Até quando o governo Bolsonaro vai usar a tática da retranca para financiar o combate ao coronavírus?

por Francisco R. Funcia, em artigo originalmente escrito para o Viomundo

A análise técnica do financiamento federal do SUS está fortemente condicionada pela crise político-institucional do país no contexto do coronavírus, envolvendo as seguintes situações:

I. Presidente da República versus Ministro da Saúde.

II. Presidente da República versus Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Senado Federal.

III. Presidente  da República versus Governadores dos Estados e Prefeitos dos Municípios.

IV. Repercussão internacional negativa, inclusive em termos econômicos, da postura adotada pelo Presidente da República em contradizer as orientações de distanciamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde e pelos organismos nacionais e internacionais científicos da área da saúde.

Na primeira situação, além de desautorizar diversas vezes as orientações do Ministro da Saúde, não houve (até 1º de abril, portanto passados 60 dias desde o conhecimento público da pandemia no mundo e no Brasil), nenhum ato do Presidente da República para autorizar de abertura de crédito adicional, suplementar ou extraordinário, para aumentar as dotações orçamentárias do Ministério da Saúde para financiar as despesas emergenciais de combate ao coronavírus.

Houve, até o momento, apenas um simples remanejamento orçamentário para criação da ação específica para as despesas decorrentes dessa pandemia no Ministério da Saúde de pouco mais de R$ 5,0 bilhões, dos quais R$ 4,8 bilhões mediante a retirada de recursos das dotações da subfunção “Atenção Básica” e da subfunção “Assistência Hospitalar e Ambulatorial” – ainda que estivessem vinculadas originalmente para as emendas parlamentares, seriam recursos para outras necessidades de saúde anteriores à chegada do coronavírus no Brasil.

Esse remanejamento foi necessário para garantir com urgência os recursos iniciais para enfrentar a pandemia, mas também revelador do atraso da área econômica em adotar as medidas necessárias e emergenciais de rompimento da política econômica de austeridade fiscal

Em outros termos, esse remanejamento orçamentário é similar “à troca que um técnico faz de um jogador por outro num jogo de futebol”, sem mudar a tática de jogar na retranca.

Neste caso, recursos das ações de saúde programadas tecnicamente em 2019 (algumas inclusive pactuadas na Comissão Intergestores Tripartite para transferências fundo a fundo para os Estados, Distrito Federal e Municípios) – quando não se imaginava a pandemia – para constar no orçamento de 2020 do Ministério da Saúde visando ao atendimento das necessidades de saúde da população foram trocados para financiar uma nova ação de combate ao coronavírus.

É como se as necessidades de saúde da população que seriam atendidas por meio daquelas ações tivessem “magicamente” desaparecido.

E, pior, mantendo a “tática da retranca” (isto é, a lógica da austeridade fiscal).

Em tempos de coronavírus, e do necessário distanciamento social para toda a população (que parece se estenderá, no mínimo, até meados do mês de maio), o presidente da República tinha a obrigação de alocar recursos adicionais não somente ao Ministério da Saúde, mas para todos os demais ministérios envolvidos com medidas para compensar os efeitos da queda da atividade econômica para a população, cuja fonte de financiamento imediata deveria ser a venda de títulos da dívida pública, emissão de moeda e/ou utilização parcial do superávit financeiro do Tesouro Nacional.

Sem recursos adicionais no orçamento para a adoção das medidas de combate ao coronavírus e de proteção dos trabalhadores de saúde, o Ministério da Saúde fica de “mãos atadas” para coordenar e operar as ações necessárias, o que pode caracterizar uma espécie de “pressão presidencial” para que o ministro e sua equipe peçam demissão, considerando a postura observada pelo presidente da República ao longo do mês de março.

Essa situação se relaciona com o item II diante da proposta da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do “orçamento paralelo” ou “orçamento de guerra” que o Presidente da Câmara dos Deputados está capitaneando.

De um lado, a postura do presidente da República pode servir de justificativa para a tramitação rápida dessa PEC.

Mas, de outro lado, pode ser do interesse da área econômica do governo, pois flexibiliza a execução orçamentária e contém outros dispositivos que podem servir de referência para viabilizar a outra PEC em tramitação desde novembro de 2019, que trata da desvinculação do orçamento em geral, e dos pisos da Saúde e Educação em especial, mantendo o teto das despesas primárias para o período após a pandemia.

É oportuno lembrar que, hoje, a saúde (e o SUS) é quase uma unanimidade nacional para alocação e execução de recursos orçamentários e financeiros, mas não será assim quando os efeitos negativos da pandemia se reduzirem ao mínimo.

É oportuno alertar que haverá uma demanda represada de ações de saúde para a população a serem atendidas, como, por exemplo, as cirurgias eletivas que foram adiadas, além do combate à dengue, à gripe H1N1, entre outras, o que exigirá a alocação de recursos adicionais agora e no futuro.

Somente em 2 de abril, por meio da Medida Provisória 940, que o Ministério da Saúde recebeu um acréscimo no seu orçamento de 2020: R$ 9,444 bilhões.

Esse valor representa apenas cerca de 8% do total programado para o Ministério da Saúde em 2020 antes da existência do coronavírus, além de insuficiente diante dos cálculos preliminares extraoficiais de acréscimos de despesas para o combate à pandemia que tem sido divulgados pela mídia (entre R$ 50 bilhões e R$ 60 bilhões).

Vale lembrar que Emenda Constitucional 95/2016 tem sido responsável pela redução estimada de recursos federais para o SUS de R$ 22,5 bilhões desde 2018, além de aumentar o estoque de restos a pagar do Ministério da Saúde para o patamar de cerca de R$ 20,0 bilhões desde 2017.

Manter a regra de cálculo do piso federal do SUS e o teto de despesas primárias da União conforme estabelecido pela EC 95/2016 após o final dessa pandemia é repetir o erro que impediu tanto a retomada do crescimento econômico após a recessão de 2015 e 2016, como a estruturação do Sistema Único de Saúde mediante o fortalecimento do acesso universal por meio da estruturação da rede de atenção à saúde a partir da atenção básica e da valorização dos profissionais de saúde conforme preconizado pelo Conselho Nacional de Saúde.

E, como diz o ditado popular, errar é humano, mas persistir no erro revela o poder dos interesses econômicos dentro e fora do Estado em torno da política de austeridade fiscal.

Os itens III e IV estão inter-relacionados.

Se houver aprofundamento da crise do presidente da República com governadores e prefeitos, pode entrar explicitamente em cena a pressão do capital financeiro internacional para o impeachment de Jair Bolsonaro em aliança com os partidos de oposição e outros segmentos da sociedade brasileira.

Mas, é sempre bom lembrar  que essa pressão do capital financeiro internacional sobre o presidente da República pode ser considerada  uma espécie de chantagem para acelerar o processo de internacionalização do setor bancário no Brasil (que está presente no receituário da visão dominante da área econômica do governo). Sobre isso, é interessante observar o crescimento das críticas ao presidente da República na imprensa internacional.

Este é o momento das forças progressistas entrarem em cena de forma firme e articulada, como ocorreu no processo das “Diretas Já”.

Só que devidamente “vacinadas” contra a tentação de acordos pragmáticos com quem respeita os interesses dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais.

É preciso defender com vigor os interesses populares visando à construção de uma sociedade sem desigualdade socioeconômica.

Os próximos capítulos dessa crise serão decisivos.

Francisco R. Funcia é economista, professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Observação: Trata-se de  opinião pessoal do autor; não representa um posicionamento das instituições em que atua profissionalmente