Conheça e baixe o livro “Brasil: Estado social contra a barbárie”

apresentação escrita por Francisco Barbosa, jornalista

O livro “Brasil: Estado social contra a barbárie”, da Fundação Perseu Abramo, reúne artigos de um conjunto de professores, pesquisadores e técnicos das diversas áreas de conhecimento e com abordagens multidisciplinares, muitos dos quais participaram da formulação, implementação e gestão de políticas públicas. Formam um conjunto valoroso, uma contribuição crítica, norteada pela identificação dos limites, possibilidades e desafios de um Estado social no Brasil no século XXI.

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Um dos artigos do livro “O sistema de saúde brasileiro: rumo à universalidade ou à segmentação?” foi escrito por José Carvalho de Noronha, médico sanitarista um dos atuais dirigentes do CEBES, e Leonardo Castro, doutor em Antropologia Social, analista da ENSP/Fiocruz.

Segue abaixo um trecho do artigo:

“O sistema de saúde brasileiro: rumo à universalidade ou à segmentação?

O grande marco contemporâneo da reorganização do sistema de saúde brasileiro ?xou-se no ano de 1988, com a promulgação de uma nova Constituição Federal, que traduziu o pacto de transição do país para um regime de liberdades democráticas depois de 21 anos de ditadura militar. Esse marco consistiu na inclusão da saúde como parte necessária da segurança social e, de maneira clara, como direito de cidadania que exige prestação explícita pelo Estado, através de políticas sociais e econômicas que minimizem ou eliminem riscos de adoecimento e morte, e através do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.

De fato, as primeiras intervenções estatais sobre a saúde, associadas ao saneamento dos portos, remontam à virada do século XX, em particular no Rio de Janeiro, com as campanhas de Oswaldo Cruz para erradicação da febre amarela e da varíola. Contudo, foi preciso esperar a década de 1920 para que aparecessem estruturas governamentais de suporte ao combate à tuberculose e aos cuidados com a infância.

(…)

O texto constitucional, retomando a discussão interrompida no ?nal do segundo governo Vargas, integrará conceitualmente, sob a denominação de Seguridade Social, o “conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. A seguridade terá ?xado no próprio texto constitucional seus objetivos: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de ?nanciamento; e o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos órgãos colegiados. A nova Constituição estabeleceu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Viana e Silva identi?caram, em 2012, três institucionalidades de política social nas duas décadas de 1990 e 2000. A primeira, denominada “neoliberal” (1990-2002), inicia-se no governo Collor e prossegue nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso; a segunda, de transição, corresponderia ao primeiro governo Lula (2003-2007); enquanto a terceira, “neodesenvolvimentista”, corresponde ao segundo governo Lula (2007-2010).

A inauguração da década de 1990, com o governo Collor, tentará dar o tom da contrarreforma sanitária. Teve início um movimento de opções contraditórias: de um lado discursava-se sobre os méritos da descentralização e do “controle social” e de outro, aprofundava-se uma subtração de recursos da saúde que reduziu signi?cativamente a política de incremento de gastos de meados veri?cada nos anos 1980. Extinguiu-se o Inamps, uma das poucas burocracias governamentais criada a partir da inspiração trabalhista e aprovou-se a “Lei Orgânica da Saúde”, onde se enunciam os preceitos da reforma sanitária democrática dos anos 1980, mas cuja implantação colidia com a orientação geral da política econômica e tributária daqueles tempos.

A promulgação da Lei 8.080 em 1990, em pleno início da vertigem neoliberal da época, pode parecer paradoxal. Entretanto deve-se salientar dois aspectos que terão extrema relevância para a conformação do sistema de saúde brasileiro no período subsequente. O primeiro, de caráter normativo, consiste na a?rmação, conforme o Artigo 4o da Lei, de que o denominado Sistema Único de Saúde (SUS) é constituído somente pelo “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público”. A iniciativa privada, cuja liberdade de atuação é garantida pelo Artigo 199 da Constituição, só é abarcada pelo SUS na prestação suplementar de serviços ao mesmo (parágrafo 2o do Art. 4o, Lei 8.080). Será dentro desse corredor que os arranjos inteiramente privados (com incentivos governamentais) prosperarão. O outro aspecto, em sentido oposto, diz respeito à preservação dos princípios declaratórios do direito à saúde e da sustentação da política da descentralização através da municipalização. Apesar dos incentivos ao setor privado, a expansão do sufrágio universal, a despeito de todas as suas distorções, obriga as autoridades políticas legislativas e executivas a atender as demandas por serviços de saúde da população não coberta por planos de saúde, ainda que de formas denominadas por alguns de “clientelistas”.

No início da década de 2000, o sistema de saúde brasileiro exibia uma grande fratura. De um lado, para ricos e remediados, um modelo “americano” anárquico, com assistência médica dominantemente privada e regras de concorrência predatórias, sem qualquer programa de qualidade associado e com quebra de cobertura no caso de doenças crônicas e na velhice, que só passa a ter algum grau de regulação com a aprovação da lei 9656/1998.6 De outro lado, um sistema para os pobres, o SUS, fragmentado, múltiplo, descentralizado com escassa coordenação e articulação, sub-remunerado, com ênfase nas prestações médico-assistenciais sem de?nição de prioridades, orientado pela oferta de serviços.

A eleição de Lula à Presidência da República, por meio de uma coalizão de partidos políticos hegemonicamente de centro-esquerda, elevou expectativas em relação às políticas sociais, incluindo a esperança de aproximação da política de saúde ao projeto original da reforma sanitária. O marco deste processo foi a a?rmação de um programa de desenvolvimento que envolveu múltiplos aspectos – econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais – com amplo engajamento e responsabilização do conjunto da sociedade (Viana, Silva, op. cit.).

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O chamado “neodesenvolvimentismo” do segundo governo Lula e do primeiro governo Dilma Rousse? foi duramente atacado por forças conservadoras da sociedade, incluindo aquelas que participavam da coalizão política que dava sustentação a esses governos, culminando no golpe parlamentar que destituiu a presidente em 2016, levando ao cargo o vice-presidente Temer.

Os objetivos setoriais da saúde universal e de qualidade e associadas ao SUS se deparam com barreiras e contradições no interior do próprio modelo de Estado, sociedade e de desenvolvimento do país. As políticas econômicas de ajuste ?scal adotadas pelo Brasil a partir de 2015 colocarão o país em um ciclo vicioso, em que o corte de gastos reduz ainda mais o crescimento. No espaço de fragilidade política aberto pela crise política e pelo impeachment da presidente Dilma, aprofundou-se o sub?nanciamento federal da saúde pública, ameaçando a própria subsistência do SUS como um sistema universal e público de saúde.

Com Temer, retornam ao executivo federal os representantes do primeiro dos três “projetos” de Brasil identi?cado por Fiori (2003), o projeto “liberal” ou, mais exatamente, liberal-conservador. Como argumenta Jessé Souza (2017), pressupostos arraigadamente conservadores e mesmo reacionários – que, para o autor, tem suas raízes no escravismo – se escondem sob essa capa liberal. O discurso antiestado, o incensamento do “mercado” e a ênfase no “mérito” pessoal como justi?cativa para o sucesso econômico e social característicos desse liberalismo peculiar nada mais são, segundo Souza, do que justi?cativas para os privilégios que separam as classes superiores das classes subalternas no país, especialmente do grande contingente de “desclassi?cados”, portadores de um “habitus precário”, desaparelhados para competir no mercado formal de trabalho e se integrar aos setores “modernos” da economia – o “subproletariado” identi?cado por Paul Singer em 1981 (op. cit.), que Jessé (2009) provocativamente chama de “ralé”.

Esse enorme segmento de destituídos, composto por trabalhadores autônomos precários e excedentes que sobrevivem nos espaços intersticiais do mercado de produtos e serviços e na economia informal nas cidades, bem como por trabalhadores agrícolas precários e de subsistência, é resultado direto de um processo de modernização desequilibrado, em que o descompasso entre as rápidas transformações econômicas concentradas nas grandes cidades do Sul-Sudeste e, de outro lado, a persistência de um modelo agroexportador fortemente subsidiado pelo Estado e calcado no latifúndio, ocasionou um enorme deslocamento populacional em direção às cidades formando grandes bolsões de pobreza nas periferias urbanas, processo este que se acentuaria drasticamente no último terço do século XX com os incentivos à mecanização introduzidos pelo regime militar instalado em 1964, (Garcia Jr., Palmeira, 2001). Para Jessé Souza, o desprezo secular pela “ralé” é constitutivo da imagem de si que fazem as camadas superiores da sociedade brasileira e provê o fundamento oculto do liberalismo “meritocrático” das elites.

Poucos meses após a ascensão de Temer à presidência, o governo faz aprovar no Congresso a Emenda Constitucional 95/20169, que limita o gasto primário do governo federal a um “teto” de?nido pelo montante gasto no ano anterior, reajustado pela in?ação acumulada, medida pelo I?ndice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Se os anos 1990 trouxeram o engessamento do executivo federal com alguns pontos da lei de Responsabilidade Fiscal e da Desvinculação das Receitas da União, a aprovação da EC 95/2016 estabeleceu um padrão ainda mais radical de contenção do Estado que penaliza duramente a população mais pobre, principalmente os destituídos que compõem a “ralé” estrutural, parte expressiva dos cidadãos brasileiros que contam somente com o SUS para a prestação de cuidados à saúde – cerca de três quartos da população – e não têm alternativa para a escolarização de seus ?lhos que não a oferecida pelo Estado, sem considerarmos aqui os inúmeros obstáculos que se interpõem entre as crianças da ralé e o mundo escolar.

A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República em 2018, um político até então inexpressivo, com base em uma plataforma de extrema direita, é re?exo desse quadro. A manutenção e aprofundamento, anunciados pelo novo governo, das políticas de contenção ?scal e do teto de gastos, a desconstrução da política ambiental, a retórica beligerante frente aos direitos sociais de minorias, o ataque frequente às universidades e instituições cientí?cas e culturais, associados aos os impactos da reforma da previdência aprovada pelo Congresso Nacional em 2019, sinalizam tempos difíceis para a saúde de brasileiras e brasileiros.

Os incentivos diretos e indiretos a planos e seguros de saúde associados ao sub?nanciamento do SUS foram constituindo “castas” de usuários com coberturas diferenciadas. Já há uma longa distância entre oferta, qualidade, acesso e uso de serviços entre o quarto da população coberta pelos planos e seguros e o restante da população. Ademais, mesmo entre os segurados, “subcastas” são estabelecidas pelo valor do prêmio pago às operadoras. Modalidades cruéis de pré-seleção de risco pelos chamados “planos de adesão” ou pelos planos empresariais “sob medida” para grupos populacionais estrati?cados, e por outra distorção semiótica, chamada “saúde populacional” que “retiram a nata” de pessoas de maior risco e doentes de intermediários privados, lançando-os à “universalidade do SUS”.

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Jorge Abrahão de Castro e Marcio Pochmann (organizadores) | 2020
613 Páginas
Editora: Fundação Perseu Abramo
ISBN: 978-65-5626-005-1