A Guerra Fria e a construção do anticomunismo, partes da estratégia central do poder dos EUA

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues[1]

 

Durante a II Guerra Mundial, houve uma aliança entre os EUA, a Inglaterra, a França e a União Soviética (URSS), logo após o fim da guerra, entretanto, os Estados Unidos deram início à Guerra Fria contra a União Soviética, perseguida de forma incansável até o fim daquele país, em dezembro de 1991. O que teria levado à mudança de direção da política externa dos EUA? Quais eram os objetivos daquele país com a mesma? Quais foram as principais formas de operação da política da Guerra Fria? Quais os principais resultados da mesma? Este artigo procura responder a essas perguntas, as quais estão no cerne da derrota do socialismo no leste europeu, do forte sentimento anticomunista que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XX e contribuiu para a atual dispersão no seio da esquerda mundial.

 

Porque os EUA mudaram sua política em relação à URSS no pós-guerra

 

As razões para a mudança na política externa dos EUA, que o levaram de aliado da URSS na II Guerra Mundial para a política de Guerra Fria, estão ligadas à situação internacional criada pelo papel central da URSS na vitória contra o nazismo, o surgimento de diversos países socialistas no leste europeu e do grande prestígio que gozavam tanto a URSS, quanto seu principal dirigente e comandante do Exército Vermelho durante a guerra, Josef Stalin. De fato, a URSS, único país socialista existente até o final da guerra, arcara com a maior parte do esforço de guerra, enfrentou durante a maior parte do tempo sozinha as forças nazistas, virou a guerra na histórica batalha de Stalingrado (agosto de 1942 a fevereiro de 1943), liberou diversos países da Europa do leste e tomou Berlim, destruindo o III Reich nazista. Tais fatos são reconhecidos, inclusive pelo ex-diretor do Centro de Estudos de Exércitos Estrangeiros e pelo Coronel David M. Glantz, do Exército norte-americano, e pelo tenente-coronel Jonathan M. House, ex-integrante do Estado-Maior do mesmo exército, no livro “Confronto de Titãs: Como o Exército Vermelho Deteve Hitler” (São Paulo: C&R Editorial, 2009).

 

A URSS saiu da II Guerra, com a maior força militar do mundo e o reconhecimento de ter sido o principal esteio da vitória contra o horror nazista. A URSS e Stálin gozavam de imenso prestígio na sociedade, em geral, entre os trabalhadores e a intelectualidade era enorme, mesmo nos países capitalistas.se manifestou nas primeiras eleições do pós-guerra, quando os partidos comunistas europeus tiveram grandes votações em diversos países, como a França, Itália e Tchecoslováquia. Em outros países, forças socialdemocratas venceram eleições com programas de mudança radicais, como o Partido Trabalhista britânico, que derrotou o conservador Winston Churchill e deu início à estatização do transporte público, da produção e distribuição de energia, a implantação do sistema público de saúde universal e gratuito e de um grande projeto de moradia popular. O pós-guerra também deu início ao crescimento do movimento anticolonial e anti-imperialista, levando à independência de diversos países africanos e asiáticos, principalmente os dois grandes colossos do oriente, a Índia, que se livrou do colonialismo britânico em 1947, e a China, onde os comunistas tomaram o poder em 1949, derrotando as forças conservadoras do Kuomitang.Com a exceção dos EUA e o Canadá, cujos territórios não foram afetados pela guerra, os principais países capitalistas estavam semidestruídos pela mesma. O sistema capitalista estava enfraquecido, portanto, tanto do ponto de vista material, quanto ideológico, em todo o mundo, o movimento popular levantava as bandeiras do socialismo, do anticolonialismo e de reformas sociais profundas.

