentais. Isso porque a concessão da medida cautelar na ADI 5.595 pelo ministro Ricardo Lewandowski, no dia 31 de agosto, trouxe sopro de esperança, a operar como um farol interpretativo que tem sinalizado tons irradiantes de luz para o controle jurídico do ciclo orçamentário.

 

Em tempos de iminente congelamento dos pisos de custeio da saúde e da educação, na forma do artigo 110, inciso II do ADCT, inserido pela Emenda 95/2016, é alvissareira essa decisão do Supremo. Nela lemos que “a ocorrência de reforma constitucional que vise ao aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais é medida desejável de atualização dos fins e preceitos da CF, mas alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção por eles alcançado não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros.”

 

A aludida decisão considerou que “as alterações empreendidas pelos artigos 2º e 3º da EC 86/2015 no financiamento mínimo do direito à saúde inegavelmente constrangem a estabilidade jurídica e o caráter progressivo do custeio federal das ações e serviços públicos de saúde.”

 

Para que tenhamos em mente a absoluta atualidade e a ordem de grandeza do conflito em comento, vale lembrar que o déficit de aplicação em saúde da União em 2016 deve ser compensado no exercício imediatamente subsequente ao da sua constatação, por força do artigo 25 da Lei Complementar 141/2012. Significa dizer que, em 2017, deve haver a compensação do quanto o governo federal deixou de aplicar nas ações e serviços públicos de saúde em 2016, por causa dos aludidos artigos 2º e 3º da Emenda 86. Some-se a isso os nada desprezíveis efeitos prospectivos da cautelar na ADI 5.595, já que, por força do regime trazido pela Emenda do Teto Fiscal, o novo piso da União em saúde, a partir de 2018 e até 2036, deverá corrigir pela inflação o quanto for gasto em saúde no corrente ano de 2017, incluído aqui o montante da necessária compensação em tela.

 

Para quem, de forma um tanto míope ou até apressada e enviesadamente, sustenta que a cautelar da ADI 5.595 não poderia alcançar o artigo 2º da Emenda 86/2015, porque ele fora revogado pelo artigo 3º da Emenda 95/2016, devemos considerar que tal decisão se ampara no artigo 11, parágrafo 1º da Lei 9.868/1999, vez que – motivadamente – impôs a suspensão da eficácia – com efeitos retroativos – dos dispositivos questionados da Emenda 86.

 

A eficácia ex tunc da cautelar especificamente no que se refere ao revogado artigo 2º da Emenda 86 se projeta muito além do ano de 2016, pois a daí decorrente medida compensatória em 2017 incorporará a base de cálculo do piso federal em saúde para os próximos 19 anos, de modo a evitar o congelamento do déficit verificado, o que agravaria ainda mais a regressividade histórica da participação da União no custeio federativo do SUS.

 

Ora, o ministro Ricardo Lewandowski reconhece, na fundamentação da sua decisão[1], a repercussão orçamentária da suspensão da eficácia, com efeitos retroativos, do subpiso de 13,2% da receita corrente líquida para o gasto mínimo federal em saúde, nele indevidamente incluídos os recursos oriundos do regime do pré-sal, não só para o exercício de 2016, mas também para 2017 e para os próximos 19 exercícios financeiros:

 

Mas qual é o montante estimado do déficit, cuja imediata compensação a ADI 5.595 permite seja exigida? Considerando que a receita corrente líquida da União em 2016 teria sido de R$722,5 bilhões[2], deveria, em tese, ter sido aplicado cerca de R$108,4 bilhões no ano passado, para cumprir o piso federal em saúde de 15% previsto no artigo 198, parágrafo 2º, inciso I da Constituição, com a redação que lhe foi dada pelo artigo 1º da Emenda 86.

 

Suspensa retroativamente a eficácia da aplicação do subpiso de 13,2% da RCL, deixa de ser constitucionalmente adequado o patamar verificado do gasto mínimo em saúde da União de cerca de R$106,2 bilhões em 2016. Cabe, portanto, revisitar a análise tanto do relatório resumido de execução orçamentária relativo ao 6º bimestre do ano passado, quanto do exame das contas anuais do Governo da República empreendido pelo Tribunal de Contas da União, para que o montante preciso da medida compensatória a que se refere o artigo 25 da LC 141 seja o quanto antes definido e passe a incorporar o patamar que, a partir de 2018, será corrigido pela inflação ao longo das próximas duas décadas.

 

O número correto do volume de compensação ainda depende da verificação da consistência da revisão metodológica empreendida recentemente na receita corrente líquida federal de 2016 (se a RCL foi R$722,5 haveria um déficit de cerca de R$2,1 bilhões ou, se se confirmar R$709,9 bilhões, haveria um déficit de cerca de R$250 milhões no piso em saúde). Por outro lado, para que se feche o quantum total da compensação devida, também é igualmente necessária a resolução pelo TCU das divergências apontadas pelo Ministério Público de Contas que ali oficia[3] e pelo Conselho Nacional de Saúde[4] sobre restos a pagar cancelados e não compensados (R$439 milhões), bem como sobre o cômputo indevido – porquanto em afronta ao Acórdão TCU-Plenário 31/2017 – de despesas com a capitalização da Hemobras e com o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF), cujo montante alcança a casa de R$559 milhões, ao longo do exercício de 2016.

