Um olhar “acima” do SUS

Nelson Rodrigues dos Santos | Publicado no Longevidade Adunicamp 

 

Efetivamente, as políticas e estratégias nacionais implementadas a partir de 2003 realizam:

a) impactante inclusão social corrigindo o salário mínimo acima da inflação, desenvolvendo o bolsa-família e interrompendo o desmanche, iniciado nos anos 90, dos direitos trabalhistas e previdenciários (conquistas socialdemocratas do século 20),

b) reativação do mercado interno (ainda que predominando ramos de baixa agregação de valor), que atenuou os efeitos da crise econômica global, e

c) expressivo impulso diplomático autônomo na política externa (2003 a 2010).

Essas políticas e estratégias acertadas compuseram os debates e bandeiras do amplo arco social e político debatido e articulado no decorrer do ano eleitoral de 2002, em torno de expectativas e esperanças de amplos segmentos excluídos, de trabalhadores, de grande parte das camadas médias e tendências sociais no espectro majoritário centrista e do centro-esquerda. Nesse cenário constavam também expectativas sobre:

 

1)no resgate das políticas públicas universalistas de qualidade (saúde/SUS, educação, segurança pública, transporte coletivo e demais direitos de cidadania),

2)redução e controle da insaciável transferência de recursos públicos em função dos juros elevadíssimos aos credores da dívida pública, como também do câmbio e do desenfreado desvio de recursos empresariais, do reinvestimento para o mercado de capitais: fatores da perniciosa desindustrialização em curso,

3)no efetivo investimento de infraestrutura (energia, estradas, portos, etc.), na industrialização com agregação de valor de qualificação das exportações (não dependência só de produtos primários), e

4)na efetiva adoção de condutas claramente éticas e republicanas, de valores e práticas e sem a relação patrimonialista e venal entre o Executivo, Legislativo e o grande capital.

 

O uso sintetizar a imagem de que o conjunto das referidas políticas e estratégias, ainda que não debatidas em maior detalhe de projetos específicos no decorrer de 2002, apontava para clara vontade política da maioria da sociedade no rumo da inclusão social com políticas públicas, com base nos direitos de cidadania, e do desenvolvimento, no rumo de ruptura gradual com o capitalismo periférico dependente, refém da especulação financeira.

Ou seja, apontava mais para uma concepção e projeto de nação do que projeto de poder. Mais um “salto civilizatório” no rumo do Estado de Bem Estar Social de cunho socialdemocrata construído no século passado pelas sociedades na maioria dos países europeus, Canadá e outros, obviamente calcado em nossas realidades históricas, sociais e políticas.

Diria que foram esse projeto, expectativa, esperança e a própria sociedade, os grandes vencedores da eleição em 2002, sob a liderança e representação do PT, partidos coligados e o ex-presidente Lula.

Contudo, a partir de 2003, ano a ano, das políticas e estratégias citadas que integraram os debates e expectativas em 2002, verificou-se a implementação de a), b) e c), e a não implementação de 1), 2), 3) e 4).

Em relação às quatro últimas, reproduzindo as graves distorções herdadas dos anos 90 e, em alguns aspectos, agravando-as, o que, por si, alimenta o crescente mal estar na sociedade, após vários anos de positiva sensação de rumo ao bem estar conferida pelo sucesso da implementação das três primeiras.

O orçamento da nossa Previdência Social continua superavitário apesar da forte renuncia fiscal para 56 ramos empresariais, mas continua confiscado em 20% pela DRU frente aos compromissos com os credores da dívida pública.

Este retorno real ao mal estar não pode nem deve ser minimizado pelo fato de estar sendo explorado e “ampliado” midiaticamente pela militância e poder conservador neoliberal: não são necessárias maiores sofisticações de análise sócio-política-institucional para constatar, em crescentes segmentos sociais, a genuína frustração e decepção com a não implementação das quatro últimas políticas e estratégias citadas.

É oportuno lembrar estudo realizado em 2008 pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, comparando o Brasil, com alta carga tributária, e a Inglaterra, França, Dinamarca, Espanha e Portugal com médias de cargas tributárias maiores ainda.

No Brasil a população trabalhava em média 117 dias no ano para poder comprar serviços privados de saúde, educação, previdência social, segurança pública, e pedágio, e havia grande reação contra “excesso de impostos”.

Naqueles cinco países, os cinco serviços citados eram públicos e de qualidade, e não havia reação da população contra impostos. Eram efetivamente mais republicanos e socialdemocratas.

