E se fosse sua mãe?
Data:17/10/2011
O Globo – Opinião
Duas expressões do jargão profissional -“saúde é coisa muito séria para ser pensada só por especialistas”; “e se fosse sua mãe, o que você faria?” – orientam há muitas gerações as boas práticas assistenciais. Parecem óbvias, indelicadas, a última até chula, mas sintetizam precisamente limites que não devem ser ultrapassados pelas instituições de saúde. Recorre-se à primeira para prevenir a empáfia, perante circunstâncias nas quais a lembrança da não imortalidade evita medidas que causariam mais dano do que conforto aos pacientes, e ainda quando é necessário ponderar o valor das intervenções isoladas da saúde. A segunda, proferida sempre como exortação, traz para perto o imperativo kantiano do agir como princípio de lei universal. Cada ser humano é singular, insubstituível, logo digno da melhor e toda atenção disponível.
Se tivessem sido tratados como filho ou mãe, nem o corpo de um recém-nato teria desaparecido no inicio de outubro, em um hospital privado da maior empresa de planos privados de saúde do país, localizado em Niterói, nem uma senhora considerada morta poderia ser encontrada viva, no final de setembro, em um estabelecimento de saúde pública na cidade de Duque de Caixas. Do descaso que explode de ambas as situações retira-se conclusões obrigatórias. Existem graves problemas de gestão no sistema de saúde brasileiro, com efeitos deletérios similares quer quando originados na rede SUS, quer na de serviços privados. Segue-se da exposição de fatos tão dramáticos que as garantias de segurança e qualidade da atenção da rede privada, às quais se somam o uso consciencioso de recursos financeiros provenientes dos tributos, devam ser objeto prioritário da política de saúde. O que não é possível extrair da realidade é que para pôr fim à má gestão basta trocar a placa de público para o privado.
Volta e meia alguém saca da algibeira a equação “mais receita e menos despesa”, combinada ou não com a eliminação dos corruptos. Neófitos bem intencionados ou antigos e recentes agentes interessados em obter vantagens políticas ou financeiras costumam simpatizar com a ideia de que a privatização é capaz de reduzir, em uma penada, os gastos, e extirpar malversadores incrustados em imaginárias burocracias imensas e mofadas. Mas, para a saúde, a qualidade das ações é tão importante quanto a eficiência. A utilidade social dos serviços de saúde será sempre um estorvo para quem pretende obter mais retornos financeiros em decorrência da desassistência. Adicionalmente, a não identificação das estruturas que estimulam atos ilícitos termina por trasladá-las intactas para dentro das gestões privatizantes.
A constatação de que a má gestão não é apanágio do SUS transforma alguns dos mais intrépidos reformadores em incorrigíveis pessimistas. Aqueles que generosa ou egoisticamente emprestam apressadamente o conhecimento de seus ilibados e exitosos empreendimentos sentem-se derrotados pelas dificuldades de padronização e pelo impedimento de medir resultados de algo que não é um bem material, passível de estocagem. O trabalho na saúde não é rotineiro, repetitivo e simples.
Diversos estudiosos atribuem o reduzido tempo útil de vida das mudanças cosméticas nas organizações de saúde às incompreensões sobre o papel dos profissionais que nelas atuam. Profissionais de saúde são trabalhadores diferenciados, o desempenho em tarefas especializadas requer autonomia, para permitir execução de tarefas que não se adaptam à estandardização industrial. Quem define o conteúdo da atividade dos profissionais não é um superior hierárquico. As instituições de saúde não se fundam na hierarquia burocrática, e sim em conteúdos obtidos mediante longos períodos de aprendizado. É a formação que internaliza as habilidades e competências
As alternativas encontradas no Brasil para controlar e incentivar o trabalho dos profissionais mostraram-se inadequadas às finalidades da saúde. Na rede pública, tornou-se frequente estabelecer acordos de redução de carga horária em função do reconhecimento tácito dos baixos salários. Os serviços privados nunca deixaram de pagar aos médicos mediante uma vetusta, ainda que repaginada, tabela contendo valores diferenciados por cada procedimento realizado. Quem controla esses contratos formais ou informais de trabalho no SUS são dirigentes indicados, na maioria das vezes, por instâncias político-partidárias. A centralização dos recursos orçamentários impede que os gestores da pasta disponham de autonomia para executá-los. Essa perversa conjugação de estímulos aos múltiplos vínculos e desestímulos ao desempenho voltado à melhoria da saúde é o principal problema de gestão. Consequentemente, propor a substituição de carreiras, cargos e salários por incentivos monetários e o trabalho sob regimes precários, e perenizar critérios antirrepublicanos para a escolha de gestores acentuam tanto a desvalorização dos profissionais de saúde quanto a desprofissionalização da gestão.
Queixas do tipo “o médico não olhou na minha cara” se multiplicaram na mesma proporção do menosprezo às peculiaridades de organizações que dependem da qualificação de quem nelas trabalha. Enquanto a exigência de um alto grau de discernimento pessoal dos profissionais de saúde repercutir tanto no controle de suas atividades quanto sobre parte das decisões administrativas, cabe à gestão e aos gestores propiciar instrumentos de trabalho e infraestrutura, e ainda corrigir más condutas. A transferência de responsabilidade do profissional para a administração compromete a eficácia das ações. Por mais que se desenhe um futuro no qual a mercantilização da saúde se imponha é improvável que alguém queira ser tratado em uma cabine virtual como um e-patient. Até o momento, as relações pessoais nas ações de saúde não caíram em desuso, e, sem pretensão, humanizam a inovação tecnológica e a gestão. A saúde tem problemas de gestão, de financiamento e políticos. A pompa com que se apresenta apenas um deles não pode servir para disfarçar a realidade e mesmo a verdade. Os que dizem que tudo pode ser solucionado com a correção de falhas na gestão, desde um posto de observação externo à saúde, sequer as reconhecem.
LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ligiabahia55@gmail.com.