Transição Justa e a translação como futuro do CEBES

por Heleno Rodrigues Correa Filho, diretor-executivo do Cebes, médico epidemiologista, professor livre-docente (aposentado) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB)

No início da primeira década dos anos 2000 vivemos no Brasil a ilusão de que teríamos superado o “entulho autoritário” da ditadura militar-jurídica-financeira do período 1964-1985. Aprendemos com lideranças científicas estadunidenses o que eles aprenderam com líderes sindicais nos anos 1970.

O pesquisador Daniel Bermann [ch. 6,  “Labor, Solar and the Energy Economy,”  of the  Dan Berman/John O’Connor book Who Owns the Sun? 1996, p.157 ] nos repassou o conceito de Transição Justa (“Just Transition” que hoje o “Dr. Google traduz como “apenas transição”). Lembrava o líder sindical Tonny Mazzocchi como criador desse conceito, quando liderou a elaboração que resultou no decreto Constitucional nos EUA sobre a Saúde e Segurança no Trabalho (Occupational and Safety Health Act – OSHA – 1970).

A teoria da transição justa se opunha à degradação e abandono à própria sorte dos trabalhadores abandonados por indústrias, mineração e trabalho poluidor e adoecedor. Teriam que ser respeitados e não combatidos. Os princípios básicos eram garantir salários sem redução, recapacitar e recolocar os trabalhadores com empregos fechados, ampliar a geração de empregos em acordos sociais sustentáveis, e associar as iniciativas de substituição dos processos poluidores em alianças do estado com os novos investimentos produtivos.

Essas ideias levaram à concepção de um “superfundo” de impostos cobrados dos empreendimentos poluidores e adoecedores para sustentar o processo básico de transição para empregos, trabalho, e produção mais justa.

O Brasil teria se beneficiado dessa formulação se dependesse dos esforços da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto – ABREA, não fosse o retrocesso estatal antidemocrático dos anos 2013-2018 com a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego em 2019. Quem comanda os processos produtivos a partir de 2019 é o Ministério da Economia, que economiza em normas, corta regulações, desinveste em orçamentos de capacitação e desnacionaliza a economia do país.

O choque entre o futuro prometido entre 2000 e a realidade de 2020 é evidente com a destruição de todo arcabouço jurídico, legal, fiscalizador e de pesquisa na área de saúde e segurança dos trabalhadores (não “do trabalho”). Retrocedemos de um espaço social formulador de garantias para seres humanos e para o ambiente em direção a privilégios da produção insegura, poluidora e destruidora.

O símbolo dos tempos do mundo do trabalho no Brasil em 2020 são os desabamentos das barragens da Mineradora VALE no Fundão (Mariana-MG), no Córrego do Feijão (Brumadinho-MG) com mais de trezentas mortes contabilizadas embora muitas sejam não identificadas.

Outro símbolo colateral de destruição é a matança ecológica e desastre humanitário da barragem de Belo Monte – Altamira – PA, onde está em andamento a destruição calculada nos antigos cem quilômetros de rio caudaloso substituído por um rastro de seca sem peixes, fome, doenças, mortes infantis, desaparecimento de alimentos de indígenas e ribeirinhos, e superpopulação de cidades transformadas em vivências carcerárias de alto índice de crime organizado, grilagem de terras, expropriação e violência urbanizada que não existiam antes da construção da represa do Rio Xingu.

Esse é o pano de fundo em que precisamos reconstruir o trabalho acadêmico, científico e político da luta pela vida, pela saúde e pela ecologia em 2020. Essa é a pauta para o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde na terceira década do século XXI.

O CEBES tem a virtude de se organizar territorialmente e não segmentar seu trabalho coletivo em barreiras disciplinares. Embora o CEBES tenha origens na academia ligada à Saúde Pública (1) e à Saúde Coletiva (2) a estrutura do grupo de estudos nacional e do trabalho em núcleos preservou a translação, em que a passagem do conhecimento descreve órbitas que evoluem em relação à posição de seus membros em qualquer posição social, partidária, científica e até religiosa. O movimento translacional permite variar as perspectivas em que os fatos são observados embora a produção científica e acadêmica tenha o costume de orbitar em torno de si mesma, como o planeta terra gira em torno de seu eixo. A órbita é disciplinar, a translação é o olhar em posição mutante e relacionado com a mudança de posições do observador e do que é observado.

O CEBES começa bem o ano de 2020 com a edição da Revista Saúde em Debate que faz a busca do conhecimento translacional. Com isso não precisa pedir autorização de um epidemiologista para “duvidar” da eficácia de uma vacina, do risco de um medicamento novo. O estudioso do CEBES pode propor sua pergunta e admitir que virão respostas dependentes das posições de seus outros colegas de estudo, essas sim, decorrentes de suas eventuais perspectivas disciplinares específicas, tal qual começamos esse texto examinando o avanço não realizado, ou promessa não cumprida, da teoria da transição justa na área de Saúde do Trabalhador.

As teorias disciplinares podem contribuir para seleção dos melhores estudos e teorias mais sólidas entre os pares das Associações acadêmicas. Algumas vezes podem criar o que Foucault chamou de “formações discursivas” cujo grupo de pesquisadores formula para filtrar o que acham válido ou relevante. Essas formações discursivas seguirão seu caminho para gerar concepções teóricas a serem cientificamente testadas até que evoluam para ciência, no sentido estrito do termo (3).

O CEBES pode superar esses limites colocando discussões com pessoas do povo que não pesquisam embora militem na defesa do Sistema Único de Saúde. Pode aceitar proposições e discutir ações de Saúde em benefício comum que superam as barreiras de censura disciplinar que estão acentuadas na luta por pouco dinheiro, muito trabalho, exploração do trabalho imaterial e outras formas degeneradas de academicismo arrivista surgidos na academia neoliberal depois dos anos 1990.

Como membro da diretoria que terminou o mandato em 2019 e novamente parte do grupo que enfrentará o próximo biênio ressalto o papel social translacional ao lado do rigor acadêmico que poderá pautar a ação do CEBES no período 2020-2021. É de boa energia pensarmos que apesar de tudo que está acontecendo de ruim o nosso projeto de saúde e vida em valores comuns é maior, mais forte e traz mais esperança que as pessoas nefastas que estão tentando destruir a vida e a saúde para o benefício do lucro de poucos, menos de um por mil, na loucura capitalista selvagem e fascista da busca do lucro acima de todos, e a morte acima de tudo.


Referências:

1. Corrêa Filho HR, Monteiro MI, Iguti AM. Saúde Pública [verbete de dicionário]. In: René Mendes [Organizador], editor. Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador: Conceitos, definições, história e cultura. 1. 1a ed. Novo Hamburgo – RS – Brasil,: Proteção Publicações e Eventos; 2018. p. 1280.

2. Corrêa Filho HR, Monteiro MI, Iguti AM. Saúde Coletiva [verbete de dicionário]. In: René Mendes [Organizador], editor. Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador: Conceitos, definições, história e cultura. 1. 1a ed. Novo Hamburgo – RS – Brasil,: Proteção Publicações e Eventos; 2018. p. 1280.

3. Barison EdM. Processo saúde-doença e causalidade: uma arqueologia das relações entre a Clínica e a Saúde Pública [Tese de Doutorado – Doctorate Dissertation]. São Paulo – SP: USP – Universidade de São Paulo; 1995.