Creio não exagerar ao lembrar que nos debates e mobilizações, em 2002, a geração politizada e mobilizada nos debates constitucionais de 15 anos antes estava bem mais presente e atuante com a geração mais jovem, contribuindo para o resgate da participação democrática em projeto de nação.

Para melhor refletir sobre a não implementação de 1), 2), 3) e 4), ouso tomar como uma das raízes determinantes, o “Presidencialismo de Coalizão”: uma das imposições na transição da ditadura para a democracia no início dos anos 80, que implicou no fortalecimento legislativo do poder Executivo, submetendo o poder Legislativo á condição predominantemente homologatória.

Nos anos 90, a aprovação do 2º mandato governamental do Executivo, o instituto da Medida Provisória e a maioria das Emendas Constitucionais são alguns exemplos. Em troca da maioria governista no Congresso Nacional, ficou pactuada a prerrogativa do Legislativo, suas lideranças e partidos, para indicar a maioria dos ministros, direções das Estatais, das Agencias Reguladoras e operadores nos vários escalões da execução orçamentária federal.

O perfil do Legislativo adequou-se ao número crescente de partidos (hoje, 32) sob a tutela do bloco majoritário (herdeiro da estrutura de apoio à ditadura) e/ou de arraigado clientelismo e fisiologismo, chamado “centrão”.

As coligações partidárias passaram a ser fortemente atreladas à cessão (venda) de tempo de rádio e TV, acesso ao fundo partidário e participação nos resultados (benesses) da execução do orçamento público para a compra de bens e serviços de empresas privadas, com poderosos lobbies atuando no Executivo e Legislativo.

 

Um retrocesso em aspectos básicos, ao patrimonialismo e clientelismo pré-republicanos.

Esse presidencialismo de coalizão que perdura até hoje, como bem lembra Roberto Amaral, “vem impedindo a realização dos programas de campanha e de governo apoiados pelos eleitores e sociedade; levou a cidadania à orfandade político-partidária, esvaziou os partidos de valores e ideias-forças voltadas para um projeto de sociedade, e aviltou o perfil do Legislativo e dos candidatos ao Legislativo. E acabou, enfim, por revelar seu próprio esgotamento: mais que uma grave crise política, a sociedade está diante de uma crise republicana, que requer transformações na organização do Estado e do processo eleitoral”.

É nesse contexto do “Presidencialismo de Coalizão” que a implementação de 1), 2), 3) e 4) foi sendo postergada, com perdas para a sociedade e nação, a meu ver, inicialmente ofuscadas pelo sucesso da implementação de a), b) e c), com um ufanismo que veio se mostrar inconsequente.

Com a crise internacional em 2008, nosso governo adotou as mesmas medidas anticíclicas em 2009 e 2011 de reduzir, ainda que discretamente, a taxa Selic e os juros do BNDS e CEF para manter crédito, o que levou a forte reação do mercado rentista especulativo a partir de 2010, que, em aliança com o alto empresariado, aprofundou sua hegemonia e os altíssimos juros e lucros.

De 2013 para 2014, enquanto estancavam a produção, os gastos públicos na área social e o PIB, o lucro das ações das grandes empresas na BOVESPA quase dobrou, o lucro dos bancos cresceu perto de 30%, o mesmo acontecendo para os rentistas da dívida pública.

Apesar do evidente acerto do ato governamental em reduzir a taxa de juros (2009 e 2011), perguntaria: por que só em 2009, como medida isolada de outras medidas políticas de um projeto de nação, ilustrados nos referidos 1), 2), 3) e 4)?

Por que uma medida centralizada e vertical, sem debate, mobilização e suporte de amplos setores da sociedade? Perdeu-se o momento mais oportuno?

José Luis Fiori há poucos dias se referia, com a acuidade e consequência de sempre, ao novo projeto brasileiro no atual século, que alguns chamaram “social-desenvolvimentista”, com base em coalizão liderada por forças progressistas, mas que foi se alargando até se tornar verdadeiro caleidoscópio ideológico e oportunista. E, que na hora da desaceleração cíclica e do ajuste econômico a favor do sistema financeiro, a maioria dos “aliados” desembarca da canoa com a mesma rapidez com que desembarcaram do regime militar nos anos 80 e da coalizão neoliberal nos anos 90.

E termina considerando que é também nessas horas de crise que podem ser tomadas decisões que mudem o rumo da história: com coragem, persistência e visão estratégica.

