Vacinas, uma questão de ordem mundial – uma entrevista com José Gomes Temporão sobre covid-19

entrevista de Mônica Tarantino para o Medscape com José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)

Na terça-feira (16), o Brasil bateu novamente o próprio recorde de mortes por covid-19, com 2.798 óbitos em 24 horas. Neste momento, a vacinação em massa é a única forma possível de conter a disseminação rápida da doença e o surgimento de “variantes de atenção” do SARS-CoV-2. No entanto, a imunização segue lenta no Brasil, que paradoxalmente conta com um dos maiores e mais eficientes programas de vacinação em massa do mundo.

Nesta entrevista ao Medscape, o médico sanitarista Dr. José Gomes Temporão, ex-ministro da saúde (2007 a 2011), examina a questão do acesso às vacinas olhando para o futuro. O ex-ministro participou ativamente dos debates sobre a reforma sanitária que levaram à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988. Para ele, a construção de mecanismos mais eficientes e equânimes de acesso às vacinas, o bem mais escasso do planeta neste momento, é uma questão fundamental e inadiável, e disso depende a sobrevivência de milhares.

De que maneira as conhecidas diferenças no acesso a medicamentos estão interferindo na capacidade dos países de adquirir vacinas contra a covid-19?

Dr. José Gomes Temporão: No caso específico da covid-19, como não existem medicamentos para o tratamento da doença, a não ser os medicamentos disponíveis para as pessoas internadas, a questão mais central é a vacina. Desde o início da pandemia, há um ano, cerca de 16 países ricos reservaram o equivalente a 60% das doses de vacinas anticovídicas que ainda seriam produzidas no mundo. Por conta dessas diferenças brutais de acesso aos imunizantes, alguns estudos jogam para 2024 a perspectiva de se alcançar uma cobertura vacinal em termos globais. Nesse aspecto, o Brasil está numa situação singular e um pouco paradoxal. Nós temos o melhor programa de vacinação do mundo e uma estrutura fabril que nos permite garantir 300 milhões de doses de vacina ao ano para o Programa Nacional de Imunizações (PNI) produzidas pelo Instituto Butantan e pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Assim, o Brasil é um dos poucos países no contexto global que tem uma capacidade produtiva própria. Ao mesmo tempo, essa capacidade produtiva interna não nos dá a autonomia de desenvolver todas as etapas de produção das vacinas. Isso vale para o Instituto Butantan, que, em parceria com a Sinovac Biotech, produz a vacina CoronaVac a partir de uma plataforma tecnológica tradicional de vírus inativado, largamente dominada no mundo inteiro e que já é empregada para fabricar a vacina da gripe, que tomamos todos os anos; e também para o Bio-Manguinhos, que optou por uma plataforma inovadora para fabricar a vacina Oxford/AstraZeneca. É a primeira vacina que usa a tecnologia de vetor viral, no caso um adenovírus de chimpanzé. Isso traz a possibilidade de que, ao final processo de transferência de tecnologia, a plataforma da Fiocruz possa ser útil para desenvolver vacinas para outras doenças, o que é muito interessante. O problema todo é que, neste momento, os princípios ativos de ambas as vacinas, ainda são produzidos na China e importados. Ao mesmo tempo, no médio e longo prazo, o Brasil tem a seu favor a existência do Instituto Butantan e da Fiocruz, com duas plantas de produção de vacinas das maiores do mundo, cuja capacidade produtiva só perde para a Índia e para a China.

Como o Brasil deveria atuar para melhorar o acesso, considerando que o futuro pode nos colocar novamente diante de doenças tão devastadoras ou mais que a covid-19?

