Patentes para quê e para quem? A proposta de extinção do INPI e o monopólio ao setor privado

?por Jorge Bermudez e Saulo da Costa Carvalho em artigo originalmente publicado no Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz

Muitas iniciativas do atual governo não mais espantam, mas certamente causam indignação. A atividade de regulação é própria do Estado e não pode ser entregue ao setor privado, eivado de conflitos de interesses. Contrapondo saúde e comércio, as patentes de medicamentos e de outras tecnologias podem se constituir em barreiras ao acesso a produtos de saúde. A regulação, tanto sanitária (Anvisa) como de propriedade intelectual e industrial (INPI), tem como finalidade fundamental o respeito a direitos assegurados em nossa Constituição e deve ter lastro na proteção de nossas populações.

O atual sistema de propriedade intelectual e nossa Lei de Propriedade Industrial encontram respaldo numa série de compromissos e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, – podemos destacar a Constituição da Organização Mundial da Saúde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o Acordo Trips da OMC (Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), este último tomado como base para se alterarem as premissas do sistema de propriedade industrial no Brasil, aprovando a Lei 9.279, em 1996, e passando o Brasil a reconhecer patentes de processos e produtos e, consequentemente, ao gerar monopólios, podendo impactar negativamente o acesso a medicamentos sob proteção patentária.

O acesso a medicamentos vem sendo um tema amplamente discutido em foros mundiais, conceituado como o equilíbrio entre a oferta e a demanda de produtos, mas essencialmente contrapondo interesses comerciais a interesses sociais. Esse assunto foi exaustivamente debatido durantes as diversas reuniões do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas, cujo relatório foi tornado público em setembro de 2016. Com a constatação de que o acesso a medicamentos hoje não é mais um problema restrito a países de renda baixa ou média, o relatório recomenda claramente que os Estados-membros da OMC devem se comprometer em seus níveis políticos mais altos a respeitar a letra e o espírito da Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e Saúde Pública, se abstendo de qualquer medida que restrinja sua implementação e uso, com o fim de promover o acesso a tecnologias em saúde.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível das Nações Unidas implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos

Concretamente, e mencionando o artigo 27 do Acordo Trips, devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção. O mandato do Painel de Alto Nível consistia na busca de soluções para as incoerências políticas entre os direitos dos inventores, as prioridades em Saúde Pública, as leis e regulação de direitos humanos e as regras do comércio.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos. Em dezembro de 2017, a Comissão Mista de Desburocratização do Congresso Nacional incluiu em seu relatório “agilizar o exame da proposta de alteração legislativa que tem por finalidade instituir um processo simplificado para apreciação da patente sem exame, a critério da parte interessada ou de eventual concorrente, atualmente em estudo na Casa Civil da Presidência da República”. É de estarrecer uma proposta desse tipo e, na ocasião, nos referimos à mesma como crime de lesa-Pátria (ver aqui). Aparentemente, mesmo sendo apoiada por setores do governo, essa proposta não conseguiu o eco necessário, e a discussão não prosperou.

Devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção

Nestes últimos dias, circulou amplamente a notícia de que o Ministério da Economia estaria propondo a extinção do INPI e a transformação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial em Agência Brasileira de Desenvolvimento e Propriedade Industrial (ABDPI), incorporando as competências do INPI no formato de Serviço Social Autônomo (ver aqui a nota técnica com proposta de Medida Provisória nesse sentido). Tal proposta, na verdade, vem sendo gestada sem alarde há algum tempo, pois a Nota Técnica é datada de 4/11/2019 e discute Medida Provisória e Lei Ordinária, que remontam a outubro e propõem implementação a partir do primeiro dia do exercício de 2020, para o qual uma série de medidas anteriores se fariam necessárias tempestivamente.

A circulação dessa proposta, a nosso ver, incluída no desmonte que vem sendo implementado nos setores públicos, levou à reação imediata de funcionários do INPI. Põe em risco a excelência do Instituto, reconhecida por instituições congêneres em diversos países, comprometendo a imparcialidade e transferindo as responsabilidades de uma autarquia do Estado para uma entidade com interesses privados. Houve, ainda, notas públicas da Associação dos Juízes Federais do Brasil e Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo, bem como de diversos sindicatos nacionais, lembrando do caráter superavitário do INPI, do seu papel relevante na transferência de tecnologia de outros países e estratégico, no desenvolvimento nacional e relações de comércio exterior.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, a proposta em questão [de extinção] fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado.

Louvamos com destaque a nota pública de repúdio à proposta de extinção do INPI elaborada e divulgada pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coletivo que congrega diversas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e especialistas ligados ao tema da propriedade intelectual e acesso à saúde no Brasil. O GTPI, mais uma vez, posiciona-se oportuna e corretamente em defesa da saúde e contra o desmonte de instituições estratégicas de Estado.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, da necessidade de fortalecer, e não de extinguir, a proposta em questão fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado.

Cada vez mais, fica evidente a necessidade de reagir com indignação, de argumentar com convicção e lutar contra a precarização de atividades essenciais e estratégicas. A insegurança jurídica que emana desse tipo de proposta compromete ainda mais a respeitabilidade do Brasil no exterior e está muito clara na questão de acesso a medicamentos. O papel do INPI, de qualquer forma, é relevante para muitas outras áreas, como Agricultura, Ciência e Tecnologia, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, direitos autorais, entre outros. O retrocesso que uma inciativa dessas vai acarretar não será superado em curto ou médio prazo, mostrando-se mais um desmonte, na contramão do mundo civilizado!


Jorge Bermudez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas

Saulo da Costa Carvalho é tecnologista do INPI, presidente da Associação dos Funcionários do INPI.