Provoco: o referido alargamento da coalizão liderada por forças progressistas terá produzido no seu interior, além da desaceleração do novo projeto brasileiro, também a cooptação de parte decisiva de lideranças e dirigentes dessas forças?

Se parte das lideranças e dirigentes progressistas foram cooptados, onde está a maior parte que não se deixou cooptar?, onde estão suas vozes e ações contra os cooptados e cooptadores?

 

ALERTAS NAS REAÇÕES DA SOCIEDADE.

Interessante ângulo para análise e reflexões sobre as expectativas e mobilizações na sociedade é a estratificação e a grande amplitude, em nosso país, das chamadas classes médias.

Segundo a Pesquisa por Amostra Domiciliar-PNAD/IBGE, de 2012 para 2013, a alta classe média caiu de 8,9% para 8,5% da população, a média classe média caiu de 15,6% para 14,3%, a baixa classe média subiu de 43,0% para 44,2%, a massa trabalhadora caiu de 25,1% para 24,9% e os miseráveis subiram de 7,4% para 8,1%. Waldir Quadros destaca a mobilidade descendente em cascata que afetou em um ano 5,7 milhões de pessoas, que parece indicar início de reversão do auspicioso ciclo de inclusão social iniciado em 2004. É uma complexa dinâmica que envolve as aspirações, o trabalho, resultados e frustrações dos assalariados do setor público e privado, dos micro e médios empresários e profissionais autônomos (terceirizados ou não), estudantes e até pequenos e médios rentistas: a grande maioria da população.

Alvaro G. Linera alude a ultrapassagem da tradicional extração de mais valia na produção assalariada, com o advento do neoliberalismo, e o surgimento de uma “proletarização difusa” entre assalariados dos setores público e privado, profissionais autônomos liberais, mini e microempresários e empreendedores (terceirizados ou não), cientistas, pesquisadores, analistas, professores, etc.

Outro interessante ângulo é o oportuno comentário de Clovis Rossi: nos lembra que as grandes manifestações de rua em nossa história recente tiveram forte predominância das classes médias: a marcha com Deus, Família e Propriedade em 1963, a marcha dos 100 mil no Rio de Janeiro em 1968, as manifestações dos trabalhadores no ABC paulista na dobrada dos anos 70/80, os atos pela anistia e as Diretas Já em 1983/1984, manifestações anti-Collor em 1992, posse do Lula em 2003, e as manifestações de 2013, 2014 e 2015.

A grande fragmentação da sociedade e seus movimentos amplos, desde 1990 até nossos dias, com a emergência do individualismo e corporativismo na ascensão social, e da consciência dos direitos do consumidor sobre a dos direitos de cidadania, justificam a assertiva de que os manifestantes de 2013, 2014 e 2015 são “filhos do atual capitalismo neoliberal de forte aspiração consumista individual”. Mas a grande amplitude, a heterogeneidade e o histórico das manifestações das nossas classes médias, aponta que o seu conjunto, responde por omissão, conivência, pró-ação ou reação, às ações de uma parte que se mobiliza. Essa parte que – em 1963, nas principais capitais brasileiras; e, em 2014, na Avenida Paulista, em São Paulo – foi tipicamente conservadora, reacionária e golpista; e nos demais exemplos acima ilustrados foi tipicamente republicana e democrática.

Há que serem consideradas a relação de forças econômicas, sociais e políticas, a trajetória e hegemonia da elite, as estratégias e rumos delineados na campanha de 2002, os reflexos recentes do nosso presidencialismo de coalizão, as influências conservadoras indutoras de movimentos trabalhistas menos sociais e mais corporativos, assim como o oportunismo de grupos, corporações e lideranças partidárias no seio do atual mal estar social.

Em junho de 2013, fortes manifestações de vários segmentos da sociedade surpreenderam pela expressa desconfiança nos políticos, partidos e governos estabelecidos, da situação e oposição. Na repleta Avenida Paulista, em São Paulo, as principais bandeiras foram o transporte coletivo (passe livre) e os direitos básicos à saúde, educação, segurança pública e outros: com predominância dos jovens. Pesquisas de opinião apontaram que 78% eram de nível superior e 20% de nível médio, e que 6% da população participou das manifestações.

Em 2014, no 2º turno da acirrada campanha eleitoral, pesquisas de opinião revelavam que a grande maioria dos eleitores de cada uma das duas candidaturas finais coincidiam os mesmos pleitos e bandeiras para o governo entrante: sem corrupção no Executivo e Legislativo e prioridade para os direitos básicos: emprego, salário mínimo, saúde, educação, segurança pública e outros.

