Fidelis: ‘Como membro da comissão organizadora da 17ª, pude observar a potência dos movimentos da sociedade civil organizada’
O presidente do Cebes, Carlos Fidelis, conversou com Inês Costal e Patrícia Conceição para o portal Observatório de Análise Política em Saúde. Na conversa, Fidelis falou sobre a 17ª Conferência Nacional de Saúde. “Como conselheiro nacional de saúde, delegado e membro da comissão organizadora da 17ª, pude observar, tanto na etapa de construção quanto na sua realização, a efervescência, a alegria e a potência dos movimentos da sociedade civil organizada. Fui testemunha do prazer de pertencer e experimentar a convivência, durante todo o processo, entre diferentes em espaços onde todos tiveram direito à voz. Espaços em que a violência não prosperou, abrindo oportunidades de diálogos entre visões distintas“.
Ele também falou sobre e a atuação da entidade no Brasil de hoje, as principais demandas colocadas para o governo Lula, o poder do SUS diante de crises econômicas e como a saúde pode ser estruturante para o desenvolvimento e fomento à esperança no país. Veja a entrevista a seguir.
“A 17ª Conferência Nacional de Saúde é, sem dúvida alguma, um momento importante de um processo de lutas que envolve redistribuição de renda e partilha do orçamento público segundo as necessidades da população. Uma partilha que considere sempre os direitos das minorias vulnerabilizadas relegadas para segundo plano nas disputas por recursos e atenção por parte do Estado”. A afirmação é do presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Carlos Fidelis, entrevistado do mês de julho do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS). Ao fazer um balanço da 17ª CNS, realizada entre os dias 2 e 5 deste mês, Fidelis, que também é conselheiro nacional de saúde, delegado e integrante da comissão organizadora, destaca como a conferência expôs a capacidade de mobilização da saúde e como o setor é um ator relevante na construção da democracia. Historiador, mestre em Saúde Pública, doutor em Políticas Públicas e Estratégias de Desenvolvimento e pesquisador do Observatório História e Saúde (Fundação Oswaldo Cruz – Organização Panamericana de Saúde), nosso entrevistado fala também sobre a atuação do Cebes no atual cenário político e social do país, as principais demandas colocadas para o governo Lula, o poder do SUS diante de crises econômicas e como a saúde pode ser estruturante para o desenvolvimento e fomento à esperança no país. Boa leitura!
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): A 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada entre os dias 2 e 5 deste mês, reuniu mais de 4 mil delegados em Brasília para debater diretrizes e propostas enviadas pelas conferências estaduais e Livres que ocorreram nos últimos meses. O evento contou com a presença da ministra da Saúde Nísia Trindade, que frisou que o Ministério da Saúde é do SUS, e do presidente Lula, que destacou a importância das Conferências de Saúde realizadas no país e garantiu a permanência de Nísia no cargo em meio a movimentações do Centrão pela gestão da pasta. Qual balanço você faz desta edição da Conferência?
Carlos Fidelis: A primeira coisa que considero importante destacar é o trabalho do Conselho Nacional de Saúde [CNS], responsável pela organização da 17ª. Um conselho que não foi extinto pelo governo anterior por estar protegido por lei. Um organismo que no período mais duro de ataques à cidadania – que teve início com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 – se manteve como uma trincheira de defesa da vida, da democracia e da civilização. Uma entidade em sintonia com os interesses da população e que referendou e assumiu as conferências livres como etapas preparatórias para a 17ª. Um órgão a serviço da participação e do controle social que realiza um trabalho fundamental na defesa do Sistema Único de Saúde, buscando sempre ir além de uma visão setorial e insuficiente de um conceito biomédico de saúde, que não reconhece plenamente e não se compromete com a resolução dos condicionantes capazes de garantir vida digna e cidadania de fato para todos.
Não estamos falando de um conselho impermeável aos desafios da inclusão e da implantação de uma democracia de alto impacto. Pelo contrário, estamos falando de um conselho que compreende que a sua missão se confunde com a construção de um novo modelo de sociedade, com a construção de um país que não siga os rumos deletérios do neoliberalismo. Um país que reconheça o Estado como um instrumento do processo civilizatório e da promoção de uma cidadania efetiva que alcance toda a sociedade, sem exceções. Um país que adote um modelo de desenvolvimento inclusivo, solidário, sustentável, democrático e soberano. Foi com base nesse espírito que o CNS trabalhou para construir a 17ª.
