A PEC que dá um tiro na coluna vertebral do SUS e pretende parecer que é uma vitória dos trabalhadores

*Por Heleno Correa-Filho

A PEC 451/2014 – de autoria do ex-Deputado Eduardo Cunha – “Insere inciso XXXV e altera o parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal. Inclui como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica”.

Desde 25 de março de 2018 as entidades vinculadas ao movimento pela defesa e desenvolvimento do SUS assinaram manifesto conjunto denunciando a quebra de direitos Constitucionais à saúde pela proposta do ex-deputado. As entidades [Abrasco – Abres – Ampasa – Cebes – Idisa – SBB] assinaram um manifesto com o título “A PEC 451 rompe com o direito à saúde e promove a segmentação definitiva do SUS”. Naquele manifesto denunciavam que o retrocesso imposto pela medida devolveria a assistência à saúde ao panorama pior que o da época do INAMPS (1985) quando pelo menos a assistência era provida sob controle do estado, sem a participação comunitária e sem o controle social determinados pela Constituição de 1988.

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 451/20914 introduz um princípio inconstitucional de que alguns trabalhadores, e possivelmente suas famílias, não serão mais o público preferencial do SUS, e deverão, por esse motivo, ser público vendido pelos seus eventuais empregadores para os planos de saúde que hoje são suplementares e assim passarão a ser serviços de saúde principais e terceirizados.

Esses planos serão destituídos dos princípios do SUS em relação ao que está contido no Parágrafo único do artigo 7 que diz: “São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI, e XXIV, bem como a sua integração à previdência social”.

A PEC451 se encontra dormindo como sucuri debaixo d’água na gaveta da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aguardando ser levada ao plenário para votação. Se aprovada será promulgada em assinatura pelo presidente golpista antes do fechar do ano de 2018. Poderá ainda ser assinada pelo novo presidente eleito a partir de janeiro de 2019.

O adendo lobista do ex-deputado pretende pegar carona nos direitos reconhecidos aos empregados domésticos e introduzir uma quebra de direitos reconhecidos no artigo 200 – “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:” … II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;” após ter estabelecido no artigo 198 que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada com descentralização, atendimento integral e PARTICIPAÇÃO DA COMUNIDADE [grifo nosso] (BRASIL 1988).

Qualquer lei complementar ou ordinária que fosse proposta para entregar a tutela da saúde de trabalhadores aos serviços privados contratados por seus patrões seria considerada inconstitucional. Uma proposição dessa natureza violaria os princípios do atendimento integral e da participação da comunidade por que a entrega ao serviço privado suplementar entraria em conflito com o interesse lucrativo daquele segmento orientado para atender aos investidores e não poderia ser submetido ao controle da comunidade atendida.

Como a Constituição não permite o senhor Eduardo Cunha ‘colocou um jabuti no poste’ e “pendurou” a violação daqueles princípios constitucionais numa emenda conquistada pelos trabalhadores domésticos após longa luta social por direitos previdenciários e trabalhistas. Trata-se de tomar posse indevida de uma conquista da Seguridade Social da mesma forma que uma mosca varejeira deposita seus ovos sobre filhotes de outras espécies.

A disposição que estabelece uma suposta “garantia fundamental” na verdade retira dos trabalhadores e suas famílias a verdadeira garantia de que sua saúde é um direito humano e responsabilidade do Estado, tal como estabelece o artigo 196 da mesma Constituição.

Os trabalhadores passaram a integrar os “pacotes de vidas” das empresas privadas de prestação de serviços suplementares de saúde. Com isso, seus problemas de saúde decorrente dos processos de trabalho e do meio ambiente do trabalho passam a ser manejados de maneira privada, ao arrepio das ações públicas de vigilância em Saúde, contrariando as leis e até mesmo a Política Nacional de Vigilância em Saúde estabelecida em 2018 pelo Conselho Nacional de Saúde.

No caso de empresas com maior poder econômico poderão incluir naqueles planos não apenas os trabalhadores, mas também seus familiares, como ações de beneplácito e liberalidade, que serão imediatamente reconhecidas pelos gestores públicos municipais e estaduais como excluídos das responsabilidades de Estado pelo seu cuidado.

Pouco a pouco as famílias vendidas aos planos empresariais vinculados aos empregadores formais poderão ser discriminadas com negativa de atendimento nos serviços de atenção pública sob a alegação de que já seriam cobertos pelos planos empresariais vinculados ao emprego dos chefes de família.

