Sobre o Controle de Preços de Medicamentos – artigo de Reinaldo Guimarães

Os gastos com saúde crescem em quase todo o mundo, em particular nos países desenvolvidos, com os Estados Unidos da América na liderança[i]. A maioria das análises mostra que dentre as inúmeras causas desse crescimento está a intensificação da dinâmica tecnológica em saúde, especialmente a alta de preços dos medicamentos[ii].

Os países que possuem sistemas de saúde universais há muito desenvolveram mecanismos regulatórios para controlar esse aumento de preços que, com o recrudescimento da tendência de alta, em muitos casos estão sendo aperfeiçoados no sentido de controles mais rígidos (p. ex., Reino Unido em 2014[iii] e Canadá em 2020[iv]). Mesmo países sem sistemas universais o controle vem aumentando. Nos Estados Unidos, está para entrar em vigor em 2020 uma Lei que reforça a regulação de preços (Prescription Drug Pricing Reduction Act)[v].  Nos países em desenvolvimento, merecem destaque os esforços da China em controlar os preços dos medicamentos[vi]. No Brasil, o controle de preços teve início em 1999/2000 com a CPI dos medicamentos seguida pela promulgação da Lei dos Genéricos e pela criação da primeira câmara de regulação de preços (CAMED), ambas em 2000 e com a criação da CMED em 2003, que até hoje cumpre essa missão. Essas iniciativas, às quais devem ser adicionadas as farmácias populares (2004, 2007 e 2011 em suas três versões) e a política de desenvolvimento produtivo (2008), foram capazes de reduzir o preço médio dos medicamentos entre 2000 e 2017 em cerca de 20%[vii], com um crescimento significativo do acesso aos mesmos pela população. Essa foi uma trajetória nitidamente anticíclica em relação ao resto do mundo.

Um argumento abundantemente utilizado pelo mundo afora contra a regulação de preços de medicamentos é que as empresas sofrem com ele. No Brasil, pelo contrário. Neste século, com as políticas de controle brevemente mencionadas acima, adicionadas a inclusão social e a expansão da economia em boa parte do período, a indústria farmacêutica esteve entre os segmentos da indústria de transformação que mais cresceram, até hoje resistindo ao desastre observado em outros segmentos a partir de 2014.

As iniciativas de controle de preços dos medicamentos vêm tendo uma trajetória recente acidentada, com a extinção do componente público da Farmácia Popular em 2019, com o congelamento da expansão de seus outros dois componentes (Aqui Tem Farmácia Popular e Saúde Não Tem Preço) e com uma paralisia da política de desenvolvimento produtivo desde 2017. E, para completar a reversão dos mecanismos de controle de preços, avança celeremente uma proposta de eliminar a regulação de preços pela CMED de uma grande parte do mercado de medicamentos no país.

Nas palavras do representante do Grupo Farmabrasil, Reginaldo Arcuri: “Estamos propondo que medicamentos que têm inovação incremental tenham seu preço definido pela própria empresa”. Essa proposta foi objeto de estudo por uma comissão coordenada pela ANVISA com a participação dos Ministérios da Saúde, da Economia e da Justiça e deverá ser objeto de consulta pública em breve. Segundo matéria do Valor Econômico (10/9/2019), o argumento é: ‘“Na [CMED], a análise [para a fixação de preço] não levará em conta o risco assumido pelo laboratório e vai comparar um produto aperfeiçoado a outros que já estão no mercado, resultando em remuneração inadequada, afirma Arcuri. “O que estamos querendo é um jogo de mercado, e não privilégios. Queremos concorrer e ter flutuação de preços’”. Em outra matéria, agora na Folha de São Paulo (18/12/2019), o mesmo executivo afirma: “’O aumento dos preços desses medicamentos não é descartado (grifo meu). No entanto, segundo Arcuri, se a indústria aumentar os valores, terá baixa demanda nas farmácias, já que o consumidor recorrerá ao remédio no formato sem inovação incremental, mas com resultado igual. “O Brasil tem uma inércia de achar que preço de medicamento tem que ser controlado pela vida toda”’.

O conceito mais disseminado de “inovação incremental” foi elaborado pela OCDE e expresso em 1990 no Manual de Oslo. Uma das características da utilização desse conceito são as grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais, etc. Por exemplo, a compra de novo maquinário para um produto é, sim, considerada uma inovação incremental. Aliás, de acordo com a Pesquisa de Inovação Tecnológica do IBGE, esta é mais frequente inovação relatada pela indústria de transformação no Brasil. Mudanças de embalagem são também consideradas inovações incrementais, nesse caso uma inovação de marketing. E por aí vai. Nada sabemos ainda sobre a delimitação que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vai estabelecer. E, provavelmente, existindo um contraditório entre a interpretação da Anvisa e do fabricante sobre se um produto apresenta ou não uma inovação incremental, abre-se um amplo espaço para novos contenciosos judicializáveis.

Outro aspecto diz respeito a essa suposição (neoclássica) de que o mercado vai regular os preços relativos quando uma empresa lançar um produto “incrementado” já tendo outro(s) “velho(s)” e regulado(s) no mercado. Ora, todo o marketing sobre os prescritores nas farmácias e nos consultórios médicos será, naturalmente, focado no “incrementado” mais caro e a tendência será o fim-de-carreira do “velho”. Tendencialmente, teremos um mercado só com produtos sem regulação de preço. No limite, apenas os produtos protegidos por patentes estarão submetidos ao controle de preços.

Por fim, um comentário lateral, na verdade uma conjectura. Internacionalmente, o tema das inovações incrementais passou a ser exaltado pela Big Pharma como uma justificação da possibilidade de medicamentos resultantes dessas inovações poderem ser patenteados. Essa exaltação alimenta uma das principais estratégias de extensão exagerada do período de proteção patentária (evergreening) pelas multinacionais e tem contra si uma oposição feroz e justificada dos produtores locais. É bem verdade que os temas de patentes e controle de preços são distintos. Mas, não parecerá politicamente contraditório argumentar que produtos oriundos de inovações incrementais sejam não-patenteáveis ao mesmo tempo em que é proposta uma liberalidade para os mesmos quanto ao controle de preços? Em outros termos, ser contra o evergreening de patentes e a favor de uma espécie de “evergreening” de preços?


*Reinaldo Guimarães é médico, vice-presidente da Abrasco e pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ

Referências:
[i] https://www.economist.com/business/2019/05/21/the-global-battle-over-high-drug-prices

[ii] https://www.ntu.org/publications/detail/health-care-technology-and-spending

[iii] https://en.wikipedia.org/wiki/Pharmaceutical_Price_Regulation_Scheme

[iv] https://www.theguardian.com/world/2019/aug/09/canada-prescription-drugs-cut-cost

[v] https://www.forbes.com/sites/joshuacohen/2019/10/15/drug-price-controls-gaining-traction-at-federal-and-state-levels/#5ad04d952049

[vi] https://www.asiatimes.com/2019/08/article/china-increases-drug-price-control-measures/

[vii] https://sindusfarma.org.br/arquivos/APRESENTACAO_MARCELA.pdf