Eram também as bandeiras dos que votaram em branco ou anularam os votos, que na apuração somaram 37 milhões de eleitores.

Em junho de 2013 e segundo semestre de 2014, penso que importantes segmentos da sociedade e os eleitores estavam emitindo eloquentes sinais e alertas sobre o mal estar social, “dando um recado” às representações políticas e ao governo.

A reação a esse “recado” foi de insensibilidade e desatenção: já no debate eleitoral, os marqueteiros de ambas as candidaturas concentram-se só na radical desconstrução da imagem do (a) candidato (a) adversário (a), na mídia e redes sociais.

Os temas centrais para a sociedade e eleitores, de ideias, valores, direitos e desenvolvimento de um projeto de nação ficaram em segundo plano ou desprezados. É bem possível que essa insensibilidade aos sinais e alertas da sociedade e eleitorado muito contribuiu para a manipulação, pela mídia e redes sociais, de uma polarização na sociedade que, na verdade, encontra-se muito mais nos atuais políticos, partidos e governos, apesar da dispersão e despolitização processadas nos últimos 25 anos.

De um lado pelos setores mais conservadores, reacionários e sua mídia, que multiplicam o volume dos desmandos, corrupção e irresponsabilidade fiscal nos governos petistas, inclusive insinuando a privatização da Petrobrás; do outro lado, o “establishment” do PT, governo e quadros centrais de ambos, não reconhecendo: a) a continuidade dos desmandos e corrupção e seu tamanho, doa a quem doer, e b) a desatenção dos pleitos e bandeiras da maioria da sociedade expressos nos sinais e alertas da sociedade em 2013 e 2014, que remontam as expectativas geradas na campanha de 2002.

Nas manifestações de 13 de março de 2015 contra as medidas de mais cortes nos gastos sociais, e de 15 de março contra os desmandos e corrupção, pesquisa de opinião mostrou que a “polarização” assim expressou-se em cada uma:

– Democracia é sempre melhor: 86% e 85%

– Ditadura tanto faz ou em certos casos: 11% e 13%

– Congresso Nacional ruim ou péssimo: 61% e 77%

– Governo Dilma ruim ou péssimo: 26% e 96% (27%, impeachment)

– Nível superior: 68% e 76%

– Preferiam o PT: 39% e preferiam o PSDB: 37%

– Eleitores de Dilma: 71% e eleitores de Aécio: 82%

– Renda até cinco salários mínimos: 62% e renda maior que 5 sal. mínimos: 68%

Na manifestação seguinte, em abril na Avenida Paulista, em São Paulo, 19% dos manifestantes tinham renda acima de 20 salários mínimos, quando foram potencializadas as posições da manifestação de 15 de março.

Por final, seguem comentários sobre a nossa elite social, acima das classes médias; cujas reações como classe são menos visíveis, porém mais efetivas no conjunto da sociedade. A expressão absoluta da elite é a do 1% mais rico da população, objeto da impactante pesquisa de Thomaz Piketti, porém neste ensaio incluímos parte da alta classe média.

Em meio à grave crise econômica e política do desvio criminoso, antissocial e antinacional de vultosos recursos públicos em nosso presidencialismo de coalizão, com divulgação de mais de R$ 6 bilhões desviados e mais de R$ 20 bilhões de prejuízo na Petrobrás, não podemos nem devemos atenuar a evidência do maior foco da crise nacional econômica e política. Referimos à galopante acumulação financeiro-especulativa que gera nossa monumental dívida pública, cujos juros, por volta de R$ 220 bilhões, amortização e refinanciamento, consomem 46% a 47% do Orçamento Geral da União, restando porcentagens irrisórias a orçamentos como: 3,8% para a Saúde, 2,7% para a Educação e abaixo de 1% para Transporte, Energia e Segurança Pública.

É dívida ao mesmo tempo assombrosa e blindada contra auditoria interna, externa e independente, ou revisão: seus poderosos detentores infundiram na sociedade que os gastos públicos com os rentistas são um dogma virtuoso, enquanto com os gastos com direitos sociais e desenvolvimento são perdulários.