Vale destacar também que a 17ª Conferência Nacional de Saúde não pode e não deve ser reduzida a um evento. Na realidade, ela integra um processo que teve início bem antes da etapa nacional e prossegue para além do seu encerramento no dia 5 de julho.
Como marco do início desse processo temos a realização, em agosto de 2019, em situação bastante adversa, da 16ª [conferência] que, contra a vontade do governo Bolsonaro, reuniu um número expressivo de pessoas, movimentos sociais e entidades contrárias às nocivas políticas neoliberais e ao reacionarismo violento e excludente de um governo de extrema-direita antinacional e distante dos interesses da maioria da população.
Cabe lembrar que foi na 16ª que surgiu a ideia de conferências livres, ou seja, aquelas organizadas pela sociedade para além da interferência direta das instâncias oficiais dos estados e municípios. Conferências organizadas por segmentos de usuários, categorias profissionais, pesquisadores e movimentos sociais espalhados pelo país, que marcaram forte presença na 17ª.
Outro acontecimento importante que antecede a 17ª foi a criação, em maio de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, da Frente Pela Vida, uma frente combativa que reuniu entidades históricas do Movimento da Reforma Sanitária e outras organizações (incluindo sindicatos, o apoio de movimentos como MST e de partidos de oposição ao governo Bolsonaro) para combater o negacionismo e o projeto genocida de um governo temerário. Um governo que deliberadamente optou pela exposição da população ao risco da morte sob o pretexto de alcançar uma inatingível imunização de grupo em um contexto de pouco conhecimento sobre o agente causal da doença. Uma exposição responsável por milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Uma exposição que facilitou a circulação de um vírus letal e a sua mutação, como aconteceu com a variante de Manaus.
Lembro que foi a Frente Pela Vida que lançou, em 7 de abril de 2022, uma mobilização pela realização de conferências livres em todo o país. O movimento incluiu a realização, em 5 agosto de 2022, da Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde, que contou com a participação do então candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Lula se comprometeu com a agenda de lutas apresentada pelos conferencistas.
Naquele momento a Saúde mostrou, mais uma vez, que tinha lado e não era o lado das forças protofascistas reunidas em torno de Bolsonaro. Ali a Saúde mostrou que podia mobilizar a sociedade que se apresentava dividida e influenciada pela propagação de mentiras em escala jamais vista. Uma força que se somou aos sobreviventes da pandemia que se engajaram na defesa da democracia. Uma força que se somou ao trabalho e ao potencial de luta verificado nas comunidades em resposta à Covid-19. Uma força que foi chamada a intervir de forma propositiva no debate eleitoral.
Mobilização e intervenção no debate público foram metas perseguidas no decorrer desse processo. A conferência, é bom mencionar, teve sua data antecipada para poder influenciar na construção da proposta orçamentária de 2024. Uma antecipação que permitiu que suas propostas fossem levadas para as reuniões do Plano Plurianual Participativo. Estamos falando de um número de propostas e diretrizes situado na casa dos milhares. Um número que requisitou um grande esforço de síntese para se chegar a formulações estruturantes, como ocorreu com o trabalho realizado pela Comissão de Orçamento e Finanças do Conselho Nacional de Saúde no pós conferência.
No meu entendimento, a 17ª Conferência Nacional de Saúde é, sem dúvida alguma, um momento importante de um processo de lutas que envolve redistribuição de renda e partilha do orçamento público segundo as necessidades da população. Uma partilha que considere sempre os direitos das minorias vulnerabilizadas relegadas para segundo plano nas disputas por recursos e atenção por parte do Estado.
A saúde, vale frisar, se constitui como esfera fundamental de organização da vida em sociedade. O bem-estar e a garantia da vida estão na base do contrato que justifica a existência do Estado. Não podemos conviver com o estelionato que representa a quebra desse contrato. A grande dívida é a dívida social. A outra, a dívida pública, se transformou em um mecanismo de drenagem dos recursos públicos para os cofres dos setores rentistas.
