SUS representa avanço civilizatório | por Carlos Ocké

Saúde é democracia, democracia é saúde. Esse é o legado do movimento da reforma sanitária brasileira. A defesa dos pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) em torno da universalidade, integralidade, equidade e participação social é indissociável do alargamento da democracia e da garantia das demandas populares.

Saúde é democracia

Mostra-se contraditório apoiar o SUS e a política de austeridade fiscal, em especial a eliminação do mínimo da saúde na união, estados e municípios, posto que a combinação do teto da despesa primária com o congelamento do piso no nível de 2017, introduzido pela Emenda Constitucional 95, já vem reduzindo em termos reais per capita o montante aplicado nas ações e serviços públicos de saúde do governo federal – agravando as condições epidemiológicas, ampliando a desigualdade de acesso e não corrigindo os vazios assistenciais.

É também contraditório defender o SUS e as supostas medidas racionalizadoras para sua gestão: ser eficiente não significa cortar recursos financeiros e organizacionais, como querem o Banco Mundial e o Ministério da Saúde. Pelo contrário, para melhorar, sem abrir mão da segurança, qualidade e eficácia da atenção à saúde, seriam necessários mais recursos.

Finalmente, é contraditório apoiar o SUS e a desregulação do mercado de planos, pois o Estado precisa ampliar sua capacidade regulatória, refreando a internacionalização e financeirização. Caso contrário, empregadores e trabalhadores continuarão sendo penalizados com o aumento de preços dos planos individuais e empresariais. Isso quando as famílias não são expulsas com a perda da “poupança” feita durante seu ciclo de vida, situação dramática para doentes crônicos e idosos. Esse quadro exige fortalecer a regulação, em oposição ao novo projeto de Lei de regulamentação (“pay-per-view”), que radicaliza a segmentação dos planos, razão pela qual é criticado por sanitaristas, consumidores e prestadores médico-hospitalares.

Setor privado ineficiente

A literatura aponta que esse mercado apresenta características econômicas específicas: demanda inelástica; oferta cria a própria procura; informações assimétricas e externalidades produzidas pelos bens públicos não favorecem o predomínio da lógica de mercado na alocação dos recursos.

Baumol destaca o fenômeno da “doença dos custos”, a tendência de custos e preços crescentes no setor, indicando que o trabalho se relaciona de forma diferente com a produção: no setor de bens, o trabalho estaria incorporado ao produto; nos serviços, o trabalho seria o produto sendo trocado, dificultando a substituição de fatores.

Apesar do progresso técnico incorporado ao processo de trabalho e à organização dos serviços de saúde, as possibilidades de avanço da produtividade são restritas em relação às demais atividades econômicas, pois, ao se observar o tratamento individual como produto dos serviços, a expansão do conhecimento médico e a certificação da efetividade poderiam significar a dedicação de mais tempo de trabalho por unidade de produção.

A combinação desses fatores, longe de justificar o reajuste de preços, antes denuncia a ineficiência do mercado: para que os planos não se tornem inacessíveis, dado o subfinanciamento crônico do SUS, o Estado os subsidia por razões políticas de legitimidade, dada a cobertura do mercado formal de trabalho.

É alarmante que, entre 2000 e 2018, o aumento de preços dos planos tenha se descolado da inflação: a taxa acumulada dos planos individuais e do IPCA foram, respectivamente, 382% e 208%. Essa trajetória não pode ser explicada fora da dimensão institucional: depois da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, sua captura e o descontrole de preços dos planos empresariais produziram um laissez-faire regulatório, favorecendo a alta dos preços.

Subsídios inequitativos

O Brasil é o único país com mais de 200 milhões de habitantes com sistema universal de saúde. Entretanto, interesses privados corroem o financiamento público, conduzindo a círculo vicioso caracterizado pela queda do investimento no SUS. Promulgado na Constituição de 88, o sistema teve sérias dificuldades para se consolidar nos últimos 30 anos, porém o mercado recebeu incentivos governamentais, que patrocinam o consumo de bens e serviços de saúde.

Alguns países oferecem incentivos aos contribuintes, mediante a redução de impostos, para o consumo de planos. Esse gasto tributário é imposto não recolhido, é gasto público indireto. O Brasil segue essa tendência, pois os gastos com planos de saúde, profissionais de saúde, clínicas e hospitais podem ser abatidos da base de cálculo do imposto a pagar – para pessoa física e jurídica –, reduzindo a arrecadação do governo federal. Tal renúncia acaba subtraindo recursos do SUS, os quais poderiam incrementar sua qualidade e cobertura.

Em 2017, os planos contaram com R$ 16,5 bi, que poderiam ter sido alocados na Estratégia de Saúde da Família e no Programa Mais Médicos, bem como na atenção secundária (exames, consultas especializadas e cirurgias eletivas). Esse subsídio correspondeu a mais de 5 vezes o que foi gasto com o Mais Médicos (R$ 3 bi) e a aproximadamente 85% do gasto com atenção básica do Ministério (R$ 19 bi).

A renúncia pode gerar situação tão regressiva da ótica das finanças públicas, ao favorecer os estratos superiores de renda e o mercado de planos, que alguns países impuseram tetos ou desenharam políticas para reduzir ou focalizar sua incidência. No Brasil, três questões surgem, entretanto, na atual conjuntura: (i) a renúncia seria canalizada para o SUS ou abateria o déficit primário?; (ii) quem mais se beneficia é a classe média, mas o fim do subsídio não poderia pressionar o SUS?; (iii) para combater as desigualdades não seria mais justo tributar agora os mais ricos para estimular a economia e recuperar o padrão de financiamento das políticas sociais?

Democracia é saúde

Pobreza, desigualdade e violência pressionam o SUS, que, por sua vez, se vê ameaçado pela crise econômica, ajuste fiscal e desregulação dos mercados. Nesse quadro, saídas tecnocráticas para resolver iniquidades setoriais podem, paradoxalmente, produzir mais irracionalidades.

Além desse nó górdio, a recente proposta de mudança no critério de rateio das transferências de recursos da atenção primária pode colocar o SUS em risco nos municípios. Com o retorno de doenças evitáveis e a proliferação das arboviroses, quais seriam as consequências sobre as condições de saúde da população com o fim do Piso de Atenção Básica (PAB) fixo? Segundo a Rede de Médicas e Médicos Populares, a Estratégia de Saúde da Família está sendo completamente descaracterizada nessa mudança, apesar da sua contribuição à redução das taxas de mortalidade infantil, das internações por condições sensíveis à atenção primária e dos gastos hospitalares.

Em suma, Sérgio Arouca proclamou que a democratização da saúde promovida pela Constituição de 88 representou verdadeiro avanço civilizatório. As forças políticas democráticas deste país não podem abrir mão desse valor, sob pena de inviabilizar a sustentabilidade econômica de um sistema de saúde universal e de qualidade para todos os brasileiros.

O Cebiano Carlos Ocké é economista, doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ) e pós-doutor pela Yale School of Management. Esse artigo foi escrito originalmente para o blog Saúde em Público, da Folha de São Paulo.