Este foco central da crise está intimamente ligado á concentração da nossa riqueza e renda. Dados do Consórcio Internacional dos Jornalistas Investigativos sobre a Agência do HSBC na Suíça, ligada a paraísos fiscais (SuissLeaks), do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sonegômetro), do Relatório de 2014 do Banco Credit Suisse, do Conselho Administrativo da Receita Federal, CARF (Conselho Administrativo da Receita Federal)/Operação Zelotes, das Revistas Forbes e Exame, apontam:

– 225 mil brasileiros possuem patrimônio acima de US$ 1 milhão (R$ 2,39 milhões),

– 230 mil brasileiros aplicam, cada um, acima de US$ 1 milhão no mercado financeiro internacional,

– Era de brasileiros, em 2010, a quarta maior fortuna nos paraísos fiscais, estimada em US$ 520 bilhões, (R$ 1 trilhão),

– É de brasileiros o quarto lugar de compradores de móveis em Miami, EUA,

– As 15 famílias mais ricas no Brasil concentram R$ 270 bilhões, correspondentes a 5% do PIB,

– Havia em 2006/2007, na filial suíça do HSBC, ligada a paraísos fiscais, oito mil contas brasileiras com desvios iniciais em 342 delas, estimados em US$ 7 bilhões. Não estão computados os valores muito maiores de empresas offshore montadas por brasileiros.

– Vultosos desvios de dívidas fiscais de grandes empresas brasileiras, operados no CARF, vem sendo estimada em até R$ 19 bilhões: Santander, Bradesco, Ford, Gerdau, Boston Negócios, SAFRA, FIAT, e outras. (A Gerdau já tem recurso contra a reposição de R$ 5 bilhões ao Tesouro Nacional).

– Dados da Secretaria da Receita Federal/MF revelados no Sonegômetro indicam dívida fiscal de R$ 415 bilhões em 2013, estimados para 2015 em R$ 500 bilhões.

Importante pesquisa do Instituto Federal Suíço, em 2011, apontou crescimento geométrico da concentração do capital: 147 superconglomerados, com predominância do capital especulativo, controlavam 1.318 conglomerados detendo 40% da sua riqueza, que por sua vez, controlavam as 43 mil maiores corporações empresariais do mundo.

Esses dados, certamente sujeitos a reparos para mais ou menos, formam um conjunto que reflete o modo de participação de 296 mil brasileiros nos 1% mais ricos do mundo e de cinco milhões de pessoas nos 10% mais ricos do mundo.

Reflete a manutenção de 17% da renda nacional nas mãos do 1% mais rico do país, assim como 75% da riqueza contabilizada com os 10% mais ricos.

Reflete também, mais que a imunidade contra os efeitos da crise econômico-financeira, a sua própria gênese: basta observar quais os estratos sociais e orçamentos públicos setoriais que estão sendo tratados como perdulários e “enxugados” pelo ajuste fiscal ora em andamento: entre R$ 60 a R$ 80 bilhões para bancar o superávit primário intocável da intocável dívida pública “não perdulária”. Reflete ainda o recente encontro realizado há poucos dias no Waldorf Astória, em Nova Yorque, do qual participaram Bill Clinton, Fernando H. Cardoso, banqueiros, altos empresários e políticos, sobre o qual José Luis Fiori refere plausível atualização do Consenso de Washington dos anos 90. Reflete por final a grande dificuldade de taxação das grandes fortunas e heranças, incluindo os valores mais tangíveis como imóveis e ações e aplicações financeiras.

 

O LEITE QUE DERRAMOU E A BUSCA DE LUZES

Investigações oficias comprovam que o destino criminoso, antissocial e antinacional de vultosos recursos públicos arrecadados, além dos sonegados, vêm sendo impulsionados sob o “Presidencialismo de Coalizão”.

Revelam também que os correspondentes desmandos governamentais e corrupção continuam até nossos dias, ainda que sua divulgação venha sendo multiplicada em relação aos governos do PT e coligados, pelos setores mais reacionários da sociedade e sua mídia.

Essa continuidade é inadmissível e sua avaliação, reconhecimento e enfrentamento são inabdicáveis e inadiáveis, com o risco da dispersão e esvaziamento da maior militância partidária da nossa história (PT), além da massa de eleitores sem partido que aderiu ao debate de um projeto de nação na campanha de 2002.

A meu ver, vai ficando claro que a exacerbação das reações pelos setores mais conservadores e reacionários da sociedade, políticos e mídia, pode significar a revanche desses setores, ante a aparente defensiva e enfraquecimento perante uma “onda petista” que se supunha mais consistente e consequente no governo nacional.