 

Os objetivos dos EUA com a Guerra Fria

 

Os ‘falcões’ da política norteamericana perceberam imediatamente que era necessário lançar uma estratégia de grande envergadura para evitar o avanço do campo socialista e popular. Respondendo à segunda pergunta, sobre os objetivos da Guerra Fria, pode-se dizer que essa foi a estratégia para procurar reverter a situação, a qual foi desenvolvida em diversas frentes. A primeira frente assumiu a forma de conflitos reais e nada frios, como as guerras da Coreia e do Vietnã e o combate de forças e líderes anti-imperialistas e progressistas como o Movimento Nacional Congolês, liderado por Patrice Lumumba, ou o movimento da reforma agrária da Guatemala, liderado por Jacobo Arbenz Guzmán. Ambos os movimentos foram combatidos por forças reacionárias apoiadas pelos EUA, Patrice Lumumba acabou assassinado em 1961 e Jacobo Arbenz foi derrubado do governo por um golpe militar e acabou morrendo de forma estranha no exílio. A segunda frente e a mais bem sucedida das duas foi na frente ideológica, assumindo a forma da ‘guerra psicológica’, voltada para a promoção do afastamento da esquerda não comunista da URSS e sua gradual aproximação com o projeto de hegemonia norte-americano.

 

A luta ideológica contra o comunismo consumiu um enorme esforço intelectual e foi regiamente financiada pelo governo norte-americano. Seus principais responsáveis iniciais foram: o próprio presidente norte-americano Harry Truman; Averell Harriman, embaixador norte-americano em Moscou; James F. Byrnes, principal conselheiro de Truman logo após a posse deste e posteriormente seu Secretário de Estado; George Kennan, conselheiro da embaixada americana em Moscou; e o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Pouco após o término da Guerra, em setembro de 1945, Truman anunciou em reunião em seu gabinete o propósito de fazer dos EUA o ‘gendarme e xerife do mundo’. Harriman recomendou, em novembro de 1945, a abertura de frente ideológica e propagandística contra a URSS. George Kennan enviou enorme telegrama, em fevereiro de 1946, assinando-o como ‘Mr. X’, em que denunciava a ‘ameaça totalitária soviética’. Em março do mesmo ano, James Byrne, então secretário de Estado dos EUA, pronunciou duro discurso contra a URSS em Nova Iorque. Quatro dias depois, Churchill discursou no Westminster College, em Fulton, Missouri, no qual lançou a expressão ‘Cortina de Ferro’, que se tornou num dos principais símbolos da Guerra Fria. A partir desses pronunciamentos teve início uma longa e elaborada campanha de desgaste e desmoralização da URSS, de Stalin e do movimento comunista internacional.

 

A ‘guerra psicológica’ como principal arma da Guerra Fria

 

A iniciativa mais elaborada da Guerra Fria foi a ‘guerra psicológica’, definida pelo Conselho de Segurança Nacional dos EUA como: “[…] ‘o uso planejado, por parte de uma nação, da propaganda e de outras atividades diferentes do combate, que transmitam ideias e informações destinadas a influenciar as opiniões, atitudes, emoções e comportamentos de grupos estrangeiros de forma a apoiar a consecução dos objetivos nacionais’. Além disso, o ‘tipo mais eficaz de propaganda’ era definido como aquele em que o ‘sujeito se move na direção que você deseja por razões que acredita serem dele’ (National Security Council Directive – NSC/USA, 10/07/1950) As ações decorrentes foram desenvolvidas principalmente através da Central Intelligence Agency (CIA). O instrumento mais importante da ‘guerra psicológica’ foi o conceito de ‘mentira necessária’, estabelecida pela diretriz NSC-4 do Conselho Nacional de Segurança, de 19/12/1947, que autorizava a CIA (Central Intelligence Agency) a empreender “atividades psicológicas sigilosas”. Em junho de 1948, outra diretriz de Segurança Nacional (NSC-10/2), redigida por Kennan criou o OPC (Office of Policy Coordination), encarregado da ‘guerra psicológica’. Coube à CIA, criada pela Lei de Segurança Nacional de 26/07/1947, desempenhar as atividades centrais da Guerra Fria e da ‘guerra psicológica’.

