Élida Graziane: ‘O País parece ter buscado lenta e implicitamente renunciar ao pacto constitucional civilizatório’

Entrevista de Inês Costal e Patrícia Conceição a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP), Élida Graziane, publicada originalmente no site Análise Política em Saúde.

Financiamento de direitos fundamentais, orçamento público, políticas públicas e controle da Administração Pública são alguns dos temas de pesquisa e atuação da nossa entrevistada do mês de outubro: a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP), Élida Graziane. No mês em que a Constituição Federal de 88 e o direito à saúde completam 33 anos no Brasil, Élida pondera que o cenário não é de comemorações, já que “o país parece ter buscado lenta e implicitamente renunciar ao pacto constitucional civilizatório”, optando pela “trajetória de paulatina erosão das garantias de financiamento suficiente dos direitos fundamentais”. Doutora em Direito e professora do Curso de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), Élida discute questões cruciais, entre elas a importância de o debate sobre as finanças públicas refletir também as despesas financeiras e as opções de arrecadação; o balanço dos cinco anos da Emenda Constitucional 95, marcado pela “perenização das nossas iniquidades fiscais”; as repercussões do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595 para o financiamento do SUS; e “o trato errático dos recursos que deveriam ser destinados para o enfrentamento da pandemia, sobretudo por parte do governo federal”, revelado em relatório produzido para a CPI da Covid no Senado. Boa leitura!


Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Neste mês de outubro, a Constituição de 1988 e o direito à saúde completam 33 anos. Atualmente, qual a situação do país em relação ao modelo adotado pela Constituição Cidadã?

Élida Graziane: Em 5 de outubro completaremos 33 anos da Constituição de 88 e o cenário, infelizmente, não é de celebração. Ao longo dessas mais de três décadas, o país parece ter buscado lenta e implicitamente renunciar ao pacto constitucional civilizatório e abdicado, por conseguinte, do seu compromisso para com a máxima eficácia dos direitos fundamentais. Nesse sentido, não haverá comemoração porque deixamos de resguardar a implementação a mais ampla possível da CF/1988.

Nós temos vivido um cenário de desmonte gradual e continuado dos serviços públicos e das suas respectivas garantias de custeio no ciclo orçamentário. Especialmente desde a Emenda 95 de 2016, o Brasil optou pela trajetória de paulatina erosão das garantias de financiamento suficiente dos direitos fundamentais, sobretudo a partir da perda da relação de proporcionalidade da despesa com a capacidade arrecadatória estatal. Significa dizer: ainda que a economia volte a crescer e o governo amplie a arrecadação, a tendência do teto vintenário é de redução do custeio das políticas públicas asseguradoras da consecução dos direitos sociais. Fiscalmente perdemos a garantia de implementação progressiva dos direitos fundamentais. Eu digo isso, em especial, tendo em mira a retirada da relação de proporcionalidade com a arrecadação governamental dos pisos federais em saúde e educação. A isso se soma o constrangimento consistente para o custeio dos demais direitos sociais que o teto de despesas primárias impôs.

Exemplificam os vazios assistenciais na oferta estatal de direitos fundamentais, à luz do projeto de lei de orçamento para 2022, tanto a fila de espera do Bolsa Família, quanto a insuficiência de custeio do censo decenal (contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal). Interessante, por sinal, notar que o próprio IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] emitiu comunicado dizendo que a previsão orçamentária para realizar o censo em 2022 foi feita de forma deficitária em R$ 300 milhões. Um terceiro e último exemplo reside na dotação para a compra de vacinas para 2022, aquém do montante necessário até mesmo em relação ao montante de 2019, portanto, defasada monetariamente até mesmo em face do cenário pré-pandemia. O patamar previsto para a compra de vacinas no ano que vem é inferior à demanda de imunização da população brasileira não só em relação à prevenção da Covid-19, mas também coloca em risco a gestão de todas as demais vacinas oferecidas ordinária e historicamente no âmbito do SUS.

Vivemos uma trajetória de constrangimento consistente do financiamento dos direitos sociais, mas não apenas, porque o limite global de despesas primárias repercute também na nossa capacidade de promoção da ciência e tecnologia, de proteção ambiental, entre outras relevantes áreas de atuação governamental.

É iníqua essa lógica de apenas fazer ajuste fiscal sobre despesas primárias sem qualquer contenção ou enfrentamento da regressividade tributária, tampouco há balizas mínimas para as despesas financeiras. Enquanto a fila de espera do Bolsa Família é ampliada dramaticamente, acumulam-se renúncias fiscais majoritariamente concedidas por prazo indeterminado, sem adequada avaliação de entrega das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão e sem suficiente estimativa de impacto nas metas fiscais. Em igual medida, inexiste controle que imponha ônus argumentativo, balizas mínimas para o montante de despesas financeiras.

Em síntese, no balanço de 33 anos da Constituição de 1988 e, por conseguinte, também do SUS, nós temos o risco consistente de quebra do piso da proteção social para manter – eu diria, inclusive, de forma fictícia – um teto de despesas primárias que, na verdade, desconstrói nossos pilares civilizatórios. É como se a gente abdicasse de ter um pacto constitucional civilizatório, a pretexto de cumprir uma lógica de ajuste fiscal seletivo, iníquo, que na verdade nos traz para um cenário pré-constitucional, um cenário que reproduz a desigualdade escravocrata.

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