Por que brasileiros não respeitam o isolamento social?

artigo escrito por Rudá Ricci, Sociólogo, presidente do Instituto Cultiva

Se há algo que tortura um sociólogo brasileiro é compreender as motivações para tamanha passividade política e incapacidade para se disciplinar para se isolar socialmente neste momento de pandemia.
O mais intrigante é que os índices de isolamento entre jovens, em abril, eram muito altos, mais que os mais velhos. De repente, desaba. A matéria recém publicada no UOL sugere que os jovens estão “cansados” do isolamento. Acredito que tenha algo em nossa cultura que favorece a indisciplina.

Farei uma breve ilação. Primeiro, o que dizem os sociólogos estrangeiros sobre nosso comportamento. Começarei com um conservador: Samuel Huntington. Huntington, em seu “O Choque de Civilizações”, afirma que nós, latino-americanos, não somos parte da cultura ocidental. Seríamos mais católicos que os ocidentais (no caso, EUA e Europa), mais místicos, menos racionais, mais grupais e comunitários, mais corporativos, mais indígenas e africanos. O autor foi consultor de Geisel para elaborar o processo de transição da ditadura para a democracia, uma concepção de tutela da sociedade brasileira. Huntington, portanto, adotaria um viés de hierarquização de nações e culturas a partir de sua perspectiva ideológica.

Mas, outro sociólogo, o português Boaventura Santos, festejado por correntes progressistas do Brasil, sugere uma peculiaridade da nossa cultura que, também, não é tão abonadora: a “carnavalização“. No livro “La Caída del Angelus Nuovo”, Boaventura sustenta que nossa prática política segue o ritual peculiar de nosso comportamento durante o Carnaval: transgredimos dentro da ordem. Algo realmente desconcertante. Durante alguns dias do ano, somos autorizados a nos exceder e até barbarizar.

Haveria um jeito brasileiro de driblar a ordem vigente, mas sem romper com seus limites. Algo que pesquisas recentes revelaram em relação ao pensamento de moradores de favelas, por exemplo: rejeitam ações sociais radicais, como fechamento de rodovias e ruas. Numa dessas pesquisas, que acabou gerando o livro “Um País chamado Favela”, os moradores de favela sustentam que o que melhorou suas vidas entre 2006 e 2010 não foram ações governamentais, mas a ajuda de Deus, da família e seu próprio esforço. E, mesmo na atual crise, pesquisa publicada neste ano indica que acreditam que o futuro será melhor.

Então, há na sugestão de Boaventura algo que parece ter sentido: nós, brasileiros, não rompemos com a ordem. No ideário majoritário dos brasileiros, o esforço pessoal define um futuro melhor, quase um “corpo fechado” contra maldades e intempéries. Ordem e misticismo se aliam.
Mas, há outro elemento que gostaria de sugerir aqui: nossos traços culturais indígenas que não suportam a ausência de liberdade. Não conseguimos viver cerceados de nossa movimentação e autodeterminação. Não nascemos para uma disciplina rígida.

No ritual couvade, os homens indígenas, após o parto de seu filho, perdem, por alguns momentos, sua liberdade para serem obrigados a sentir o que as mulheres sofreram em termos de cerceamento de sua liberdade, durante 9 meses. Depois de ser lavado, o bebê vai para os braços do pai, que se deita na rede e fica de resguardo, mantendo uma dieta especial até que o cordão umbilical caia. É ele quem recebe as visitas e os cumprimentos pelo nascimento do filho, enquanto a mulher retoma a rotina diária. O que quero destacar deste ritual é a importância da liberdade na cultura indígena. Algo vital.

Ora, nossa indisciplina para o resguardo talvez tenha algum paralelo com esta cultura de valorização da liberdade e do livre-arbítrio. Daí a dificuldade para pensarmos à longo prazo.

São hipóteses explicativas para algo que impressiona: o que faz brasileiros se arriscarem, arriscarem a sua vida e de seus amigos e familiares, numa crença fanática, como se protegidos pela Oração de São Jorge, cujo trecho finaliza esta elucubração:

Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.”