Dr. José Gomes Temporão: Neste momento de pandemia, que virou o mundo e a vida das pessoas de ponta-cabeça, o que seria normalmente uma discussão em foros internacionais e no campo das políticas nacionais de saúde sobre a desigualdade de acesso, custo de medicamentos, proteção patentária, se reveste de uma face muito mais dramática. Mas os desafios são exatamente os mesmos, não mudaram absolutamente em nada. Estamos num contexto muito específico, mas olhando a mesma face de décadas de iniquidade no acesso a medicamentos e vacinas. Veja: 50% do consumo mundial de medicamentos está nos Estados Unidos. Quando você soma o consumo dos Estados Unidos, do Japão e da União Europeia, isso chega 80% do mercado mundial de medicamentos, o que é uma coisa completamente distorcida.

Onde o Brasil errou mais na disputa global por vacinas?

Dr. José Gomes Temporão: Nós acertamos ao trazer duas vacinas para o Brasil, mas erramos em várias dimensões. Primeiramente, na nossa adesão ao mecanismo COVAX Facility, podíamos ter optado por fazer uma pré-reserva de doses para imunizar até 30% da população brasileira, mas não fizemos isso. Nós escolhemos fazer a reserva de doses para apenas 10% da população brasileira. No primeiro momento, inclusive, o Brasil não aderiu à COVAX Facility. Entrou tardiamente e fez uma escolha errada. Hoje poderíamos ter acesso a um número muito maior de doses.

Não aderir à proposta da Índia e de outros países por um imunizante com licenciamento voluntário foi um dos nossos erros?

Dr. José Gomes Temporão: Não há dúvida.Eu critico o Brasil não ter aderido à proposta apresentada pela Índia e por um conjunto de países em desenvolvimento de suspensão das patentes de vacinas anticovídicas na Organização Mundial do Comércio (OMC), porque é muito importante levantar esse tema e buscar soluções alternativas. O Brasil jamais estaria fora dessa discussão em outro contexto. Temos uma tradição larguíssima, do ponto de vista da saúde global, de sempre estarmos alinhados com iniciativas de acesso e equidade. Mas, infelizmente, o governo brasileiro se omitiu em relação a essa questão. A ideia seria fazer um levantamento da capacidade global instalada e de como ela é utilizada. Os laboratórios detentores de patentes autorizariam o uso dessa produção em larga escala e, com isso, o acesso aumentaria muito. Foi uma iniciativa política para colocar a questão do acesso às vacinas em discussão no cenário das Nações Unidas e em foros internacionais e fazer um enfrentamento distinto disso, trabalhando no sentido de transformar o acesso à vacina e de entender os imunizantes como um bem público.

Por que o mundo não leva adiante a ideia de um imunizante em larga escala, com licença voluntária contra a covid-19, se há escassez de vacinas e os cientistas dizem que o vírus só desaparecerá se for controlado em todos os países?

Dr. José Gomes Temporão: Vamos lá. Quer saber os problemas dessa proposta? Do ponto de vista político, ela é irretocável, e precisamos trabalhar cada vez mais nisso. A questão é onde estão situados os laboratórios para produzir o volume suficiente de vacinas licenciadas e com patente liberada voluntariamente. O problema é que as fábricas que reúnem essas condições estão instaladas em pouquíssimos países, que também têm interesses comerciais em colocar as suas próprias vacinas no mercado, como a Índia, a China e o Brasil. Inclusive assinamos contratos de transferência com dois laboratórios desses países, que precisam ser cumpridos. Mas a questão que eu coloco aqui é a seguinte: Vamos considerar que se estabeleça um grande pacto nas Nações Unidas e a farmacêutica AstraZeneca dê seu ok para a vacina ser produzida onde for possível. Eu pergunto: quem tem condições de fabricar esta vacina moderníssima, até agora única no mundo, mesmo que o detentor da patente autorize? Simplesmente ninguém. Onde é que nós fabricaríamos a vacina da Pfizer, que usa uma tecnologia revolucionária, o RNA mensageiro (RNAm)? Ninguém domina isso, só a Pfizer e a Moderna, que também desenvolveu uma vacina de RNAm. Já a vacina produzida pelo Butantan, a CoronaVac, de vírus atenuado, poderia ser produzida numa escala muito maior. Há muitas plantas no mundo com a tecnologia de vacinas com vírus inativado. Mas, quanto às vacinas modernas, seria totalmente irreal apostar que uma proposta como essa iria prosperar. Por isso, o tema envolve questões técnicas e científicas que exigem uma discussão mais ampla.