Nessa perspectiva, o debate sobre o direito universal e inalienável à saúde está íntima e indissoluvelmente ligado ao projeto de país que pretendemos construir. A saúde deve, portanto, estar no centro e nas prioridades do modelo econômico a ser adotado no país em substituição a uma economia excludente e predatória que não serve à vida. A saúde deve ser alçada à condição de força motriz de uma dinâmica econômica socialmente justa e ambientalmente sustentável, como prevê o conceito de Complexo Econômico e Industrial da Saúde, que pretende usar o poder de compra do Estado para obter transferências de tecnologias e alavancar a indústria nacional, gerando empregos, renda e receitas no país. Deve ser vista também como parâmetro de aferição do desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem condições dignas para todos. Desenvolvimento que não inclui concentra renda, oprime, espalha miséria e fragiliza o país diante das crises que, como se sabe, estão se tornando mais frequentes e multifacetadas. As pandemias estão sendo, cada vez mais, compreendidas como sindemias, conceito criado na década de 1990 por Merrill Singer que vem sendo atualizado em muitas análises.
Vale lembrar que a 17ª teve como eixos orientadores dos debates os seguintes temas: a) O Brasil que temos. O Brasil que queremos; b) O papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas; c) Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia e d) Amanhã será outro dia para todas as pessoas. Eixos que demonstram a intenção de posicionar e relacionar a saúde a um debate amplo que envolve pensar o país, a inclusão, os movimentos sociais como atores e o controle social como fundamentais para a construção de um amanhã que contemple a todos.
Por outro lado, a realização das conferências livres – uma novidade que veio para ficar – teve como objetivo bem-sucedido ampliar a participação da sociedade civil organizada diante de governos locais conservadores orientados pela perspectiva restrita, comercial e excludente do neoliberalismo e da visão regulada por constrangimentos legais da gestão, geralmente segmentada e premida por comprometimentos políticos e orçamentários. As conferências livres e os seus delegados garantiram a presença de temas importantes muitas vezes deixados de lado em conferências estaduais e municipais organizadas sob a influência de governos situados à direita do espectro político.
Cabe observar que a 17ª ocorreu logo após um período de distopia. Um período balizado pela forte presença da tristeza, da desesperança, da miséria e da violência. Ocorreu após uma vitória espetacular das forças da civilização contra as hostes da barbárie. Espetacular, pois lutamos uma guerra desigual contra inimigos poderosíssimos e capazes de tudo para manter o poder. Cabe mencionar, inclusive, as tentativas de golpe como o episódio do 8 de janeiro, oportunidade em que a extrema-direita mostrou a sua verdadeira face. Uma face feia, triste, tacanha, estúpida e violenta.
Realizada após a pandemia de Covid-19 e de um governo retrógrado que hoje enfrenta – além das acusações de golpe contra a democracia – graves acusações da prática de genocídio, a 17ª Conferência Nacional de Saúde demonstrou que a saúde tem uma forte capacidade de mobilização da cidadania e que a área conta com a pujança da sociedade civil organizada. Uma presença que não pode ser ignorada como ator de relevo na construção de uma democracia de fato. Uma democracia capaz de impactar e alterar positivamente o quadro de desigualdade que marca nossa história.
Desigualdade abordada como o grande problema do país pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na sua fala aos participantes da Conferência. Um discurso que contou também com a defesa da permanência de Nísia Trindade Lima à frente do Ministério da Saúde. Uma intervenção que reafirmou que a saúde não pode ser vista como gasto, mas sim como investimento e missão prioritária do Estado. Uma declaração que reconheceu que a defesa da saúde passa pela defesa da democracia, como estabelece o lema do Movimento da Reforma Sanitária e do Cebes: Saúde é Democracia e Democracia é Saúde.
Vista como a maior conferência nacional de saúde já realizada, a 17ª se caracterizou também por grande diversidade expressa por movimentos sociais representativos de segmentos profissionais, identitários e temáticos. Uma representação plural do país. Do país que subiu a rampa do Palácio do Planalto com Lula. Uma festa da democracia. Uma festa da militância. Uma festa resultante de construção coletiva alicerçada em vontade de mudar, racionalidade, afetos e muita emoção.
A força dos movimentos sociais e a participação social foram alvos de atenção por parte do governo federal, que anunciou duas medidas importantes nessa direção. A primeira delas se refere ao estímulo à criação de conselhos locais com a homologação, por parte da ministra da Saúde, da resolução nº 712/2023 do Conselho Nacional de Saúde, sobre a criação de campanha [para] conselhos locais de Saúde em Unidades Básicas de Saúde. A segunda foi o lançamento do projeto Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde, que pretende registrar e divulgar a existência de tais iniciativas visando facilitar articulações entre esses movimentos em todo o país.
