Editorial da ‘Saúde em Debate v. 45, n. 130’: Fome, desemprego, corrupção e mortes evitáveis: faces da necropolítica

Editorial da revista Saúde em Debate v.45 n. 130. Texto foi escrito pelas cebianas Ana Maria Costa, Maria Lucia Frizon Rizzotto e Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato

O POVO BRASILEIRO PADECE DAS AGRURAS ORIUNDAS DA ADOÇÃO DE POLÍTICAS econômicas praticadas pelo governo, que se submete aos interesses do mercado e do capital em detrimento das necessidades e demandas da população. As elites nacionais sempre foram favorecidas nos diferentes governos, mas as discretas mudanças voltadas à redução das desigualdades, ocorridas nos governos Lula e Dilma, provocaram reações a ponto de justificar o golpe institucional-midiático de 2016.

Desde o início, a gestão de Michel Temer alinhou-se aos princípios neoliberais e implementou medidas que supostamente salvariam a economia, mas muito amargas para o povo: a reforma trabalhista, que subtraiu direitos dos trabalhadores, e a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos sociais do governo federal. A insistência por esse caminho, que já vinha sendo desestimulado por instituições multilaterais, aprofundou o desemprego, a fome e as desigualdades sociais, sem provocar nenhum dinamismo na economia nacional.

Esse já era o cenário social e econômico quando a pandemia da Covid-19 se iniciou em fevereiro de 2020, ou seja, a pandemia não deve ser responsabilizada isoladamente pelas convergentes crises sanitária, econômica e política que assolam o País. Bolsonaro assumiu o comando em 2019 alicerçado na concepção de um Estado voltado a favorecer, ampliar e fortalecer o mercado, apoiado na implementação de uma política econômica fundada na redução dos gastos públicos e na privatização das empresas que compõem o patrimônio nacional. Com o desemprego crescente, um Produto Interno Bruto (PIB) inexpressivo e sem projeto para o Brasil, o governo vem claudicando desde seu primeiro ano de gestão, ao mesmo tempo que inunda a opinião pública de fake news, disseminando o ódio e a intolerância, alimentando com discursos e ideias antidemocráticas uma horda de fanáticos apoiadores que clamam pela intervenção militar e pela destruição das instituições da nossa democracia.

A pandemia e as consequências agravadoras das crises deixam marcas dolorosas. O luto das famílias de quase 600 mil vítimas, o gigantesco desemprego e a fome que atinge grande parcela da população de norte a sul do País geram desesperança e reduzem as perspectivas de futuro. Pesquisa de opinião realizada no final de 2020¹ revelou que 59% dos domicílios entrevistados estavam em situação de insegurança alimentar e que pelo menos 15% conviviam com a falta diária e constante de ter o que comer. Essa situação se agravou ao longo de 2021, uma vez que o desemprego aumentou, o auxílio emergencial foi interrompido de janeiro a abril, o valor pago foi reduzido, e a inflação está perto de 8%, sendo a elevação dos preços do grupo dos alimentos os mais representativos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)² mostram que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), indicador oficial de inflação da baixa renda, já subiu 5,9% de janeiro a setembro de 2021, em uma das maiores altas para o período nos últimos 20 anos. Uma inflação que penaliza sobremaneira os mais pobres.

A omissão, a incompetência e o negacionismo do governo federal no enfrentamento da pandemia imobilizaram o Ministério da Saúde, que não assumiu o seu papel de coordenador do Sistema Único de Saúde (SUS), não comprou vacinas, testes e insumos em tempo oportuno. Além disso, a falta de planejamento fez com que deixasse vencer a validade de vacinas, medicamentos, testes de diagnóstico, entre outros itens no valor de R$ 243 milhões, os quais serão incinerados³.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Senado Federal vem exibindo ao Brasil a radiografia grotesca da corrupção no interior do governo, envolvendo militares, gestores, empresários, religiosos e políticos que se locupletaram para enriquecer com a crise sanitária, a dor e a morte dos brasileiros. Todos os dias, vêm à luz novas denúncias que envolvem desde negociatas até a realização de ‘estudos’ com resultados encomendados para justificar o uso de medicamentos sem eficácia para a Covid-19, de interesse da presidência da República. Brasileiros seguem estarrecidos com a dimensão e a gravidade dos crimes que envolvem o presidente e que embasam e justificam os mais de cem pedidos de impeachment sistematicamente ignorados pelo presidente da Câmara Federal em seu interesse e em obediência às elites endinheiradas que comandam a política nacional e desdenham da pobreza existente no País, como bem observou Noam Chomsky em recente entrevista: “raramente vi um país onde a elite tem tanto desprezo pelos pobres como o Brasil”4.

