O SUS, as eleições de 2018 e a democratização do Estado: alguns pingos nos ís

Nelson Rodrigues dos Santos

 

Lembremos nós, militantes do SUS, algumas realidades óbvias e outras nem tanto, todas discutíveis, mas que, nestes 30 anos do SUS, nos remetem para um grande desafio que permanece: – o direito das maiorias da população apropriar conhecimento, consciência dessas realidades e retomar o amplo debate e mobilização, já neste ano eleitoral. Arriscamos a síntese dessas realidades:

 

1 — Concordância universal com o modelo de atenção á saúde de qualidade, provedor de condições de vida saudável, proteção contra riscos de doenças crônicas, transmissíveis e traumas, e diagnóstico e tratamento precoces, que resolve 80 a 90% das necessidades e direitos da população(Atenção Primária ou Básica á Saúde). Esse modelo não comporta o desumano volume de sofrimento e recursos financeiros evitáveis, e atende oportunamente com procedimentos especializados de maior custo assistencial, os 10 a 20% que inevitavelmente necessitam.

 

2 — Somente os sistemas públicos de saúde universalistas e equitativos de atenção integral á saúde, assumidos por Estados mais democratizados, conseguem efetivar o modelo de atenção apontado no item anterior. Esta é uma realidade explicitamente comprovada por mais de um século, por evidências científicas, indicadores de eficácia social, de eficiência em economia de escala, de precedência da realização da Equidade sobre a economia de escala em situações bem identificáveis, de redução da desigualdade social e do alto significado econômico dos multiplicadores fiscais que comprovam o crescimento do PIB consequente ao investimento  no sistema público de saúde, em valor bem acima do valor desse investimento.

 

3 — Nos sistemas públicos de saúde universalistas a menor “célula” territorial e populacional do sistema é a Região de Saúde com seus municípios articulados de tal forma que a população regional disponha de fácil acesso aos serviços de Atenção Básica resolutiva e referência para redes microrregionais e regionais de assistência especializada.

 

4 — Os sistemas públicos universalistas de saúde foram surgindo no século passado nos países europeus, abalados com a desenfreada acumulação e concentração da riqueza e do capital, graves crises econômico-sociais e com duas grandes guerras mundiais, que levaram as sociedades a pactos sociais mais civilizados, que geraram os Estados de Bem estar Social – EBES, estendidos após ao Canadá, Japão e outros.

 

5 — Constatações empíricas nas sociedades com EBES: –  a)as empresas de seguro privado de saúde, vem se mantendo com seus consumidores representando por volta de 10% da população, pelo fato de que por volta de 90% optam pelo sistema público universalista de qualidade, b)nesses países o desempenho do sistema público universalista constitui-se no grande marco regulatório do mercado dos seguros privados de saúde, e c)esses sistemas públicos são financiados por 75 a 80% dos gastos totais com saúde, que correspondem de 7 a 8% do PIB.

 

6 — Constatações empíricas nas sociedades com o mercado na saúde pouco ou nada regulado pelo interesse público: a)o mercado de planos e seguros privados de saúde concentra-se na assistência especializada e/ou tecnificada de médio e alto custo, integrando um tripé inter-dependente com o mercado da indústria de medicamentos e equipamentos de saúde e com as agências financeiras desse tripé, b)os interesses desse mercado tencionam permanentemente as condutas profissionais de saúde sob os ângulos técnico-científico e bioético, e c)esse mercado na saúde não se realiza sob os princípios da universalidade, equidade e atenção integral para os direitos   humanos á saúde.

 

7 — Nos “arranjos ou mix” público-privados que vem sendo propostos ou implementados em vários países, inclusive o nosso, consta uma Atenção Básica de baixo custo, focal e compensatória (“cesta básica”), e assistência especializada realizada majoritariamente sob gestão de entes privados contratados/conveniados, sob padrão de eficiência de economia de escala com baixo custo unitário.   Ao contrário do que propagam, tornam o sistema menos eficaz em relação aos gastos públicos com a saúde dos cidadãos: – a ausência da atenção integral á saúde, da equidade e consequente alta produção assistencial, geram incalculável massa de procedimentos diagnósticos e terapêuticos tardios e evitáveis, consequente sofrimento humano e por isso, ineficácia do sistema com desperdício de recursos públicos.  O paradigma subliminar que nos é inculcado é o dos EEUU, cuja % do PIB para a saúde é quase o dobro da média europeia(devido aos elevados gastos privados) e seus indicadores de saúde permanecem abaixo da media europeia.