O cenário atual já é de anomalia da vigilância em Saúde do Trabalhador e seria definitivamente tornado um universo apartado do SUS. Mesmo após a Constituição de 1988 e toda a legislação sobre o SUS até o ano de 2018 os responsáveis empresariais e clínicos que administram os Serviços de Segurança e Medicina do Trabalho – SESMTs – estão TODOS ilegais perante a lei 6.259/1975, por que (BRASIL – PR 1975):

. Não comunicam à vigilância epidemiológica os relatórios de morbidade e mortalidade nos ambientes de trabalho;

. Não notificam morbimortalidade ao SUS via SINAN, SIM ou qualquer instrumento oficial de informação contínua;

. Não apresentam relações de atendimento ambulatorial qualificada por procedimentos vinculados a diagnósticos classificados pela Classificação Internacional de Doenças;

. Não apresentam ao SUS os relatórios internos de acidentalidade e afastamentos do trabalho por doença comum e doenças relacionadas com o trabalho.

Não bastasse a leniência com esta ilegalidade massiva contra os princípios Constitucionais do SUS agora se pretende a terceirização privatizada de todo o sistema que em si é ilegal há quarenta e três anos segundo a lei de Vigilância Epidemiológica, e há trinta anos segundo a Constituição em vigor. A partir da PEC 451/2014 tudo estaria pacificado contra os interesses e contra os direitos dos cidadãos brasileiros.

Para cercar de ataques a Saúde do Trabalhador o Conselho Federal de Medicina segue sua trajetória de buscar a captura dos mecanismos reguladores e assistenciais do SUS editando a Resolução número 2.183/2018 publicada no Diário Oficial da União do dia 21/09/2018 – Seção I – Página 206. Nela o CFM estabelece travas e limites para atuação dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador – CERESTs, buscando legislar acima de seu poder corporativo sobre a Saúde Pública, o Estado em todos os aspectos federativos e acima das Leis reguladoras e da Constituição. Dessa forma articulam seus interesses corporativos com os das empresas privadas e seguradoras de saúde. Afinal não foi por outro motivo que os dirigentes dessa autarquia federal de Estado apoiaram o golpe de 2016.

Uma característica política essencial para a possibilidade de vender trabalhadores como ‘pacotes de vidas’ para o setor suplementar é desativar seu poder organizativo e de reivindicações (Siqueira, Castro et al. 2003). É fato conhecido que os trabalhadores norte-americanos são considerados os menos sindicalizados e menos capazes de fazer greve no mundo ocidental e esse fato é atribuído à sua dependência, junto com suas famílias, de atendimento em saúde pelos planos vinculados às empresas em que trabalham. O Estado não oferece nada e as empresas detêm o monopólio da contratação de planos coletivos de saúde. Vários autores descrevem essa dependência em relação aos planos empresariais como razão para a passividade dos trabalhadores em relação às exigências de trabalho insalubre, quebra de direitos, exigências patronais e políticas antissindicais típicas das empresas norte-americanas (Harvey 2005, Borges, Moimaz et al. 2012).

Como para o imaginário dos trabalhadores a oferta de planos privados suplementares é considerada um benefício, a retirada dos direitos da Seguridade Social garantidos pela Constituição de 1988 é apresentada como se fosse um benefício.

É na verdade um malefício ou um tiro contra a coluna vertebral do SUS que, se aprovado, tornará tetraplégica a Vigilância em Saúde pois perderá suas pernas e braços executivos ao vender pessoas para um sistema cujo objetivo está em permanente conflito de interesses com os princípios de igualdade (equidade), integralidade e participação comunitária.

 

Referências:

Borges, F. T., S. A. S. Moimaz, C. E. Siqueira and C. A. S. Garbin (2012). Anatomia da privatização neoliberaldo SUS: O papel das organizações sociais. São Paulo SP, Cultura Acadêmica.

BRASIL – PR (1975). LEI No 6.259, DE 30 DE OUTUBRO DE 1975. Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. . D.O.U. Diário Oficial da União,.

BRASIL (1988). Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. C. I. Seção II, Artigo 196. Brasilia, Congresso Nacional. 2009: Meio digital eletrônico.

Harvey, D. (2005). A brief history of neoliberalism. Oxford, NY, Oxford University Press.

Siqueira, C. E., H. Castro and T. M. d. Araújo (2003). “A globalização dos movimentos sociais: resposta social à  Globalização Corporativa Neoliberal.” Ciência & Saúde Coletiva 8(4): 847-858.