 

No âmbito da ‘guerra psicológica’ foram organizados diversos Congressos pela Liberdade Cultural (CLC), fartamente financiados pela CIA, foram organizados a partir de 1950, dezenas de revistas científicas e culturais foram organizadas e mantidas pela CIA, usando como fachada entidades como as Fundações Ford e Rockefeller. Tais congressos e revistas visavam influenciar os intelectuais de esquerda não comunistas através do uso indiscriminado da ‘mentira necessária’, que se baseava na ideia do ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, que dizia que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Um exemplo destacado desse instrumento foi o financiamento de livros e filmes que inventavam fatos negativos sobre a história da URSS, como o filme “Colheita do Desespero”, baseado em campanha nazista de 1933, que inventava uma ‘fome genocida’ (conhecida como holomodor) que teria sido promovida por Stalin na Ucrânia, hoje tida como verdade por diversas personalidades importantes. A falsa ‘fome genocida’ foi na verdade causada pela reação dos kulaks (camponeses ricos) às medidas de coletivização do campo, quando queimaram colheitas e mataram milhares de animais, não teve a dimensão inventada pela campanha da CIA e foi prontamente enfrentada pelo governo soviético que enviou mantimentos e tropas para conter a destruição da produção rural, como mostra Ludo Martens, em “Stalin. Um novo olhar” (Rio de Janeiro, Editora Revan, 2003).

 

Um dos livros mais famosos financiados com fundos secretos da ‘guerra psicológica’ foi “As origens do totalitarismo” de Hannah Arendt, que apresenta uma suposta identidade entre as ações de Hitler e de Stalin, omitindo que o primeiro desenvolveu uma política genocida em favor do capitalismo e o segundo foi o principal responsável pela derrota do primeiro e defendia os interesses da maioria da população mundial explorada pelo capitalismo. Hannah Arendt assinou, mais tarde, a “Declaração sobre a CIA”, da Partisan Review, junto com diversos outros intelectuais que denunciou, em 1967, os subsídios secretos daquela Agência a diversas publicações e organizações literárias, considerando-se usados inconscientemente pela mesma, como mostra Frances Saunders no livro “Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura” (Rio de Janeiro: Record, 2008).

 

Os resultados da Guerra Fria

 

Possivelmente entre os resultados mais importantes da Guerra Fria, está a construção do anticomunismo no seio da esquerda em todo o mundo, com base nas ações da ‘guerra psicológica’ travada pela CIA e pelo OPC, desde 1947. O emaranhado de ‘mentiras necessárias’ divulgadas por revistas ‘científicas’ e culturais, filmes e livros regiamente financiados pelo governo norte-americano lograram desenvolver uma imensa e eficaz máquina de propaganda que conseguiu fazer com que muitas pessoas passassem a se mover na direção que a CIA queria, acreditando que as razões eram delas mesmo. O grande prestígio da URSS e de Stalin foram se corroendo desde então, com a providencial ajuda de processos internos, como o famoso “relatório secreto” de Nikita Kruschev ao XX Congresso do PCUS em 1956. O anticomunismo se tornou lugar comum em grande parte da esquerda mundial, para o gáudio dos responsáveis pelo poder norte-americano. Outro resultado importante da ‘guerra psicológica’ foi o desenvolvimento de uma imagem absolutamente negativa de Josef Stalin entre a maior parte da esquerda e da intelectualidade, apesar do legado deixado pelo mesmo tanto no que diz respeito à derrota do nazismo, quanto do inegável grande desenvolvimento econômico, social, cultural e científico da URSS. Pode-se dizer que o núcleo do amplo sentimento anticomunista está erguido e centrado nessa imagem negativa de Stalin.

 

A dispersão do movimento comunista e da esquerda em geral, e o desenvolvimento de movimentos como o pós-modernismo que tem contribuído desde os anos 1960 para acrescentar novas camadas de desinformação e confusão são outros resultados importantes da Guerra Fria, especialmente da ‘guerra psicológica’. Entender essa estratégia desenvolvida pelos EUA e as formas pelas quais foram desenvolvidas certamente constitui uma das tarefas mais importantes para que se possa pouco a pouco restabelecer a verdade sobre a luta dos povos contra a exploração e a opressão e reconstruir bases para a reunificação do movimento popular. Ainda estamos infelizmente longe desse entendimento, mas estou convicto que se trata de uma tarefa inadiável para a derrota do capitalismo e a construção do socialismo.

 

[1] Sociólogo, doutor em Saúde Coletiva e professor da UERJ.