 

8 – Quanto a essas comprovadas realidades apontadas nos itens anteriores, vale indagar: – como as militâncias “SUS” e do MRSB(Movimento da Reforma Sanitária Brasileira) vem tomando conhecimento e reagindo perante estas e outras realidades e desafios? Em minitexto anterior interpretamos que a maior parte dos profissionais e demais trabalhadores do SUS e gestores descentralizados no seu trabalho diário, não só resgatam na prática os valores do direito e solidariedade, como também acumulam nos seus corações e mentes o testemunho e sentimento de que estão fazendo de bem aos direitos da população, daí a expressão “militância SUS”, e a eles somam os conselhos de saúde. Realizam a cada ano mais de 3 bilhões de atendimentos ambulatoriais, mais de 11 milhões de internações, mais de 500 milhões de exames laboratoriais e radiológicos, os maiores programas de imunização e de transplantes de órgãos e tecidos do mundo, etc. Nos congressos do CONASEMS e dos COSEMS são expostos painéis e stands com centenas e dezenas de ilustrações de experiências bem sucedidas no SUS em todo o território nacional, fruto da tocante e obstinada persistência, criatividade e solidariedade de trabalhadores de saúde, gestores descentralizados e usuários do SUS. A militância do MRSB são os dirigentes eleitos e afiliados das entidades CEBES, ABRASCO, ABrES, AMPASA, RedeUnida, APSP, SBB e outras, assim como importantes setores acadêmicos nas áreas da saúde, sociologia, política, história e outras. Diante de tantos obstáculos e distorções impostos ao SUS, que impedem a implementação geral do modelo descrito nos dois primeiros itens deste minitexto, algum arrefecimento ou desgaste já pode estar ocorrendo na militância “SUS”. Também nos corações e mentes dessa militância deve ressoar o desgaste de conviver, impotentes nestes 30 anos, com a quantidade diária de procedimentos diagnósticos e terapêuticos tardios, com sofrimentos humanos e até óbitos evitáveis, convivendo com a reconhecida alta produtividade e eficiência com baixos recursos, e por outro lado, com muito baixa eficácia social, muito aquém do pactuado  no debate constitucional para a  atenção integral á saúde e a equidade.

 

9 – Como nos anos 70 e 80 surgiram essas militâncias e como elas atuaram perante os movimentos sociais e estrutura sindical de então, perante a academia e os poderes Legislativo e Executivo? – Quais etapas e resultados que desaguaram na CF/1988? – Nos últimos 30 anos, quais alterações acumularam-se: na composição e estratégias das forças hegemônicas, nos profundos impactos da comunicação virtual, informática e automação na estrutura dos processos de trabalho e das relações de trabalho? — A concepção e estrutura dos EBES encontram-se em reconstrução? — E as cooptações de quadros dessas militâncias? — E seus desafios nos limites da contra-hegemonia? – Qual o sentido nesses 30 anos, da fragmentação nas representações sociais, nas estratégias das centrais sindicais e da crise de representatividade na sociedade, no Legislativo e no Executivo? — Na dobrada da década dos anos 80 para a dos anos 90 houve inflexão nas origens e forças, impensáveis até então, contra a pactuação social em construção e aprovação da Constituição Cidadã ?  — Nestes 30 anos as militâncias “MRSB” e “SUS” muito cresceram, mas suas formulações, construção de bandeiras unitárias e mobilizações diretamente com a sociedade e suas entidades, assim como com os poderes Legislativo e Executivo, adequaram-se e cresceram em amplitude e vitórias democráticas?   Fechamos este item recomendando enfaticamente as apresentações e reflexões no recente evento CONASS Debate(24-25/Abril) ”Futuro dos Sistemas Universais de Saúde”: Portugal, Costa Rica, Inglaterra e Canadá, e no Brasil, as imperdíveis contribuições, informações e propostas de Jairnilson Paim, Gastão Wagner, Eugenio Vilaça, Fernando Cupertino e outros (http://www.conass.org.br e ascom@conass.org.br). Na mesma linha a Revista Ciência & Saúde Coletiva lançará em Junho, número especial dos 30 anos do SUS, também imperdível.