É sabido que essa “onda” crescia na oposição nos anos 80 e 90, e assumia radicalidade na denúncia e mobilização contra os desmandos éticos, econômicos e financeiros dos governos e partidos da situação. Repudiava inclusive a articulação de ampliação de forças políticas progressistas em direção a setores integrantes do “centrão”.

O apogeu da “onda petista” iniciou-se na campanha eleitoral de 2002: o “sonho petista” ampliou-se para o “sonho das maiorias” na sociedade, por outro projeto de nação com mais desenvolvimento e distributivismo.

No tópico anterior resumimos as expectativas e compromissos do ideário de 2002 nos itens a), b) e c), cujo cumprimento repercute positivamente até hoje, e também nos itens 1), 2), 3) e 4), cujo descumprimento vem gerando mal estar social por si mesmo.

Alguns analistas estendem sua preocupação ao provável peso negativo desse descumprimento que, em médio prazo, certamente fragiliza o suporte político ao cumprimento dos itens a), b) e c), reduzindo-os, perante uma crise fiscal maior, a uma “bolha de consumo” ou mera exploração de brechas nos espaços neoliberais do capitalismo dependente.

Outros analistas lembram que, além do “presidencialismo de coalizão”, outro engendramento constou como imposição pétrea na transição da ditadura para a democracia: a canalização do movimento trabalhista e estrutura sindical, para uma alternativa exclusivamente “trabalhista” imune a eventuais resquícios do “pré-1964”, o socialista e o brizolista. Penso que esse engendramento, desenvolvendo-se nos anos 90 e até nossos dias, exagerou a dose ajudando a descumprir os itens 1), 2), 3) e 4), abortando o projeto de nação.

Mais recentemente surge outra origem do mal estar social, que foi a continuidade do destino criminoso e antissocial de vultosos recursos públicos arrecadados, além dos sonegados, comprometendo lideranças e dirigentes centrais de um partido de massas que sugeria imunidade ao fisiologismo, patrimonialismo, corrupção e projeto de poder pelo poder.

Celso Barros, em análise do recente congresso do PT, afirma que a recusa do afastamento dos dirigentes acusados de corrupção e consequente prestação de contas à população limitou drasticamente a possibilidade do partido reconquistar o centro do espectro político, para então rever e ampliar alianças, inovar estratégias perante as novas demandas da população emergente (dezenas de milhões) que as reformas pós-2003 fizeram aparecer na sociedade brasileira.

Afirma também que além da intocabilidade na regressividade dos impostos, dos esquemas políticos tradicionais e outras “tradições” governamentais, os acordos de 2002/2003 também mantiveram intocável o esquerdismo dentro do PT na sua característica oposicionista dos anos 90.

Refere ainda que a recente Carta de Salvador daquele congresso, em seu ponto 44, abre espaço de diálogo político entre as novas “classes emergentes” com propostas do centro do espectro político como: fundo público com forte progressividade na tributação e nos gastos, que ofereça acesso ao crédito, formação, tecnologia, etc. para o mar de micros e pequenos negócios, assim como a volta à militância de base, à formação de frente com os aliados da esquerda, etc. Ao que julgamos fundamental acrescentar: o resgate das políticas públicas universalistas para os direitos sociais básicos expressos na Constituição de 1988.

Para o campo de conhecimento de Políticas Públicas e Ciências Políticas e Sociais, penso caberem as questões:

– até onde o histórico topo ou ápice da pirâmide de poder patrimonialista e colonizado dominante do Estado brasileiro combina-se em promiscuidade com os topos ou ápices das pirâmides do Governo e Partidos no Executivo e Legislativo?

– até onde essa combinação permeia a reprodução da hegemonia do capital financeiro desde os anos 90 até hoje?

– Há perspectivas de retomada do consenso construído em 2002, e preferentemente mais ampliado e explicitado?

 

Objetivando:

1 – A efetiva formulação de alternativas ao nosso capitalismo dependente periférico e ao jugo ilimitado e insaciável da acumulação especulativa do capital têm cabimento e espaço político potencial em nossos dias?

2 – Na atual conjuntura social e política há espaço político potencial para a formulação de uma imagem-objetivo efetivamente socialdemocrata e de Estado de Bem Estar Social desenvolvimentista?

3 – Na construção conjunta e pluralista desse espaço político, com a imprescindível transparência e ampliação nos debates, quais as tendências partidárias, políticas, entidades e movimentos sociais, pensadores e intelectuais orgânicos efetivamente comprometidos com a democratização do Estado reuniriam condições e estariam dispostos à implementação?