A necropolítica do governo federal já provocou a morte de quase 600 mil pessoas pela Covid-19, milhares delas evitáveis. Hallal5 afirma que de cada cinco mortes ocorridas no Brasil por essa doença, quatro poderiam ter sido evitadas. O cálculo se baseia na mortalidade por milhão de habitantes, sendo que, no mundo, morreram 488 pessoas por cada milhão de habitantes; e no Brasil, 2,3 mil mortes por cada milhão de habitantes, ou seja, quatro vezes mais que a média mundial.

Wernek et al.6 consideram mortes evitáveis por Covid-19 aquelas que não ocorreriam se fossem adotadas ações populacionais e ações em serviços de saúde. As ações populacionais se constituem de medidas para redução dos níveis de transmissão da doença com consequente redução do número de casos e mortes, como: fechamento provisório de atividades econômicas, distanciamento físico, redução da mobilidade, limitação de aglomerações, controle de portos, aeroportos e fronteiras. As ações em serviços de saúde compreendem medidas para redução da gravidade da doença e a morte, compreendidas por cuidados ambulatoriais e hospitalares. As medidas para redução da probabilidade de infecção compreendem tanto ações populacionais como ações de serviços de saúde: proteção individual, rastreamento de casos, rastreamento prospectivo e retroativo de contatos, isolamento, quarentena e vacinas.

Certamente, o desrespeito intencional do governo federal à ciência, às recomendações internacionais e às autoridades sanitárias; a ausência de coordenação nacional no enfrentamento da pandemia, a demora na aquisição de vacinas – único medicamento capaz de prevenir mortes por Covid-19 – acumulam-se como responsáveis pelas centenas de milhares de mortes evitáveis ocorridas pela doença no País.

Passados oito meses após o início da vacinação, em 17 de janeiro de 2021, apenas 35% da população está completamente vacinada com duas doses do imunizante ou com dose única, e 67,3% tomaram pelo menos uma dose da vacina7. Isso está muito aquém do desejado e da capacidade que o SUS tem de realizar campanhas de vacinação em massa no Brasil. A lentidão da vacinação mantendo a baixa cobertura vacinal facilita a propagação do vírus, a emergência de novas variantes e aumenta ainda mais o número de mortes evitáveis. Embora, neste momento, haja uma clara redução da taxa de contaminação e das mortes por Covid-19, resultante da vacinação, segue preocupante a disseminação da variante Delta em alguns estados. A recomendação da terceira dose ou dose de reforço especialmente aos idosos e a extensão da aplicação das vacinas aos adolescentes e infantes estão no centro de embates e joguetes políticos entre governos federal e estaduais.

Nesse cenário, o País se consolida como um dos países que mais sofreram os impactos da pandemia sem qualquer estratégia para evitar ou proteger a população. Reconstruir o Brasil irá requerer o envolvimento e o trabalho de todos, particularmente das forças democráticas que reconhecem um destino digno ao povo e à nação brasileira.

A pandemia comprovou a importância do SUS, mas ele permanece ameaçado pelas políticas neoliberais e pela sanha dos que querem se servir dele para enriquecer. As necessidades de saúde vão aumentar pelos efeitos deletérios da crise social e econômica, pelo represamento das medidas de saúde durante a pandemia e pelas sequelas ainda desconhecidas decorrentes da Covid-19. Precisaremos de um SUS mais forte, com mais recursos e mais presente na vida da população. Contudo, permanece forte a proposta de que há que se controlar os gastos públicos e reduzir o tamanho do Estado. A população sabe bem o que é controlar gastos e não defende dispêndio, mas, com certeza, defende que tamanho bom de Estado é aquele no qual cabem o bem-estar e os direitos dos cidadãos. É urgente acabar com o teto de gastos, que já se mostrou falido. Para mais recursos, precisamos de uma reforma tributária que proteja o trabalho e a produção e que cobre dos ricos e do capital improdutivo.

Para a comunidade do campo da saúde, fica o desafio de retomar as bases da reforma sanitária em ação política permanente que aprofunde a consciência coletiva com valores da democracia e da importância dos direitos sociais e da saúde.