Revista Saúde em Debate, Vol. 42, Ed. 118

Eleic?o?es e novos governos: perspectivas para a democracia e para a sau?de

Editorial

O PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO DE 2018 ocorre sob um clima de extrema tensa?o poli?tica e de fragilidade das instituic?o?es democra?ticas. As eleic?o?es que definira?o a preside?ncia da Repu?blica, os governos estaduais, o senado federal e as ca?maras legislativas exigem que o Centro Brasileiro de Estudos de Sau?de (Cebes), mais uma vez, manifeste-se em defesa da democracia, dos direitos humanos e do direito universal a? sau?de, garantidos ha? 30 anos pela Constituic?a?o Federal.

Em sua mais recente tese, o Cebes analisa o contexto global do capitalismo e suas tenso?es com a democracia. As relac?o?es entre o capitalismo contempora?neo e as democracias tem sido objeto de estudo de diversos autores que convergem quanto a? ameac?a da forc?a do capital em detrimento dos interesses coletivos1.

No caso brasileiro, essas tenso?es se expressam desde o golpe de 2016, quando, sob pretexto de irregularidades cometidas pelo governo da Presidenta Dilma, uma agenda na?o escolhida pelo voto popular foi implementada de forma abrupta, veloz e com amplo apoio de setores conservadores. O argumento de que o Pai?s sofreu um golpe pode ser confirmado por, ao menos, quatro aspectos nada comuns em democracias presidencialistas consolidadas. (1) O enta?o vice presidente torna pu?blica sua reprovac?a?o a? presidenta eleita e ao governo do qual faz parte, mas na?o renuncia; (2) seu partido (Movimento Democra?tico Brasileiro – MDB) se retira formalmente do governo; (3) apo?s a retirada da presidenta Dilma, Temer e seu partido assumem o governo e incorporam membros da oposic?a?o derrotada nas eleic?o?es; e (4) iniciam um programa que na?o foi o aprovado nas eleic?o?es da chapa Dilma-Temer em 2014.

O programa na?o aprovado nas eleic?o?es foi, na verdade, o objetivo do golpe. A aprovac?a?o da Emenda Constitucional que congelou os gastos por 20 anos, a reforma trabalhista, a privatizac?a?o de recursos e setores estrate?gicos e a reforma da previde?ncia (essa ainda na?o aprovada, mas que deve ser retomada neste fim de governo) sa?o medidas que dificilmente seriam apoia- das pelo voto, dai? a velocidade com que foram apresentadas e aprovadas.

Os apoiadores do golpe apostaram no governo Temer e na recuperac?a?o econo?mica como seu principal capital poli?tico para as eleic?o?es de 2018. Contudo, a recuperac?a?o prometida para os primeiros meses de 2017 jamais chegou, o desemprego aumentou e a instabilidade poli?tica e econo?mica fragilizou a posic?a?o do Brasil no cena?rio internacional. Aliado a isso, as graves denu?ncias de corrupc?a?o contra o presidente (que se tornou o mais impopular da histo?ria da Repu?blica) e contra va?rios poli?ticos associados ao golpe inviabilizou a candidatura preferencial desse grupo.

No outro espectro poli?tico, o Partido dos Trabalhadores (PT) construiu uma estrate?gia de denu?ncia do golpe, das medidas impopulares do governo e da prisa?o ilegal do ex-presidente Lula, mantendo sua candidatura ate? o u?ltimo momento, em uma manobra arriscada, mas que garantiu a transfere?ncia de votos para seu candidato, colocando-o no segundo turno. Tambe?m, nesse espectro poli?tico, esta?o outras duas candidaturas que analistas consideram como ex- pressa?o da divisa?o da centro-esquerda no Brasil.

A novidade nessas eleic?o?es, todavia, e? a presenc?a de um candidato vinculado a um pequeno partido, de extrema direita, com forte prefere?ncia dos eleitores das classes me?dia e alta, que ale?m de assumir abertamente posic?o?es conservadoras de cunho moralista e fascista (o que nunca foi comum em candidaturas a? preside?ncia no Pai?s), associa-se a uma agenda econo?mica ultraliberal. Essa associac?a?o e? ainda mais incomum; e, desse ponto de vista, talvez o Brasil esteja apresentando uma singularidade na atual conhecida expansa?o da direita no mundo. Atra?s das posic?o?es miso?ginas, racistas e homofo?bicas do candidato, que tomam a mi?dia e os embates pro? e contra nas redes sociais, esta?o propostas radicais de privatizac?a?o e de reduc?a?o do Estado. Sa?o essas u?ltimas que podem aproximar esse candidato aos setores conservadores tradicionais que na?o conseguiram eleger candidatos pro?prios. Na verdade, sob alegac?a?o de impedir a ‘volta’ do PT, a questa?o central e? a agenda econo?mica.

Vladimir Safatle2, em recente palestra, aponta que os atores que apoiam o candidato de extrema direita (e apoiaram a ditadura militar) sa?o o agronego?cio, as igrejas conservadoras, a mi?dia conservadora e o empresariado nacional dominado pelo capital financeiro. Na?o e? improva?vel que esses atores possam cooptar tambe?m setores democra?ticos da burguesia nacional e as classes me?dias que cultivam o ‘o?dio ao PT’, mesmo que recusem a pauta moralista e retro?grada do candidato.

A polarizac?a?o, assim, antes de ser pro? ou contra PT, e? pela direc?a?o que tomara? a democracia e o projeto de desenvolvimento nacional.