Certamente o processo de construção de uma democracia de fato, de um Estado a serviço da inclusão, da igualdade e da equidade, encontra constrangimentos econômicos e políticos de peso. A sobrevivência, ainda que suavizada, da diretriz da austeridade no chamado arcabouço fiscal se constitui em um exemplo do que acabamos de falar. Isso porque o arcabouço fiscal, desenhado em uma conjuntura em que o governo não detém a maioria no congresso e o apoio de segmentos importantes do empresariado, impõe um balizamento que reduz as margens de manobra para a conquista do financiamento necessário para a construção de um SUS 100% [público] que atenda plenamente, com qualidade, as demandas da população em todo o território nacional e em todos os níveis de atenção.
Nesse caso, ainda jogamos no campo e com as regras do adversário. Regras definidas por uma perspectiva que, sob o pretexto de valorizar a responsabilidade fiscal, busca drenar para os setores rentistas os recursos das poupanças e fundos públicos. Temas como a revisão das reformas trabalhista e da Previdência são outros exemplos que se constituem em desafios à inclusão e à garantia de qualidade e vida digna para todos.
As plenárias não contaram com a participação de especialistas enquanto palestrantes, mas sim de representantes dos movimentos sociais. No lugar de uma palestra de um pesquisador de renome tivemos a participação de representantes dos movimentos sociais e de entidades ligadas à defesa do SUS e da democracia. No lugar de um palestrante, três militantes da causa do bem viver. Tal decisão partiu da compreensão de que os debates que antecederam a etapa nacional já teriam acumulado um bom nível de domínio sobre os temas em questão. A ideia era ampliar a participação. Uma aposta na diversidade de olhares e na militância.
Pujança e pluralidade foram marcas da participação da sociedade na Conferência. Uma diversidade festejada por todos, mas que, na perspectiva de muitos analistas, enseja o desafio de compatibilizar as causas específicas com a luta comum por condições e vida digna para todos. Um debate que não surgiu agora e que vem suscitando questionamentos e tensões no campo progressista que tem como norte o bem comum. Debate importante que alerta para a necessidade de superar a fragmentação para construir um projeto de país no qual todos se sintam representados. Um projeto capaz de catalisar as insatisfações, instaurar a igualdade e a equidade e contemplar a todos.
Como conselheiro nacional de saúde, delegado e membro da comissão organizadora da 17ª, pude observar, tanto na etapa de construção quanto na sua realização, a efervescência, a alegria e a potência dos movimentos da sociedade civil organizada. Fui testemunha do prazer de pertencer e experimentar a convivência, durante todo o processo, entre diferentes em espaços onde todos tiveram direito à voz. Espaços em que a violência não prosperou, abrindo oportunidades de diálogos entre visões distintas.
Pude observar também a confluência entre a defesa de interesses específicos com aqueles relacionados à toda a sociedade. Confluência que se manifestou tanto na votação de temas polêmicos – como as questões envolvendo a separação dos direitos da gestante e do nascituro, o aborto ou a descriminalização da maconha –, quanto na votação de diretrizes e propostas relacionadas a aspectos como financiamento, queda da taxa de juros, desprivatização do SUS ou defesa da democracia. Uma convergência estimulada pela necessidade de derrotar as propostas de um inimigo comum, os representantes daqueles que defendem a redução do Estado, a blindagem do mercado contra as legítimas pressões da democracia, a focalização, a iniciativa privada em detrimento da estrutura estatal e as pautas conservadoras. Segmentos que, embora minoritários, marcaram presença organizada e atuante na Conferência.
Acredito que momentos de convergência como esses demonstram que é possível e necessário integrar a fragmentação à causa comum. Esta, por sua vez, deve ser compreendida como amálgama de muitas lutas. Vale ressaltar que tais segmentos não são estanques e mantêm interseções entre si e com a luta mais geral. Assim, é impossível dissociar plenamente, por exemplo, as lutas dos movimentos negros dos embates da classe trabalhadora, uma vez que essa última é composta, em sua grande maioria, de homens e mulheres pretas e pardas, conforme a constatação e a classificação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Contínua 2022, realizada pelo IBGE. Ou seja, falar da classe trabalhadora é falar também de negros e pardos. Cabe a todos nós perceber a teia cujos fios estão dados e já entrelaçados pela história.
Entre no site do Observatório de Análise Política em Saúde e acesse a entrevista na íntegra.