4 – Estando essa implementação voltada para a formulação e pactuação de um projeto de sociedade e nação, e inevitavelmente de poder, o pluralismo já apontado teria condições de assumir efetivamente os poderes conquistados, somente como meio de realização do projeto de sociedade e nação? E, precipuamente, de manter a continuidade do debate do projeto entre si e com a sociedade, com as imprescindíveis verificações dos objetivos, meios e correções de percurso, ampliando e enriquecendo as pactuações?

5 – Na implementação da imagem-objetivo apontada na segunda indagação, por óbvio, todas as tendências alinhadas manteriam a prerrogativa democrática da disputa de poder na Estrutura do Estado? E o próprio desenvolvimento do projeto de sociedade e nação, com participação direta da sociedade, balizará a dinâmica do papel e espaços de cada componente e tendência?

6 – Sob um espectro de valores e expectativas na sociedade, assim como ideias-força desde o centro até a esquerda, passando pelos vários matizes (mais plurais ou sectários): corporativos, classistas, consumistas, religiosos e esquerdistas, as maiorias estão interessadas no disposto na segunda e terceira indagação?

7 – O debate amplo e a implementação por etapas pactuadas do disposto nas duas primeiras indagações é alternativa para reverter a hegemonia conservadora da direita, ilegitimamente implementada na mídia, Estado e sociedade? – Apesar do domínio de nossa mídia por valores do individualismo, consumismo e especulação financeira, que embaçam e cerceiam o conhecimento do futuro real da sociedade e nação, é possível disputar e furar esse bloqueio visando disponibilizar para as massas sociais as informações e conhecimentos do que lhes diz respeito nos seus direitos, seu futuro e alternativas reais de desenvolvimento social?

8 – Que mudanças podem e devem ser implementadas desde já; na reforma política, no quadro partidário, na democracia interna dos partidos e nos congressos de cada partido? Incluindo a refundação de partidos e coligações?

9 – Nessa aliança ou coligação heterogênea, cada componente ou tendência em sua legítima militância no seu espaço próprio, até onde manterá as pactuações e repactuações para o projeto comum de sociedade e nação avançarem?

Multiplicam-se “sinais” globais de esgotamento da atual hegemonia liberal especulativa, por exemplo:

James Galbraith, Universidade do Texas, acaba de lançar o livro “The End of Normal the Great Crisis and the Future of Growth”, no qual denuncia o “uso excessivo de expressões matemáticas nos argumentos dos neoliberais sobre a perfeição dos mercados: usam a matemática para intimidar e não para esclarecer”, e aponta alternativas para nova forma do capitalismo manter sua sustentabilidade: substancial encolhimento do sistema financeiro, uso intensivo de mão de obra, robusto sistema de proteção trabalhista e social, custos fixos menores, baixas taxas de retorno e descentralização,

Martin Wolf, chefe do Editorial do Financial Times, Londres, apologista nos anos 80 e 90 de Tachter e Reagan, expõe que: a austeridade fiscal falhou, a estabilidade financeira desapareceu, o atual modelo é ideal somente para os banqueiros e deve-se voltar à visão de Keynes.

Rosa Maria Marques, titular de Economia na PUC-SP, aponta que no Brasil fatias crescentes do lucro empresarial deixam de ser reinvestidas, passando a ser desviadas para a rentabilidade extraordinária do mercado financeiro (títulos, ações e derivativos), e o investimento público que sempre foi importante é crescentemente desviado para os credores da dívida pública. Em escala mundial, o mercado financeiro já perfaz vários PIBs mundiais.

A conhecida pesquisa e projeções de Thomaz Piketti em escala mundial apontaram que a partir do próximo ano, 2016, os ganhos do 1% mais ricos no mundo superarão os dos restantes 99%, o que acaba de ser confirmado pela respeitada ONG OXFAM.

Penso ser impossível visualizar a real diferenciação dos segmentos da nossa sociedade, desde os miseráveis à alta classe média, quanto às tensões das desigualdades, das frustrações, revisões ou afirmações na conquista das aspirações, às confianças nas representações eleitas, e até mesmo nas diferenças entre os movimentos de rua, desde 2013, e os mais de 90% que ficaram em casa ou no trabalho etc.

Mas somo aos alertas e recados da sociedade: nas ruas em 2013, pelos eleitores (pesquisas de opinião) em 2014 que elegeram e os que votaram em branco ou anularam, e grande parte dos movimentos de 2015: emergem com força os não alinhados à situação e à oposição nos governos, nem às lideranças e partidos políticos, ou os mais céticos ou os mais esperançosos, os indignados em número crescente, e mesmo entre os alinhados, aqueles com crescentes reservas.