 

10 —  Vivemos hoje o intricado desafio dos debates, pesquisas e reflexões na busca de respostas a essas e outras questões, que foram vitais para o pacto social e constitucional dos anos 80. Quais mudanças, reformulações e reconstruções passaram a ser requeridas no decorrer desses 30 anos, para a sociedade e Estado, com vistas á construção do SUS? – Para tanto não vemos como não considerar o ângulo mais abrangente e histórico da Economia Política. Deparamos com a retomada da acumulação e concentração exponencial do capital, agora globalizada, com estratégia definida e explicitada nos anos 80: uma pactuação alicerçada por uma “nata” internacional de intelectuais orgânicos e estrategistas financeiros especialmente convidados. Foi o “Consenso de Washington”, que após as experiências de Thatchter e Reagan, definiram entre várias estratégias, a de não mais financiar os EBES com recursos públicos, impondo a Financeirização dos Orçamentos Públicos – FOP , o comando hegemônico do capital financeiro-especulativo sobre o capital produtivo e graus diferenciados de autonomia dos Bancos Centrais perante os governos nacionais.  Na FOP destaca-se a estratégia da austeridade nos gastos públicos com a infraestrutura do desenvolvimento nacional e com as políticas públicas universalistas para os direitos sociais, gastos esses classificados como perdulários nas instituições públicas mas não na  iniciativa privada (subsidiada ou livre mercado). A FOP vem avançando globalmente nestes 30 anos, com intensidade variável segundo o grau de desenvolvimento e democratização do Estado e a reação da sociedade em cada país; no Brasil os juros e demais serviços da dívida pública há vários anos vem consumindo acima de 50% do Orçamento Geral da União, este gasto, jamais assumido como perdulário pela ortodoxia econômica neoliberal, menos ainda, qualquer possibilidade de ser submetido a auditoria internacional independente. Restam: 22,1%-previdência social, 3,9%- saúde, 2,8% -educação, 0,5%-segurança pública, 0,04%-energia, 0,04%-saneamento, etc. Os 30 anos de pregação dessa ortodoxia econômica criou tais expectativas, que o coordenador da  proposta econômica da campanha do ex-governador do Est. de S.Paulo, declarou:  “a obrigação de destinar parte das receitas públicas para Saúde e Educação deve passar da Constituição para Lei Ordinária, porque cai de 308 para 257 o número de deputados a serem contornados”. A Emenda Constitucional- 95/2016 foi mais um passo na FOP, constitucionalizando-a. Fechamos este item também com enfática recomendação do excelente texto “Políticas Sociais e Austeridade Fiscal: Como as Políticas Sociais são Afetadas pelo Austericídio da Agenda Neoliberal no Brasil e no Mundo”, de Fabíola S. Vieira, Isabela S. Santos, Carlos O. Reis, Paulo H. Rodrigues e outros, Janeiro/2018.(Os núcleos do CEBES de Brasília, Goiás e Salvador elaboraram o criativo resumo “Que História é essa de Austeridade?”). Muito recomendamos também a excelente análise de Pedro P. Bastos e Luis G. Belluzzo “Uma Crítica aos Pressupostos do Ajuste Econômico” publicado em 09/10/2016 no caderno “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo.

 

11 – Compondo com a implementação da FOP em nosso país, permanece intocável nosso sistema tributário entre os mais regressivos e espoliadores do mundo: penaliza tanto mais quanto menor é a renda pessoal e familiar e bem mais os agentes da produção e consumo, do que os agentes da acumulação da renda de aplicações financeiras especulativas, dividendos, patrimônio e riqueza. Nosso sistema tributário permanece como verdadeiro motor da engrenagem concentradora de renda e desigualdade social. A proposta de iniciar efetivamente a reversão da regressividade, mais consequente e viável até o momento, é o projeto apresentado pela Federação Nacional do Fisco-FENAFISCO(Estados e Distritos) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Nacional-ANFIP.

 

PS – Os minitextos “A Globalização Perversa e Desumana da Ditadura Financeira Especulativa” (11/11/2015) e “A Conjuntura de 30 Anos do Domínio Financeiro Especulativo: Desafios para 2018”(02/01/2018) estão a disposição por trazerem dados e informações ligados a este minitexto.