O Cebes defende um projeto na?o liberal para o Pai?s que inclua a sau?de no plano de desenvolvimento e rompa o insulamento existente hoje do setor. Para que ocorram melhorias nas condic?o?es de sau?de da populac?a?o, as transformac?o?es devem ultrapassar o setor sau?de stricto sensu a partir de uma concepc?a?o alargada de seguridade social, envolvendo a previde?ncia social, assiste?ncia social, educac?a?o, seguranc?a alimentar, habitac?a?o, urbanizac?a?o, saneamento, meio ambiente, seguranc?a pu?blica, emprego e renda. Sob essa perspectiva, a sau?de, enquanto direito, podera? instituir-se como fator ba?sico para a cidadania e parte inerente e estrate?gico da dimensa?o social do desenvolvimento.

Distintas dimenso?es da inserc?a?o da sau?de no projeto de desenvolvimento nacional merecem ser destacadas. E? certo que, sob a dimensa?o econo?mica e tecnolo?gica, a sau?de e? responsa?vel por mais de 8% do Produto Interno Bruto (PIB); e em func?a?o dela, articulam-se a gerac?a?o e a difusa?o de tecnologias avanc?adas. Por outro lado, a sau?de representa uma dimensa?o democratizadora do desenvolvimento por objetivar a equidade do direito social. Finalmente, a sau?de pode representar fator de desenvolvimento regional ja? que sua base territorial de organizac?a?o dos servic?os condiciona e apoia o desenvolvimento3. Esse e? o projeto na?o liberal, democra?tico articulado ao desenvolvimento nacional que a sau?de representa e que o Cebes defende.

A reafirmac?a?o de uma agenda na?o liberal para a sau?de requer um conjunto de mudanc?as na relac?a?o entre sau?de e economia e em suas interfaces. Tal agenda deve ter como compromisso a totalidade dos princi?pios e?ticos, poli?ticos e organizacionais do Sistema U?nico de Sau?de (SUS) e a ruptura com o modelo de sau?de adotado e implementado desde o peri?odo explicitamente neoliberal que se limita a responder a um grupo restrito de problemas, por meio da oferta de servic?os, alimentando as necessidades do mercado4.

O Cebes defende o direito universal a? sau?de, na?o somente como acesso a? assiste?ncia me?dica, mas tambe?m como parte de um modelo de Estado e de poli?ticas pu?blicas que promovam a justic?a social, em que as desigualdades sejam enfrentadas por meio de um conjunto de direitos mantidos e garantidos pelo Estado. O SUS e? parte desse projeto e tem-se mostrado efetivo na reduc?a?o das desigualdades. Por ser um projeto ta?o ambicioso de democratizac?a?o mediante os direitos sociais e? que o SUS tem sido afrontado e ameac?ado desde a sua criac?a?o e jamais foi tratado como parte de um projeto de desenvolvimento.

Sau?de universal e integral na?o sa?o iluso?es, mas uma escolha baseada em evide?ncias documentadas e experie?ncias reais. Ha? farta evide?ncia de que os sistemas pu?blicos e universais sa?o mais eficazes e eficientes. Contudo, por aportar um volume significativo de recursos, faz com que a sau?de seja objeto constante de disputa de interesses econo?micos. O discurso e? de que a privatizac?a?o e? uma alternativa para a reduc?a?o dos gastos. Entretanto, os pai?ses que aumentaram a participac?a?o privada na?o reduziram gastos. Ao contra?rio, aumentaram os gastos pu?blicos, os gastos diretos da populac?a?o e na?o mostraram impacto positivo nas condic?o?es de vida e sau?de das pessoas.

O Cebes sempre sustentou que a sau?de e? um direito efetivo, promovendo seguranc?a para toda a populac?a?o, sem qualquer distinc?a?o. Para isso, e? fundamental que a sau?de seja tambe?m parte do desenvolvimento econo?mico, com investimentos em pesquisa, insumos e fa?rmacos para atendimento a?s demandas da populac?a?o. O fortalecimento da capacidade institucional do Estado e? essencial para a garantia da sau?de como direito.

A luta e a mobilizac?a?o por mudanc?as sa?o imprescindi?veis. Para os novos governos que assumira?o em janeiro de 2019, tencionaremos pela defesa do direito a? sau?de e a consolidac?a?o do SUS tal como formulado e orientado pela Constituic?a?o Federal. Que planejem seus gastos e realizem investimentos tendo as necessidades de sau?de da populac?a?o como foco, e na?o os interesses privados ou poli?ticos. Que respeitem a populac?a?o e incorporem sua participac?a?o nos sistemas locais. Que respeitem os trabalhadores da sau?de, sem colocar os interesses corporativos no lugar dos da populac?a?o.

Essa mobilizac?a?o deve estender-se ao processo de mobilizac?a?o da XVI Confere?ncia Nacional de Sau?de convocada para 2019 e que constitui importante oportunidade de incluir a sau?de no projeto nacional de desenvolvimento. A sau?de pu?blica e universal e? um projeto via?vel. Adota?-lo e? adotar o desenvolvimento, a cidadania democra?tica e garantir um futuro mais justo para as novas gerac?o?es.

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato
Diretora de poli?tica editorial do Cebes

Ana Maria Costa
Diretora executiva do Cebes

Maria Lucia Frizon Rizzotto
Editora-chefe da ‘Sau?de em Debate’

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