COVID-19 e Desigualdade no Brasil

por Luiza Nassif Pires (Levy Economics Institute), Laura Carvalho (Universidade de Sao Paulo) e Laura de Lima Xavier (Harvard Medical School)

Resumo. Seja pela maior dificuldade de manter o isolamento social, o emprego e a renda, seja pelo menor acesso a saúde e ao saneamento básico, há relativo consenso de que o COVID-19 irá afetar desproporcionalmente os mais pobres. Esse breve relatorio sugere uma razão adicional para se esperar que os mais vulneraveis sejam mais antigidos pela pandemia: a maior incidencia de fatores que elevam o risco de gravidade da doença entre os menos escolarizados. Tais evidencias reforçam a necessidade de se desenhar medidas que tratem os desiguais de forma desigual.

I. MOTIVAÇÃO

A expansão acelerada do número de óbitos por COVID-19 e o colapso do sistema funerário na cidade de Guayaquil no Equador 1 acendeu mais um sinal de alerta sobre os efeitos potencialmente devastadores da pandemia nos países e regiões mais pobres do mundo. São várias as dimensões que tornam as populações de baixa renda mais expostas a contaminação pelo novo coronavírus, tais como o uso de transporte publico, o número maior de moradores por domicílio, o acesso a saneamento básico, o acesso à saúde e a dificuldade de manter o isolamento social sem perda excessiva de renda ou do emprego. Estudos populacionais com dados de epidemias de infecções respiratórias anteriores (gripe espanhola, H1N1 e SARS) demonstraram que desigualdades sociais sao determinantes para a taxa de transmissão e severidade dessas doenças 2 (Ver por exemplo Cordoba et al [4], Mamelund et al [8], Tricco et al [11], Bengtsson [1] e Bucchianeri [2]).

A. Vulnerabilidade ao COVID-19 no Brasil

Diante dos níveis abissais de desigualdade de renda e de acesso a serviços no Brasil, não faltam motivos para esperar um efeito desproporcional do COVID-19 entre os mais vulneráveis no país. O estudo de Filho et al. [5] sugere, por exemplo, que a carência de infraestrutura domiciliar, principalmente nas periferias, oferece um maior risco de contágio e propagação de infecções respiratórias. O trabalho de Souza [10] mostrou ainda que a mortalidade por doenças do aparelho respiratório aumentou de forma preocupante em todas as regiões do Brasil entre os anos 2000 e 2013.

No que tange a desigualdade no acesso à saúde, os dados da Pesquisa Nacional de Saude de 2013 indicam que entre os 20% mais pobres da população, 94,4% não têm plano de saúde e 10,9% se autoavaliam com saude regular, ruim ou muito ruim, mas nao consultaram um médico no último ano. Entre os 20% mais ricos, esses índices são de apenas 35,7% e 2,2%, respectivamente. Para piorar, o numero disponível de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e quase cinco vezes inferior para os usuarios do Sistema Único de Saúde – SUS (1,04 leito por 10 mil habitantes, ou menos ainda em estados do Norte e Nordeste) do que para quem tem acesso a rede privada (4,84 leitos por 10 mil habitantes) 3.

B. Desigualdade e COVID-19 nos EUA

Os dados coletados pelo Departamento de Saúde da cidade de Nova York publicados no dia 2 de abril pelo jornal The New York Times 4 deixaram claro que os bairros de baixa renda estão sendo muito mais atingidos pela epidemia do COVID-19 naquela cidade. Ao que parece, não se trata apenas de um numero mais alto de casos confirmados, mas também de um índice maior de severidade desses casos. Em outras palavras, para além de estarem mais sujeitos a contaminação, os mais pobres estão desenvolvendo quadros mais graves da doença. O estudo publicado por Nassif-Pires et al [9] sugere que uma das explicações para essa desproporção é a maior incidência de doenças crônicas associadas aos casos mais graves do COVID-19 entre os mais pobres nos EUA.

II. FATORES DE RISCO NO BRASIL

Em estudo realizado nos Estados Unidos com dados para 7162 pessoas diagnosticadas com COVID-19[3], a taxa de hospitalização entre aqueles que não apresentavam nenhuma pré-condição foi de 7%, sendo 2% em UTI. Esses números aumentam para 30% e 15%, respectivamente, para pessoas com pré-condições reportadas 5 (As pré-condições incluem diabetes, doenças cardiovasculares, doenças cronicas pulmonares, hipertensão, doenças crônicas renais, imunodeficiência e doenças neurológicas). Algumas doenças levaram a uma taxa de hospitalização ainda mais alta. Os infectados que possuíam doença crônica renal e diabetes apresentaram taxas de internação em UTI 11 e 8,5 vezes maiores, respectivamente, do que os que estavam fora de grupo de risco. Pessoas com doenças pulmonares cronicas como bronquite e asma tiveram um numero 3,4 vezes maior de internações e 6,5 vezes maior de transferência para UTI. Ademais, a taxa de hospitalização e internação em UTI para aqueles acima de 65 anos foi o dobro do total da população estudada, mesmo entre os idosos sem nenhuma condição médica reportada.

A partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE realizada em 2013, é possível ter uma estimativa da proporção de brasileiros que se enquadra no grupo considerado de risco para o COVID-19. Se considerarmos como fatores de risco ter acima de 60 anos, ter sido diagnosticado com diabetes, hipertensão arterial, asma, doença pulmonar, doença cardíaca ou insuficiência renal crônica 6 (A PNS não possui dados relativos à incidência de imunodeficiência ou doenças neurológicas, ambos reportadamente correlacionados com complicações em caso de infecção por COVID-19), a PNS sugere que 42% da população se encontra em algum grupo de risco 7. No entanto, os fatores de risco tampouco parecem estar distribuídos igualmente na população.

Conforme mostra a Figura 1, a proporção de pessoas com um ou mais fatores de risco e de 54% para os que declararam ter frequentado apenas o ensino fundamental, ante 28% para os que frequentaram o ensino médio e 34% para os que chegaram a cursar o ensino superior ou pós-graduação. Esta diferença e ainda maior quando se considera quem tem mais de um fator de risco, sendo a presença de dois ou mais fatores de risco três vezes maior entre aqueles que frequentaram apenas o ensino fundamental do que entre aqueles que frequentaram o ensino médio.

Na Figura 2, observamos que não é apenas o fator idade que explica a desproporção na incidência de fatores de risco entre os menos escolarizados. A incidência de comorbidades (doenças crônicas associadas aos casos mais graves de COVID-198) é muito maior entre os brasileiros que só frequentaram o ensino fundamental do que nos demais grupos: 42%, ante 33% na media da população.

Tais achados estão em linha com estudos anteriores, que encontraram, por exemplo, uma maior incidência de diabetes entre os mais pobres no Brasil ([7]) e no mundo 9. De forma mais geral, cerca de 80% das mortes por doenças cronicas ocorrem em países de baixa ou media renda (World Health Organization [12])

III. CONCLUSÃO

A hipótese aqui sugerida de que a base da pirâmide tem maior probabilidade de precisar de internação no caso de contaminação pelo COVID-19 vem somar-se a outros fatores que tornam as populações de baixa renda mais vulneráveis à crise de saúde pública e ao colapso econômico associados a atual pandemia. Não basta, portanto, dedicar esforços maiores para evitar a contaminação de idosos pelo COVID-19: para evitar o colapso do sistema de saúde e a progressão acelerada do número de óbitos, as medidas desenhadas também devem destinar-se a proteger os mais pobres, seja por meio de políticas de preservação da renda que permitam o isolamento social, seja pela ampliação do numero de leitos disponíveis no SUS.

REFERÊNCIAS

[1] Bengtsson T, Dribe M, Eriksson B. Social Class and Excess Mortality in Sweden During the 1918 Influenza Pandemic.
Am J Epidemiol. 2018 Dec 1;187(12):256876.
[2] Bucchianeri GW. Is SARS a Poor Mans Disease? Socioeconomic Status and Risk Factors for SARS Transmission [Internet]. Vol. 13, Forum for Health Economics Policy. 2010. Available from: http://dx.doi.org/10.2202/1558-9544.1209
[3] Centers for Disease Control and Prevention, 2020. Preliminary Estimates of the Prevalence of Selected Underlying Health Conditions Among Patients with Coronavirus Disease 2019 United States, February 12March 28, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 2020;69:382386. Disponível em:http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.mm6913e2

[4] Cordoba E, Aiello AE. Social Determinants of Influenza Illness and Outbreaks in the United States. N C Med J. 2016 Sep;77(5):3415.
[5] Filho, E. B. da S. et al. (2017) Infeces Respiratrias de Importncia Clnica: uma Reviso Sistemtica, REVISTA FIMCA, pp. 716. doi: 10.37157/fimca.v4i1.5.
[6] Gao, Q. et al. (2020) The epidemiological characteristics of 2019 novel coronavirus diseases (COVID-19) in Jingmen,Hubei,China. doi: 10.1101/2020.03.07.20031393.
[7] Malta, D.; Duncan, B.; Schmidt, M.; Machado, I; Silva, A.; Bernal, R.; Pereira, C.; Damacena, G.; Stopa, S.;, Rosenfeld,
L.; Szwarcwald, C. (2019). Prevalencia de diabetes mellitus determinada pela hemoglobina glicada na população adulta brasileira. Revista Brasileira de Epidemiologia, 22 (Suppl. 2).

[8] Mamelund S-E. Social inequality a forgotten factor in pandemic influenza preparedness [Internet]. Tidsskrift for Den norske legeforening. 2017. Disponível em:http://dx.doi.org/10.4045/tidsskr.17.0273
[9] Nassif-Pires, L.; Lima Xavier, L.; Masterson, T.; Nikiforos, M.; Rios-Avila, T. (2020) We need class, race, and gender sensitive policies to fight the COVID-19 crisis. Multiplier effect, The Levy Economics Institute Blog. Disponível em:http://multiplier-effect.org/we-need-class-raceand-gender-sensitive-policies-to-fight-the-covid-19-crisis/.
[10] Souza, I. D. T. D. (2016). Mortalidade por doenc¸as respiratorias no Brasil e suas regiões: série histrica 20002013. ˜
[11] Tricco AC, Lillie E, Soobiah C, Perrier L, Straus SE. Impact of H1N1 on socially disadvantaged populations: systematic review. PLoS One. 2012 Jun 25;7(6):e39437.
[12] World Health Organization (2011) Global Status Report on Noncommunicable Diseases 2010.


Acesse o estudo no link.