 

Na conta mais ousada, a fatura do dever de compensar o gasto mínimo federal em saúde em 2017 sobre o que a União deixou de aplicar no ano passado pode superar a casa dos R$3 bilhões. Na conta mais tímida, a decisão cautelar na ADI 5.595 pode repercutir algo em torno de R$1,2 bilhão para o custeio da saúde pública brasileira, já que o TCU, diante de um déficit já consumado no piso federal em saúde de, no mínimo, R$250 milhões, não vai poder relevar como irregularidades formais os expressivos saldos de restos a pagar cancelados e não compensados e de despesas incluídas indevidamente no piso (cuja soma alcança R$992 milhões). Ora, em face da ADI 5.595, não há como o TCU se furtar ao dever de rever seu entendimento de que o piso de 13,2% da RCL teria sido válido e que, em 2016, teria havido, por isso, um “excedente” de aplicação em saúde de R$10,9 bilhões.

 

Indo além do exame dos números, a medida cautelar concedida na ADI 5.595 nos lembra, do ponto de vista hermenêutico, que o orçamento público não pode se eximir da sua finalidade primordial de custear os direitos fundamentais. Eis um precedente que nos chega em boa hora tanto em face da Emenda 95, quanto em relação à crise nos serviços essenciais que indicam uma rota de falência da razão de ser do Estado brasileiro.

 

O conflito distributivo no orçamento se revela quando vemos um teto fiscal incidente apenas sobre as despesas primárias, sem qualquer controle sobre as despesas financeiras (haja vista a falta de limites para a dívida consolidada e mobiliária da União), bem como sem balizas e controle sobre a gestão das receitas e, em especial, sobre as renúncias fiscais[5].

 

A ADI 5.595 reconhece a existência da dimensão objetiva do direito à saúde de ter seu custeio fixado em bases suficientes e, na medida do fiscalmente possível, progressivas. Desse modo, o dever de gasto mínimo em saúde se configura como verdadeira garantia de tutela do próprio direito fundamental.

 

Na jurisprudência do Supremo Tribunal, caso análogo de compreensão integradora sobre as garantias fundamentais erigidas constitucionalmente pode ser extraído do direito à assistência judiciária de que trata o artigo 5º, LXXIV, cuja materialização reclamava a necessária autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública, na forma do artigo 134. A esse respeito foi reconhecido o “direito a ter direitos” por meio da estruturação hígida da Defensoria Pública, relevante instituição de defesa dos cidadãos em situação de vulnerabilidade social e econômica:

 

“Assiste a toda e qualquer pessoa especialmente àquelas que nada têm e que de tudo necessitam uma prerrogativa básica essencial à viabilização dos demais direitos e liberdades fundamentais, consistente no reconhecimento de que toda pessoa tem direito a ter direitos, o que põe em evidência a significativa importância jurídico-institucional e político-social da Defensoria Pública.

 

[…] É que de nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam, além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares, também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, artigo 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no artigo 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no artigo 134, ambos da Constituição da República.” (Embargos de Declaração no Agravo de Instrumento 598212/PR, Relator: min. Celso de Mello. grifei.)

 

No pertinente paralelo com o “direito a ter direitos”, cuja garantia se materializa no pleno funcionamento da Defensoria Pública, é que se pode erigir a estrutura constitucional dos pisos de custeio da saúde e da educação como o “direito a ter o custeio suficiente de direitos”. Ou seja, as vinculações orçamentárias dos artigos 198 e 212 são garantias fundamentais que asseguram instrumentalmente a eficácia nuclear dos aludidos direitos sociais, que, por seu turno, expressam conteúdo impostergável e incomprimível do postulado da dignidade da pessoa humana.

 

Em favor dos cidadãos em situação de vulnerabilidade social e econômica, o Supremo Tribunal assentou o “direito a ter direitos”, associando fortemente o direito fundamental do artigo 5º, LXXIV ao arranjo institucional do artigo 134, ambos da Constituição de 1988. Para que houvesse direito à assistência judiciária, era preciso instrumentalmente assegurar o pleno funcionamento da Defensoria Pública.

 

Do mesmo modo, os direitos à saúde e à educação, que reclamam prestações positivas do Estado e, por isso, estão sujeitos à vulnerabilidade fiscal das suas correspondentes políticas públicas e ao risco de descontinuidade do serviço público, devem ser amparados pela organização estrutural e pelo dever de gasto mínimo como um verdadeiro “direito a ter o custeio progressivo e suficiente de direitos” (artigos 198 e 212).

 

O desafio presente para a eficácia dos direitos sociais e, em especial, dos direitos à saúde e à educação – de “indiscutível primazia constitucional”, como bem assentado pelo ministro Celso de Mello (ARE 727.864/PR) – reside precisamente em assegurar custeio juridicamente estável e fiscalmente progressivo, diante da alegação de reserva do possível e das severas constrições orçamentário-financeiras pelas quais o país tem passado.