Diria que se esgotaram os cenários e esperanças de disputa e exercício de poderes com base em promessas de que usaria o poder para o bem comum: crescem paralelamente as buscas de luzes e formulações de como o exercício do poder pode e deve ser reestruturado, democratizado e compelido a ser efetivamente controlado pela sociedade e, nesse espaço, aí sim, se dar a disputa do poder.

Na Espanha o movimento apartidário “Indignados” cresce desde 2011, agora reforçado com o movimento “Podemos” que já registrou para disputar eleições, aponta entre várias bandeiras a Tolerância “0” para corrupção e para os cortes orçamentários públicos orientados pelos objetivos da ganância e especulação financeira.

Nas recentes eleições municipais, ganharam a prefeitura de Barcelona (segunda cidade do país) e perderam Madri por um voto. Cabe citar Juca Kfouri, referindo-se a um Odebrecht: “Preferia que fosse diferente, mas o jogo é o jogo, não posso mudar o mundo”, e Juca: “Todos podemos”.

Na Grécia, o Syriza iniciou como movimento contra endividamento especulativo do país, registrou-se como partido e venceu eleições em oposição à coligação partidária que cumpria a risca a submissão a uma dívida pública crescente, juros altos, desestruturando a nação e regredindo a sociedade.

Hoje é travada verdadeira guerra financeira do FMI (Fundo Monetário Internacional) e BCE (Banco Comum Europeu) – gigante Gulliver contra o governo e população grega, o Pequeno Polegar.

Em junho de 2015 venceram 1,6 bilhões de euros de dívida que só poderiam ser pagas com os salários e aposentadorias dos servidores. A dívida não foi paga, e daí a decisão pelo plebiscito que decidiu, esmagadoramente, pela não submissão ao Gulliver das finanças europeias.

Além da Espanha e Grécia, correm em nossos dias buscas intensivas de alternativas ao domínio insaciável do capital financeiro especulativo, objetivando a construção de projeto de nação, ex: Noruega, Islândia, Irlanda e Bolívia. Itália e França estão no limite. É um conjunto diversificado de países na sua história, cultura e estrutura socioeconômica, porém em comum forçando relação mais participativa e reestruturante da sociedade em relação ao Estado, na busca de um projeto de sociedade e nação não submisso à ditadura neoliberal financeira especulativa. Variam as composições no espectro centro-esquerda. Se há potencial de revés e/ou distorção, também haverá de adesão de mais sociedades e países a essas buscas.

A retomada do rumo inicial constitucional do SUS (Sistema Único de Saúde) encontra-se sabidamente vinculada à reversão da atual política de Estado e também ao contexto macroeconômico nacional e global. Nessa reversão, a militância somente no setor saúde já se tornou quixotesca, mesmo assim, imprescindível. Contudo, esse vínculo, de solidez aparentemente incontornável pode, historicamente, diluir-se e revelar insustentabilidade. Referimos a possível vinculo com a práxis política da sociedade há quase 30 anos, informada, consciente e mobilizada para a possibilidade real de satisfação dos direitos humanos e sociais, que foram contemplados na Constituição cidadã de 1988.

Essa possibilidade real encontra-se hoje espelhada na implantação da diretriz da Regionalização vinculada á elevação do financiamento federal e ás formulações e pactuações dos gestores descentralizados, dos conselhos de saúde, das entidades ligadas ao movimento da reforma sanitária e da população consciente e mobilizada, conforme já assinalada no segundo tópico deste ensaio.

Não é demais lembrar que a conscientização da população passa pela compreensão e postura de que os recursos públicos, após sua arrecadação da população permanecem pertencendo à população. Cabe ao Estado administrá-los, investindo e custeando em beneficio da população e nação. Esta obviedade vem há décadas sendo na prática obscurecida a favor de que só o quê é comprado no mercado pertence ao consumidor.

Ora, a consciência de que o SUS pertence a cada cidadão e de que, sem consultá-lo, o Estado avilta o financiamento do SUS e subsidia fortemente os planos privados com os recursos públicos do cidadão, compelindo-o a satisfazer seus direitos consumindo no mercado.

Aí está um debate para cada segmento da sociedade: o do pertencimento. Daí, a bandeira “Democratização do Estado”.

 

* Nelson Rodrigues dos Santos é médico, professor aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), membro do conselho consultivo do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES) e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA).