A Era do Minotauro da Saúde no Brasil: perdemos a batalha da Saúde como Direito Social?

Por Thiago Henrique dos Santos Silva*

A lenda do Minotauro sempre serviu aos estudiosos para ilustrar demonstração da força geopolítica de Creta sobre as demais cidades-estado sob seu domínio. Para alimentar o monstro, Minos, rei de Creta, exigia que seus dominados enviassem vidas humanas em forma de “oferendas” a fim de saciar a criatura metade homem, metade touro. Nascido sob a Hegemonia global do Touro de Wall street, a história do Sistema Único de Saúde (SUS) guarda semelhanças com este mito.

Sob seu arcabouço legal, o SUS afirma a universalidade, integralidade e a equidade como princípios, pautados no direito humano à saúde. Entretanto, sob o mesmo arcabouço legal e a alcunha de “complementar”, o capital privado avançou ininterruptamente representando a parte do Touro num único corpo, cobrando sua parte dos tributos em forma de isenções fiscais bilionárias para grandes hospitais, pela transferência direta de recursos do SUS para os planos e operadoras de Saúde – através do imposto de renda – e pela venda de sua capacidade instalada para o SUS.

Mesmo quando muito avançou o SUS esteve sempre preso e servindo ao metabolismo da Besta: mais de 90% dos serviços de apoio ao diagnóstico e terapia (SADT) estão nas mãos do setor privado; mais de 90% dos serviços de hemodiálise são privados ou filantrópicos enquanto o custeio deste procedimento vem praticamente todo do SUS (assim como a maior parte da clientela); menos de 30% dos mamógrafos e menos de 14% dos equipamentos de Ressonância magnética estão na rede própria do SUS, da qual depende 75 % da população brasileira. Inclusive, com a recente abertura ao capital estrangeiro, cada vez mais fatias deste mercado estão em mãos forâneas, com pouca ou nenhuma regulamentação. É a este modelo de expansão híbrido e contraditório que chamamos de Minotauro da Saúde[1].

Nascido dos escombros do INAMPS, tendo que lutar contra o desfinanciamento e subfinanciamento a que foi submetido por 28 anos, contra a mídia que não fazia questão de noticiar apenas seus problemas -escondendo suas qualidades – chegar onde chegou foi um feito histórico. Mesmo aprisionado na lógica de acumulação do capital privado, o SUS está de pé. Somos o único país do mundo com mais de cem milhões de habitantes que consegue salvar uma pessoa qualquer, rico ou pobre, atropelado no meio da rua sem lhe mandar uma conta para pagar.

Entretanto, o SUS tal como o conhecemos está em vias de deixar de existir por dois elementos que agora – após as eleições de 2018 – convergem para um único fim: a financeirização e a mudança da Força dirigente do Bloco no poder.

Se antes o padrão de acumulação da Finança[2] a nível global era responsável pelo arrocho de recursos para o SUS ao nível macroeconômico[3], garantindo pagamento de juros da dívida pública, nos últimos anos vem impondo uma reorganização a nível de processos de trabalho e prática profissional. O Managed Care (cuidado gerenciado) ganhou força no Brasil através das negativas de procedimentos e exames, o que levou os planos e operadoras a serem o setor campeão de reclamação dos consumidores. Dos poucos clientes lesados que decidiram buscar seus direitos na justiça, a quase totalidade venceu seus litígios com os planos, afinal, é mais rentável para as operadoras trabalharem ignorando as leis negando os direitos da maioria, arcando com os pequenos prejuízos oriundos da judicialização de uma proporção mínima de seus clientes insatisfeitos.

Para combater a judicialização, lançam mão de uma nova estratégia: a negativa por um médico já na porta do sistema. A estratégia de ter médicos de família como “gatekeepers” nos Planos de saúde, em última análise, servirá tanto para reduzir o número de pareceres médicos que convençam os juízes de plantão quanto para reduzir os custos nominais com exames e internações. Se no mundo ideal o conceito de ter um Médico de família gerenciando o cuidado mesmo no setor privado fosse algo extremamente louvável, no mundo realmente existente os CEO’s estão preocupados é em reduzir a judicialização e ampliar a margem de lucro dos acionistas.