O senhor mostra que o licenciamento voluntário ou compulsório de vacinas é mais complexo do que o de medicamentos. Como foi o processo de quebra de patente do antirretroviral efavirenz em 2007, quando o senhor era ministro da Saúde?

Dr. José Gomes Temporão: O licenciamento compulsório, ou a quebra de patente, ocorreu pela primeira e única vez no Brasil durante a minha gestão no Ministério da Saúde. Naquele momento, o Brasil não concordou com os preços que o laboratório detentor da patente estava cobrando pelo medicamento antirretroviral efavirenz, importante no combate à infecção pelo vírus HIV-1, causador da aids. Nós negociamos até o final, e eles não aceitaram reduzir o preço aos níveis do que nos parecia justo. Então quebramos a patente. Mas como? Para você quebrar uma patente, primeiro é necessário garantir que as pessoas continuem a ter acesso ao medicamento. Você precisa ter um fornecedor alternativo de um genérico. Nós compramos, naquela época, um genérico indiano. Ao mesmo tempo, por engenharia reversa, a Fiocruz desenvolveu o princípio ativo do medicamento. Um ano depois que a patente foi quebrada, a própria Fiocruz verticalizou toda a produção. Ela fabricava desde o princípio ativo até o comprimido na sua forma final. E aí nós finalmente conseguimos ser 100% independentes na produção do efavirenz. Neste momento, quem produz as versões genéricas das vacinas inovadoras que estão entrando no mercado? A resposta é: ninguém.

Então, estamos numa encruzilhada?

Dr. José Gomes Temporão: Sim, e isso é lamentável. O que estamos vendo neste momento é, digamos assim, “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Em vez de termos uma estratégia coordenada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual todos se sentariam à mesa e discutiriam seriamente como fazer para que a maior parte da população do mundo tenha acesso o mais rápido possível às vacinas, na verdade o que temos são poucas iniciativas como o mecanismo COVAX Facility. Mas o que está acontecendo é que as compras dos países mais ricos estão à frente e os outros estão na fila esperando. Isso é deplorável do ponto de vista humanístico e de solidariedade internacional. E há uma questão prática – o vírus vai continuar circulando enquanto não obtivermos uma grande cobertura vacinal da população total do globo terrestre. Novas mutações podem colocar em risco as mesmas vacinas que estão sendo utilizadas hoje. Então esse é um problema muito complexo. E o triste é que não se vê nenhuma iniciativa voluntária nem da União Europeia nem dos Estados Unidos ou Japão, enfim, dos países ricos, para enfrentar para valer essa situação.

Na década de 80, a forma como o país lidou com o HIV/aids criando políticas de acesso, tornou-se um marco na saúde pública mundial. As lições dessa empreitada podem ser aproveitadas agora?

Dr. José Gomes Temporão: O enfrentamento da aids no Brasil foi um exemplo importantíssimo, e teve uma grande participação do Estado, de pesquisadores e cientistas, e movimentos sociais. Foi uma política construída “a seis mãos”. Isso valeu até recentemente, porque agora está muito fragilizada também por uma série de questões. Mas este contexto pandêmico tem singularidades. As pessoas ficam literalmente imobilizadas na sua capacidade de circular, a não ser quem precisa sair de casa hoje para ganhar o dinheiro do pão de amanhã. Isso reduz muito a capacidade de encontro e mobilização. Por outro lado, você tem o SUS e a sua capilaridade, com os conselhos municipais e o Conselho Nacional de Saúde (CNS), que têm se colocado de maneira muito firme em todo esse contexto, elaborando documentos e pressionando o Congresso Nacional. Da mesma maneira, as entidades da saúde pública, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) têm se posicionado, assim como a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e as associações de especialistas. Mas, enquanto as entidades da área médica e da saúde pública se organizaram, o Conselho Federal de Medicina (CFM) manteve até agora uma posição de não ouvir a ciência. A entidade máxima dos médicos, que zela pelo cumprimento do código de ética e do exercício profissional, estimulou a população a usar medicamentos que não funcionam. Isso é deplorável. Mas a verdade é que temos um governo pouco permeável a todo esse movimento. Estou sendo até educado, porque na verdade existe um enfrentamento, uma batalha entre esses setores e um governo que corta 35% do orçamento da ciência brasileira neste momento… Não preciso falar mais nada.

Como a sociedade pode contribuir com a luta para melhorar o acesso às vacinas anticovídicas neste momento tão complexo?

Há bons exemplos. Vou citar dois: uma coisa que pode e está sendo feita é o movimento liderado pela empresária Luiza Trajano. Ela lidera uma grande mobilização mundial de mulheres empreendedoras e empresárias, parece que são mais de 60 mil pessoas envolvidas, inclusive com recursos financeiros para realizar uma grande campanha de mídia, no sentido de garantir que até setembro deste ano toda a população brasileira esteja vacinada. Sabemos que para isso precisa ter organização, logística, infraestrutura, e isso a gente mais ou menos tem, porque são os municípios que realizam a vacinação. Mas tem que ter vacina. Da mesma maneira, um outro movimento chamado #VacinaJá envolve cientistas, artistas, personalidades e está organizando uma grande mobilização para enfrentar as fake news e os movimentos antivacina, mobilizando a população para que exija do governo o acesso à vacina.

Qual o papel da Organização Mundial do Comércio no acesso aos medicamentos?

Dr. José Gomes Temporão: A OMC discute mais as questões de direitos de propriedade intelectual e proteção patentária. A nova diretora-geral, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, que é a primeira mulher e a primeira africana a dirigir a OMC, parece ser uma pessoa progressista. Vamos esperar. O que é ruim neste contexto atual é o Brasil ter se colocado fora, porque o país sempre foi liderança nesse processo. Sempre nos aliamos à Índia, ao BRICs, à África do Sul e a outros países na busca por equidade, democracia e ampliação do acesso, do questionamento das políticas de proteção patentária rígidas. E agora estamos fora, infelizmente, por uma questão política, o que não deveria acontecer. Mas esse problema do acesso é muito complexo e absolutamente central, tanto que sempre esteve presente e agora está sendo recontextualizado. O Brasil tem interesse direto nessa discussão. Enquanto os grandes laboratórios investem nas doenças prevalentes nos países mais ricos, nós temos malária, Chagas, hanseníase e leishmaniose, entre outras doenças, para as quais até hoje não há medicamentos modernos e nem vacinas.

E qual o papel da OMS nesse debate?

Dr. José Gomes Temporão: A OMS se fragilizou muito no ano passado e perdeu um pouco da força política e capacidade de coordenar esse esforço global, embora continue sendo uma voz importante. Lembra que o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump saiu da organização e cortou fundos? Agora, com o novo presidente eleito, os Estados Unidos voltaram à OMS, mas, infelizmente, aconteceu o que temos visto ao longo das últimas décadas: parte do orçamento da OMS vem de doações de empresas e organizações sem fins lucrativos, o que acaba levando esses recursos a serem destinados sob a influência de prioridades estabelecidas fora da própria organização. Por exemplo, a Fundação Bill & Melinda Gates doa recursos à OMS e isso influencia a entidade a atuar nas quatro ou cinco enfermidades que são priorizadas pela fundação, o que equivocado. Na verdade, os recursos para a OMS deveriam ser públicos e alocados diretamente pelos tesouros dos diversos países, além das doações que se somassem a esse orçamento. Mas se nós imaginarmos que poderemos ter pela frente novas doenças, surtos e vírus como estamos enfrentando desde o ano passado, é extremamente importante ter uma OMS forte política, financeira, econômica e tecnicamente.