 

Tamanha é a estatura constitucional dos direitos sociais à saúde e à educação, bem como a garantia das suas eficácia imediata e consecução progressiva, nos moldes do artigo 5º, §§ 1º e 2º e do artigo 6º da CR/88, que, contra eles, não se admite a discricionária alegação da cláusula de “reserva do possível”. Para tal norte aponta a jurisprudência do próprio STF:

 

Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças […]. O Estado – União, Estados propriamente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios – deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa. (RE 431.773/SP, Relator Ministro Marco Aurélio. grifei).

 

A Administração não pode invocar a cláusula da ‘reserva do possível’ a fim de justificar a frustração de direitos previstos na Constituição da República, voltados à garantia da dignidade da pessoa humana, sob o fundamento de insuficiência orçamentária. (AI 674.764-AgR/PI, Relator Ministro Dias Toffoli. grifei)

 

A essa já sólida linha jurisprudencial do STF em favor dos direitos fundamentais, agora se soma a cautelar na ADI 5.595, cujo referendo no plenário todos nós almejamos e pelo qual devemos lutar.

 

A confirmação definitiva de tal precedente reacenderá um importante farol interpretativo, até mesmo para podermos perseverar na ADI 5.658 que questiona a incidência do teto fiscal sobre os pisos de custeio da saúde e da educação.

 

O iminente aniversário de 29 anos da Constituição de 1988 reclama de nós coragem para continuarmos seu pacto civilizatório, para prosseguirmos em seu compromisso inalienável com a dignidade da pessoa humana, porque, antes de tudo nela, vem o homem e seus direitos fundamentais.

 

Como bem lembrava Beto Guedes, com a chegada de setembro, “não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera”. Na ADI 5.595, todos podemos antever os sinais dessa alvorada…

 

Referências:

 

[1] Especialmente no seguinte trecho: “Muito embora o art. 3º da Emenda 95/2016 tenha revogado o art. 2º da Emenda 86/2015, o percentual aplicado pela União em ações e serviços públicos de saúde foi inferior a 15% da sua receita corrente líquida em 2016. Trata-se de constatação inequívoca, haja vista o fato de que o Governo federal invocou a incidência do art. 2º, I da EC 86/2015, a pretexto da validade do subpiso de 13,2% para o exercício financeiro em comento.

Como se vê, persiste, indubitavelmente, controvérsia a merecer julgamento de mérito por este Tribunal, além do fato de que segue vigente o art. 3º da EC 86/2015.

Esse entendimento de que não cabe a arguição de perda de objeto nos presentes autos é corroborado pela oficial constatação do Conselho Nacional de Saúde de que houve déficit federal de aplicação em saúde em 2016 em face do patamar fixado no art. 198, § 2º, I, da Constituição.

[…] Além disso, a existência de periculum in mora em caso de falta de apreciação urgente pelo Supremo Tribunal Federal do pedido de cautelar também reside na repercussão do quanto for efetivamente pago pela União nas ações e serviços públicos de saúde em 2017, para fins de fixação do piso constitucional que passará a vigorar em 2018, bem como ao longo dos próximos 19 anos, na forma do art. 110, II do ADCT, inserido pela EC 95/2016.”

 

[2] Aqui nos embasamos na informação disponibilizada pela Secretaria do Tesouro Nacional no âmbito do relatório resumido de execução orçamentária – RREO do 6º bimestre de 2016 (que, à luz dos artigos 34 e 35 da LC 141/2012, é fonte oficial de comprovação do quanto aplicado em saúde. Ver Anexo 12 do RREO, disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/352657/RREOdez2016.pdf). Em igual medida, tomamos como referência os números já avaliados oficialmente pelo TCU, no âmbito da sua competência a que se refere o art. 71, I da Constituição de 1988 (conforme fls. 213/214 do relatório do parecer prévio constante do endereço https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/contas-do-governo-da-republica-exercicio-de-2016.htm). Não desconhecemos, contudo, a existência de controvérsia sobre a aludida base de cálculo, pois houve requantificação metodológica da RCL de 2016, em junho de 2017, para cerca de R$709 bilhões.

 

[3] Representação protocolada pelo Procurador Júlio Marcelo de Oliveira no nos autos do seu TC 011.936/2017-7, em rota de adesão institucional à representação cívica oferecida por esta articulista conjuntamente com o economista Francisco Funcia.

 

[4] Conforme sua decisão de rejeição do Relatório Anual de Gestão do Ministério da Saúde de 2016, consubstanciado na sua Resolução 551/2017, disponível em http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2017/Reso551.pdf .

 

[5] É assustadora, por exemplo, a notícia de que as renúncias de receitas superam largamente os gastos com saúde e educação: http://g1.globo.com/economia/noticia/renuncia-fiscal-soma-r-400-bi-em-2017-e-supera-gastos-com-saude-e-educacao.ghtml