Nada parece trivial. A novidade tem sido proposta por grandes operadoras de Saúde como Amil, Cassi e Unimed, além de mais recentemente pelo “insuspeito” Banco Mundial. Em seu documento, o Banco sugere que o Brasil adote reformas no sentido de organizar redes compostas por prestadores autônomos. Não parece difícil montar o quebra-cabeças: a mesa está posta para que as operadoras de saúde apresentem um modelo de atenção primária fornecido por elas e pagas pelo SUS.

Estas mudanças encontram guarida na mudança na Força dirigente do Bloco no poder a partir das eleições presidenciais de 2018. Não por outra razão, mas pelo fato de que desde a Constituinte o Estado Brasileiro foi ocupado por forças de certa forma comprometidas com a carta constitucional e com os direitos sociais, que foi possível avançar com o SUS mesmo em tempos de hegemonia neoliberal[4] ou das tensões neodesenvolvimentistas[5]. Não há sinal algum deste compromisso no Bloco de forças que tomou o poder no Brasil, antes o contrário: de vouchers educacionais a credenciamento universal dos médicos, o que se percebe é que o único compromisso será com a propriedade privada, e só.

Fazendo um paralelo com o setor saúde, a consolidação do SUS real mudou a Direção do bloco reformador (o bloco de forças que elaborou, lutou e construiu o SUS) das mãos do Movimento Sanitário para a tecnocracia instalada nas Secretarias municipais de saúde, estaduais e no próprio Ministério. Mais pragmáticos – pois premidos pelas agendas eleitorais locais – estes setores foram construindo o “SUS possível” no cotidiano, e responsáveis foram por construir o que está aí, para o bem ou para o mal.

Se por um lado a direção política do bloco reformador na Saúde passou para setores mais pragmáticos e recuados, por outro foi a municipalização (tão criticada nos últimos tempos) que garantiu a distribuição de poder que pode salvaguardar o que nos restará de SUS.

É no âmbito dos municípios que haverá resistência para manter o direito à saúde, onde a classe média endividada e desempregada procurará o SUS, onde não chegarão as mirabolantes propostas do setor privado cada vez mais comprometido com lucros estrangeiros, onde as pessoas “cuspidas” por planos de saúde cada vez mais segmentados procurarão socorro. É lá que as contradições reais entre um SUS real e uma saúde privada excludente se colocarão. É lá que haverá resistência ao cerco que querem impor ao direito humano à saúde. E nós estaremos lá, mantendo o SUS de pé. Até o Minotauro um dia foi derrotado, quem dirá Bolsonaro.

 * Thiago Henrique dos Santos Silva é mestre em Saúde Pública pela USP, médico de Família e Comunidade, preceptor da Residência Médica em MFC de São Bernardo do Campo (SP) e integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.

REFERÊNCIAS:

[1]Força ou consenso: a reforma sanitária brasileira entre o dilema reformista e o minotauro da saúde. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6135/tde-13022017-112252/pt-br.php

&

Entre o Consenso e o Minotauro da Saúde: um balanço da estratégia da Reforma Sanitária Brasileira. In: Fleury, S. (. (2018). Reforma Sanitária: diálogos críticos. Rio de Janeiro: Fiocruz.

[2]Para estes autores, a finança capitalista é uma fração da classe burguesa a nível global, conformada – grosso modo – pelos grandes conglomerados financeiros, seguradoras, agências de rating e bolsas de valores. Para aprofundamento, sugere-se: LÉVY, D. et al. A Finança Capitalista. 1. ed. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010.

[3] MENDES, Á. N. Tempos Turbulentos na Saúde Pública Brasileira: impasses do financiamento no capitalismo financeirizado. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2012.

[4] Para as polêmicas sobre a hegemonia no Bloco no Poder sugere-se: TEIXEIRA, Rodrigo Alves  and  PINTO, Eduardo Costa. A economia política dos governos FHC, Lula e Dilma: dominância financeira, bloco no poder e desenvolvimento econômico. Econ. soc. [online]. 2012, vol.21, n.spe, pp.909-941. ISSN 0104-0618.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-06182012000400009.

[5] Para as polêmicas sobre a hegemonia no Bloco no Poder sugere-se: BOITO JR., A. & BERRINGER, T. Brasil: classes sociais, neodesenvolvimentismo e política externa nos governos Lula e Dilma. Revista Sociologia e Política, 47, 2013.